Entrevista com Leonardo Boff, jornal O Imparcial (MA)
Quando Leonardo Boff (1938)
devolveu o e-mail com as respostas à entrevista, assinou, ao final: “teólogo,
filósofo, articulista semanal do Jornal do Brasil online e escritor”. Deixou de
fora outros predicados, num gesto de desapego coerente com suas escolhas
religiosas e políticas.
Trata-se de uma das maiores
autoridades cristãs brasileiras, ainda que um processo movido pelo então
cardeal Joseph Ratzinger, que viria a ser o Papa emérito Bento XVI, tenha
tirado alguns poderes do catarinense de Concórdia junto à Igreja Católica, o
que o levaria a desligar-se do sacerdócio em definitivo. Um dos expoentes da
Teologia da Libertação, ele resume: “eu mudei de trincheira para continuar no
mesmo campo de batalha”.
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O Brasil vive uma
crise de representatividade, em muito agravada com o golpe que destituiu a
presidenta Dilma Rousseff do poder. Como o senhor avalia este cenário?
A deposição de Dilma foi um
golpe de classe parlamentar, jurídico e mediático. O objetivo principal era
acabar com os avanços sociais que metiam medo nos descendentes da Casa Grande.
Eles não defendem direitos, mas os seus privilégios e se encostam no Estado
para fazer seus negócios, com juros subsidiados e reserva de mercado. O outro
motivo é alinhar o Brasil à política do império norte-americano, para acabar
com a linha de soberania e autonomia realizada por Lula e Dilma. Por isso,
houve presença norte-americana no golpe parlamentar, como o mostrou nosso maior
analista Moniz Bandeira, entre outros.
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Você visita São
Luís para participar do 3º. Encontro de Conselhos do Estado do Maranhão,
reunindo diversas instâncias de participação popular. Conselhos de Direitos são
uma importante conquista na democracia no que se refere à participação popular.
Qual a importância destes espaços na atual conjuntura?
Não podemos esperar nada de
cima, do Parlamento e dos que controlam as finanças e manipulam o mercado.
Estes não estão interessados num projeto de Nação, mas de garantir a natureza
de sua acumulação, que é uma das maiores do mundo. Apenas 77.400 biliardários
controlam grande parte de nossas finanças (0,05% da população). As mudanças vêm
daqueles que precisam delas, que são as classes oprimidas, subalternalizadas no
campo e na cidade, com os aliados que não sendo da mesma classe, assumem sua
causa. Eu espero que esses movimentos se articulem, ganhem as ruas e praças,
pressionem os poderes centrais de Brasília e consigam uma reforma política com
outro tipo de democracia participativa, onde eles, os movimentos, ajudem a
formular os investimentos, a realizá-los e a controlá-los. Aí sim, teríamos
outro Brasil, o Brasil das maiorias. Os neoliberais brasileiros querem um
Brasil menor, para uns oitenta milhões apenas. Os outros, os 125 milhões que se
lasquem.
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95% dos
brasileiros avaliam mal o governo de Michel Temer, mas esta insatisfação
generalizada não consegue extrapolar as redes sociais. Na atual conjuntura,
qual o papel dos movimentos sociais, de defensores de direitos humanos, enfim,
da militância, de modo geral?
Talvez uma frase do maior
pensador cristão e africano, Santo Agostinho, do século V, nos dê a resposta:
alimentar esperança, mas atender às suas duas belas irmãs: a indignação e a
coragem. A indignação para rejeitar as coisas ruins. A coragem para mudá-las.
Hoje os movimentos devem se indignar e mostrar isso nas manifestações, nas
praças, nas redes sociais, nas rádios comunitárias e jornais dos movimentos e
principalmente ter coragem para as mudanças que devem ser feitas na estrutura
social. Esta é uma das mais injustas do mundo. Isso se faz pela política,
participando, elegendo representantes confiáveis e querendo ter lugar nas
decisões de governo, pois, a democracia implica participação. Sem isso ela é
sua própria negação, senão uma farsa. Desenvolvi estas ideias no livro Virtudes para um outro mundo possível
[Editora Vozes, 2005], em três pequenos volumes.
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O Maranhão viveu
durante décadas sob domínio oligárquico, só ocupando espaços na mídia nacional
com tragédias e vergonhas. Para citar apenas dois exemplos, rebeliões em
presídios e escolas funcionando em ambientes insalubres, para dizer o mínimo. O
senhor tem acompanhado notícias daqui? É possível fazer uma avaliação do governo
Flávio Dino?
Estive pouco no Maranhão em
relação com outros estados. Estive muitas vezes quando, em Bacabal, era bispo
Dom Pascásio Rettler [1968-89], que defendia os posseiros e era muito ameaçado
de morte. Estive em Balsas para apoiar o bispo local que estava do lado da
luta, os agricultores contra o avanço da soja transgênica. Outras vezes para
participar de encontros das comunidades eclesiais de base, que segundo meu
irmão teólogo Frei Clodovis Boff, são das melhores do Brasil, porque agem com
certa autonomia sem menosprezar o apoio dos bispos. Há uns três anos fui a um
encontro para professores, em sua maioria, numa cidade histórica perto de São
Luís. Fiquei estarrecido com o que os professores contavam, seus baixíssimos
salários e o abandono das escolas. Tudo isso ainda sob o governo dos Sarney. De
Dino ouvimos os melhores elogios, seja por suas intervenções no caso do
impeachment, seja como está resgatando socialmente o Estado. É uma liderança em
quem confiamos e oxalá tenha ressonância nacional e não apenas regional para o
país sair da crise com lideranças novas, como a dele, com ética e novos
projetos sociais. Em meu livro Do iceberg
à Arca de Noé [Editora Mar de Ideias, 2002] desenvolvi tais perspectivas
atinentes à realidade brasileira.
·
Como professor
universitário, como o senhor tem recebido os golpes sucessivamente perpetrados
pelo governo ilegítimo contra o ensino médio e instituições de ensino superior?
O que o atual governo está
fazendo com a educação e suas instituições é um crime contra o país e o futuro
de nosso povo. O propósito é criar apenas gente que aprende para fazer
funcionar o sistema injusto e excludente que está aí, sem pensamento crítico, sem
inovação. Um país só cresce e progride quando há uma educação séria e
qualificada. Podem destruir quantas vezes quiserem a Alemanha, como fizeram por
duas vezes, mas porque possui uma das melhores educações do mundo (eu tive o
privilégio de fazer a universidade lá), sempre se levantará, como se levantou.
Hoje é um dos países, social e tecnologicamente, mais avançados do mundo. Aqui
a baixa qualidade da educação é mantida por razões políticas, para manter o
povo submisso e eles com os seus privilégios assegurados. Um pobre a quem se
negam as razões de sua pobreza, nunca irá se indignar e buscar transformações.
Mais ainda: um povo mantido na ignorância, em qualquer nível, nunca dará um
salto de qualidade em direção do desenvolvimento humano e justo. Eu venho da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), uma das melhores do Brasil.
Está sendo literalmente desmontada, talvez, como se suspeita, para
privatizá-la, talvez por ela ter um cunho claramente social. Todos, professores
e terceirizados, não estamos recebendo seus salários inteiros desde janeiro. O
décimo terceiro nem foi pago. E ouvimos que houve até suicídio de gente que se
desesperou com as dívidas por não ter recebido o devido salário.
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Ao longo dos
últimos anos temos percebido o crescimento da bancada evangélica, com pautas
nem sempre alinhadas a princípios verdadeiramente cristãos. Como teólogo, como
o senhor enxerga essa junção de religião, poder, conservadorismo e
obscurantismo?
O que a bancada evangélica
faz é contra a Constituição do Brasil. Na Constituição ficou claro que o país é
laico, quer dizer, não se orienta por nenhuma religião, e respeita a todas,
desde que se enquadrem dentro da legislação que é para todos. Os evangélicos
querem ter o privilégio de impor sua agenda, especialmente a ética, com
referencia à família, à orientação sexual, ao respeito aos LGBTs e outras. Eles
podem ter as opções deles, dentro do espaço de suas igrejas, mas é
anticonstitucional e desrespeitoso para outros que pensam diferente, quando
querem fazer o particular deles, o universal para toda a população. A eles
dever-se-ia corajosamente aplicar a Constituição com as proibições que ela
aponta.
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Percebemos
diversos avanços da Igreja Católica sob o papado de Francisco. Dois pontos, no
entanto, seguem inalteráveis: o matrimônio de sacerdotes e o sacerdócio de
mulheres. Em sua opinião, isto ainda demorará a se tornar realidade?
Face aos grandes problemas da
humanidade, com a pobreza da maioria, com eventuais guerras que podem dizimar a
espécie humana, o agravamento do aquecimento global que pode por em risco o
sistema-vida e o sistema-Terra, esses problemas do celibato e do sacerdócio das
mulheres têm sua importância, mas são de relevância menor. Eles interessam
apenas aos católicos. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB),
quanto saiba, fez uma petição ao Papa Francisco para que os padres que casaram
pudessem voltar com suas famílias e assumir responsabilidades pastorais. Outros
avançam a proposta, simpática ao Papa, de ordenar leigos, especialmente aposentados,
com boa integração familiar, para que pudessem atender espiritualmente, por
exemplo, todo um conjunto de prédios. A meu ver, a tendência da Igreja Católica
é seguir o que todas as igrejas já fizeram: tornar o celibato optativo. Quem
quiser, fica celibatário e se deixa ordenar. Outros se casam e se tornam padres
como os outros. Sou da opinião de que a Igreja deveria abrir também a
possibilidade de as mulheres poderem receber o sacramento da Ordem e serem
sacerdotes no estilo das mulheres, que é diferente daquele dos homens. Creio
que, na medida em que o patriarcalismo, forte na Igreja oficial, diminuir, será
mais fácil e normal tomar estas decisões. Ainda mais que a Igreja está dentro
da globalização, pois em muitas culturas, especialmente na África, não se pode
imaginar alguém ficar celibatário. O sentido tribal e comunitário torna o
matrimônio dos padres uma exigência até agora não atendida por causa da
dominação da cultura branca, ocidental e romana.
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Por conta de um
processo movido por Joseph Ratzinger junto à Congregação para a Doutrina da Fé
o senhor perdeu alguns poderes dentro da Igreja Católica, desligando-se depois
do sacerdócio. No entanto, graças a sua atuação junto a Teologia da Libertação,
continua sendo um dos principais expoentes religiosos do Brasil. Há alguma
disposição por parte do Papa Francisco no sentido de rever este processo?
Eu mudei de trincheira para
continuar no mesmo campo de batalha. Deixei, sob fortes pressões, o sacerdócio,
mas continuei fazendo teologia e tomando a sério a opção pelos pobres contra a
pobreza, porque isto é o eixo estruturador da Teologia da Libertação. O atual
Papa vem do caldo cultural e eclesial da Teologia da Libertação, de versão
argentina, que é a Teologia do Povo Oprimido e da Cultura Silenciada. Ele está
levando as intuições desta teologia nossa para o centro da Igreja. Por isso
está se encontrando com teólogos da libertação como com os sacerdotes Gustavo
Gutiérrez, Jon Sobrino, Pepe Castillo, Arturo Paoli e outros. Quis conversar
comigo, mas por razões de última hora, uma rebelião de 13 cardeais na véspera
do Sínodo sobre a família, que ele devia acalmar, não pode me receber. Mas
seguramente iremos nos encontrar em alguma viagem que fizer à Europa.
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O Brasil vive uma
situação surreal, com condenação de inocentes sem provas e liberação de
culpados com toneladas de cocaína em helicópteros. O senhor é um homem de fé: é
necessário ter esperança no Brasil, apesar de nossa classe política?
Quem perde a esperança está a
um passo do suicídio, da morte voluntária. É o que não podemos e queremos. O
povo brasileiro cultivou sempre em sua história a esperança, pois aguentou
séculos de colonização espoliadora de nossas riquezas, três séculos de
vergonhosa escravidão e duas ditaduras, a de Vargas e a de 1964. O momento
atual é de participação e de ação, sempre com esperança. Entretanto, temo que
estamos indo ao encontro de alguma convulsão social porque a desfaçatez e a
sem-vergonhice do atual governo de tentar desmontar todos os benefícios que os
dois governos do PT realizaram para milhões de cidadãos, não poderá perdurar.
Haverá um momento de dizer: “Agora basta. Que se vayan todos”, como disse o
povo argentino e pôs a correr um governo corrupto. O Brasil cresceu aos nossos
próprios olhos, enchendo-nos de orgulho e também aos olhos do mundo de tal
forma que ganhou o respeito e a admiração. Não vamos tolerar que isso se
desfaça por aqueles que Darcy Ribeiro dizia: “temos as oligarquias mais
reacionárias e com falta de solidariedade do mundo inteiro”. O insuspeito
ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em seus Diários da Presidência (1999-2000) [vol. 3, Companhia das
Letras, 2017] chegou a confessar: “Temos uma sociedade colonial,
subdesenvolvida, arrivista, com muita mobilidade e, ao mesmo tempo, muita
ganância”. São os atuais senhores da nova Casa Grande que querem que a maioria
do povo volte à senzala.
Isso não vamos permitir.
Lutaremos com dignidade e valor.
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