O
silêncio diante das palavras do general Hamilton Mourão coloca o País em um
caminho perigoso
Roberto
Amaral
Tropas no
Rio de Janeiro: não cabe aos comandantes a “última palavra”
Uma
das características das democracias, em seu conceito ocidental, é o rigoroso
império da ordem legal-constitucional, reinando sobre todos e tudo, pessoas e
instituições, sem privilégios de classe ou posto, ou função. A República
moderna, ainda herdando o que sobrou da teoria clássica da separação e harmonia
dos poderes (Montesquieu), entre nós Executivo, Legislativo e Judiciário,
ignora o ‘Poder Moderador’, uma herança do Império, a qual, no entanto, tende a
insinuar-se nos momentos de crise institucional, vividos com certa frequência
nas democracias ditas frágeis, como aliás pode ser identificada a brasileira.
Recentemente
o Poder Judiciário, com destaque para o Supremo Tribunal Federal, tem intentado
exercer esse papel de custódia que a Constituição lhe nega, extrapolando os
limites de sua estrita competência, e interferindo, para reduzi-los, os poderes
tanto do Legislativo quanto do Executivo, ora legiferando, ora operando como se
Executivo fora.
Esse
papel, de fato uma usurpação, vem sendo perseguido nos últimos anos, e chegou
mesmo a ser formalmente defendido pelo ministro Ricardo Lewandowski, então
presidente do STF, em artigo de imprensa que, todavia, não despertou as
preocupações que estava a merecer dos constitucionalistas liberais, hoje
silentes como uma pedra de mármore.
Essas
intervenções descabidas, por inconstitucionais e perturbadoras da ordem
jurídica, se manifestam no comportamento coletivo da Corte e no comportamento
esdrúxulo (para dizer o mínimo) de alguns de seus membros, e o exemplo
paradigmático, inexcedível, devemos ao ministro Gilmar Mendes, candidato a pop
star, a deitar falação sobre temas que dizem respeito a outras casas da Praça
dos três Poderes. A esse fenômeno de hoje chama-se ora ativismo judicial, ora
judicialização da política. Seja isso ou aquilo, será sempre um indicador da
fragilidade e dos riscos do processo
democrático brasileiro, caracterizado, especialmente na República, por
frequentes interrupções da ordem constitucional. São governos de exceção que
tomam formas as mais diversas, caminhando
do autoritarismo larvar às ditaduras militares, passando por períodos de
violência legal, como o que estamos vivendo, quando qualquer juiz, dizendo
interpretar a lei ou a Constituição, transforma-se em legislador e
constituinte.
A
Justiça se partidariza, adota um dos lados querelantes, e chega mesmo a
“revogar” a vigência do dispositivo constitucional que consagra a presunção da
inocência. Trata-se da heterodoxa ‘flexibilização das garantias
constitucionais’, com a qual se pretende, por exemplo, a legitimação de prisões
antes de esgotados os recursos a que todo condenado tem direito. No extenso rol
de violência que caracteriza a exceção constitucional estão o uso de prisões
preventivas com prazo indeterminado como instrumento de chantagem processual, o
abuso das conduções coercitivas acompanhadas de estardalhaço mediático, a
política de ‘vazamentos seletivos’, e a manipulação das delações em busca de
confissões dirigidas. A associação do Ministério Público Federal com o STF
criou a figura inconstitucional do juiz de jurisdição nacional e monopólio
temático, caso do juiz Sérgio Moro, para cuja mesa convergem todos os processos
que digam respeito à Lava-Jato, independentemente da jurisdição de apuração dos
fatos. E Moro – enfant gâté da grande mídia — é apenas o exemplo mais estelar:
nele confundem-se as figuras de investigador,
promotor e julgador, jogando às favas a isenção que a Constituição impõe
a todos os membros da Magistratura, em todos os níveis.
As
vítimas desse terrorismo judicial não são apenas os perseguidos pela lei,
independentemente do mérito do que se lhes imputa, mas o Direito, que se
fragiliza sempre que as regras legais são violadas, ainda quando em nome de
suposta defesa da legalidade. Como em 1964, quando os militares, em nome da
defesa da Constituição e da democracia, supostamente ameaçadas por um governo
constitucional, nos impuseram 20 anos de ditadura. Como recentemente, no
processo do impeachment de Dilma Rousseff, que se sabe hoje comprado com as
fartas malas de dinheiro de Eduardo Cunha, Geddel Vieira Lima, Michel Temer et
caterva.
A
prática da intervenção militar, direta e indireta, nasce com a República, com o
golpe de 15 de novembro de 1889 e com o governo inconstitucional de Floriano
Peixoto e se consolida com os conflitos e levantes militares que se seguem num
crescendo desde o levante da Armada (1893-1894); como processos em cadeia
seguem-se os levantes de 1922 (Forte de Copacabana), 1924 (revolta paulista ou
Revolta de Isidoro) e 1925 (início da Coluna Prestes-Miguel Costa), até a
‘revolução’ de 1930 e o governo provisório. Esse período é, por seu turno,
marcado pelo levante paulista de 1932, o levante comunista de 1935, a
implantação do Estado Novo em 1937 e o putsch integralista de 1938, até o golpe
de 1945, que, depondo Vargas, assegurou a reconstitucionalização de 1946. A
jovem democracia, porém, logo seria vítima de mais uma intervenção militar na
ordem institucional, com a crise de agosto que culminou com a deposição e
suicídio de Getúlio Vargas, presidente eleito em 1950.
A
tênue normalidade constitucional seria truncada com a frustrada tentativa de
impedir a posse de Juscelino Kubitscheck, eleito presidente da República em
1955. À tentativa de golpe comandada pelo brigadeiro Eduardo Gomes e o marechal
Juarez Távora, interpôs-se o golpe vitorioso (ou contragolpe) dos marechais
Henrique Teixeira Lott e Odílio Denys, ministro da Guerra e comandante do I
Exército, respectivamente, depondo o presidente Café Filho. No governo,
Juscelino sufocaria duas arruaças militares, a de Jacareacanga (1956) e a de
Aragarças (1959), lideradas por oficiais da Força Aérea Brasileira. Uma
intentona militar tentaria, em 1961, impedir a posse de João Goulart, e,
derrogando o presidencialismo, lograria impor ao Congresso Nacional o parlamentarismo
(a seguir rejeitado em plebiscito nacional) como regime de governo. Enfim,
tivemos o golpe de 1964 e a longa ditadura que se seguiu e que ideologicamente
sobrevive no pensamento político de setores expressivos das forças armadas.
Esses
fatos mostram, ao lado da óbvia indisciplina, a preeminência da força militar,
impondo pelas armas uma vontade que não emana da soberania popular. Essa
preeminência fez das Forças Armadas brasileiras, na República de 46, o ‘poder
moderador’ (um ‘quarto poder’ que se postava acima de todos os demais) que
agora o STF intenta disputar, valendo-se da fragilidade de um Legislativo e de
um Executivo irmanados no abraço de afogados no mar de corrupção em que estão
envolvidos, a se sustentarem tão somente em virtude de se prestarem a destruir,
de forma sistemática, as conquistas econômicas e sociais das últimas oito
décadas, em benefício do “mercado” e do rentismo.
O
que chamamos de República de 46 era, nesses termos, um regime sem maturidade,
sem segurança política, sujeito a quarteladas e marcado pelo que então se
convencionou chamar de ‘pronunciamentos’ militares, pois os ministros
militares, principalmente o ministro da Guerra (como então era denominado o
hoje comandante do Exército), falavam e eram ouvidos e consultados sobre tudo.
Mas não só eles, pois a tal direito se arvoravam coronéis e seus ‘Memoriais’, e
o Clube Militar era uma das instâncias mais efetivas de agitação de que
dispunham.
Era
um poder que amedrontava a todos, pois o único armado.
Um
cenário inaceitável.
Naquele
então os militares se pronunciavam sobre tudo o que dizia respeito à vida
civil, sobre eleições e candidaturas, sobre salários dos funcionários públicos
e reajuste do salário-mínimo, anunciavam vetos e aprovações, sancionavam e
condenavam candidaturas. Tinham sempre a “última palavra” sobre tudo.
Essas
considerações vêm a propósito do mais recente, insólito e inaceitável
pronunciamento, político e assustadoramente golpista, do reincidente general
Antônio Hamilton Martins Mourão, que, dizendo falar em nome de seu comandante e
do Alto Comando do Exército, ameaça o país com uma nova intervenção militar,
uma nova ruptura da Constituição, um novo crime coletivo contra a República.
Seu pronunciamento, o general devidamente fardado (por quê?), teve como
auditório uma loja Maçônica em Brasília, na última sexta-feira 15 e nossa
imprensa, cúmplice em todos os golpes levados a cabo em nossa história, não lhe
deu até aqui a devida importância, como silente está o soi disant ministro da
Defesa, como silente permanecem os democratas e liberais de carteirinha. O
grave incidente seria ignorado se não tivesse sido filmado e distribuído pelas
redes sociais. O primeiro registro, sumário, se deu pela Folha de S. Paulo on
line só no domingo à noite, vindo para as páginas impressas apenas na
segunda-feira. A indisciplina precisa ser cortada pela raiz e no caso do
general Mourão, não pode passar em brancas nuvens, pois se trata de um
reincidente de cinco estrelas, pois em 2015 perdeu o comando do III Exército
após agredir os governantes aos quais devia obediência constitucional.
Nesta
altura, qualquer silêncio será lido como tonitruante discurso de apoio. O
repúdio à intervenção militar deve nos unir a todos. É filme que já vimos, de
dolorosa memória.
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