quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

Israel, a agonia de uma democracia

Internacional

Israel

Israel, a agonia de uma democracia

por Antonio Luiz M. C. Costa — publicado 16/01/2018 00h14, última modificação 15/01/2018 17h50
Com o apoio incondicional de Trump e a adesão do centro-esquerda, o chauvinismo nacionalista não conhece mais limites
Menahem Kahana/AFP
Crime Minister
Tel-Aviv desdenha a diáspora e o mundo. O único limite que resta é a autodestruição
O governo de Donald Trump quis fazer passar o reconhecimento de Jerusalém como capitalde Israel como um passo para desemperrar as negociações sobre o futuro da Palestina, mas Benjamin Netanyahu e seu governo como também boa parte da oposição entenderam a verdadeira mensagem e dão a questão por encerrada.
Israel não perde tempo para aproveitar a janela aberta pelos Estados Unidos: aprovou uma lei para tornar definitiva a anexação de Jerusalém e preparar a expulsão dos moradores árabes, enquanto os EUA ameaçam cortar a ajuda ao governo palestino e Israel pressiona pela extinção da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA, em inglês).
Foi descartada na prática a solução dos dois Estados, ou seja, a coexistência do Estado de Israel com um Estado Palestino viável e soberano, composto pela Cisjordânia, Jerusalém Oriental e Faixa de Gaza com base nas fronteiras de 1967, admitidas trocas negociadas de territórios a partir dessa base.
Vislumbrada por ocasião dos acordos de Oslo de 1993 e seguida no ano seguinte pela criação da Autoridade Palestina, a proposta teve o andamento paralisado em 1995 com o assassinato de Yitzhak Rabin por um extremista judeu, mas continuou a ser um pressuposto da diplomacia ocidental na região até o governo de Barack Obama, mesmo se, ao contrário da maioria dos países do mundo, inclusive o Brasil, os EUA e seus aliados entre os países ricos (e uns poucos não tão ricos, principalmente o México e a Colômbia) não tenham reconhecido o Estado Palestino unilateralmente proclamado em 2013, alegando ser esse um passo a ser tomado apenas depois de consumado o acordo, hoje reduzido a uma quimera.
Israel caminha para um Estado de apartheid semelhante à África do Sul de 1948 a 1994, admitem, desanimados, muitos setores antes mais otimistas, notadamente os judeus liberais ou de esquerda dos EUA.
Se houver alguma espécie de Estado Palestino, será uma ficção, um punhado de enclaves militarmente controlados por Israel e administrado por colaboracionistas, cujo único propósito será dar uma justificativa jurídica a manter os palestinos como reserva de mão de obra barata, segregada e privada de direitos civis e políticos. Exatamente a mesma função dos desaparecidos bantustões.
Só falta encontrar colaboracionistas tão submissos quanto seria necessário. Bush filho e Ariel Sharon incentivaram a eleição palestina de 2006 com a expectativa de ver o povo escolher políticos simpáticos ao Ocidente e a Israel e esquecer o nacionalismo do Fatah.
Não seria racional trocar coisas tão insignificantes quanto história, monumentos, dignidade e soberania por algum dinheiro a mais no bolso? Mas os palestinos os decepcionaram e deram maioria e projeção internacional ao então pequeno partido Hamas, fundamentalista e muito mais hostil e intransigente que a organização de Yasser Arafat e Mahmoud Abbas.
Contradições. O centro-esquerda protesta contra os escândalos de Netanyahu, mas a ânsia pelo poder que leva líderes trabalhistas como Avi Gabbay a adular o racismo é outra forma de corrupção (Foto: Jack Guez/AFP)
Na falta de palestinos submissos o suficiente, é de se temer que as lideranças israelenses, ao não se sentir mais pressionadas de fora a respeitar limites, sonhem com a expulsão em massa dos palestinos e mesmo de seus cidadãos árabes. A tentação não existe só na extrema-direita do espectro político. Os próprios trabalhistas, outrora pacifistas, hoje cortejam os fanáticos nacionalistas, acreditando ser esse o caminho para tomar o lugar de Netanyahu.

Avi Gabbay, eleito presidente do partido em julho de 2017 e tido como próximo de Tony Blair, não vê necessidade de retirar colonos judeus da Cisjordânia para se chegar à paz, recusa conversar com políticos árabes-israelenses e defende lançar 20 mísseis contra Gaza para cada um que for lançado contra Israel.
Quis expulsar do partido seu único deputado árabe, Zouheir Bahloul, por se recusar a participar de uma sessão para comemorar o centenário da Declaração Balfour (que abriu a Palestina à colonização judaica) e a fazer o partido fechar questão pela aprovação do projeto de Netanyahu de expulsão de refugiados africanos.
Em entrevista de dezembro, o general da reserva Amiram Levin, que desistiu de disputar a liderança trabalhista para apoiar Gabbay e seria o provável ministro da Defesa de um eventual governo trabalhista, disse ao jornal Maariv que foi mais realista que o rei.
“Fomos muito bonzinhos em 1967. Se violarem acordos, da próxima vez os jogaremos do outro lado do Rio Jordão. Os palestinos mereceram a ocupação e nada mais, porque não aceitam os limites da divisão. O problema é que a ocupação corrompe e é um perigo existencial para nós como sociedade. O exército esqueceu de como vencer. Por controlar outras pessoas, transformou-se de um tigre em um porco. Em vez de procurar alvos, senta e engorda. A missão não é trazer soldados para casa em segurança, é matar o inimigo.”
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Desafio. Ahed Tamimi, 16 anos, vista como terrorista por esbofetear um soldado, tornou-se uma Joana d'Arc aos olhos dos palestinos (Foto: Ahmad Gharabli/AFP)
Embora ainda se distinga da direita ao criticar privilégios das elites econômicas e religiosas, o chamado centro-esquerda tornou-se tão obcecado com o discurso antiárabe e a defesa da identidade judaica quanto a ultradireita.
A deriva para o “nacionalismo étnico”, a “xenofobia” e o “populismo de direita” – eufemismos para o neofascismo – e a deterioração do discurso público começaram em Israel antes de outros países do Ocidente, serviram-lhes de modelo e chegaram a um estado mais avançado, passando a ser aceitas quase sem ressalvas pela própria oposição.
De forma ainda mais explícita que nos EUA de Trump, a corrente de opinião predominante dentro da maioria étnica assumiu uma visão de mundo de “todos contra todos” e mandou às favas os princípios de humanismo, liberdade e democracia.
Acredita apenas em um futuro de opressores e oprimidos e quer apenas estar segura de continuar a poder se identificar com os dominadores. Foram representativos dessa atitude o movimento pelo indulto total ao ex-sargento Elor Azaria, condenado em 2017 a meros 18 meses de prisão por executar com tiros na cabeça um palestino ferido e caído e a reação desproporcional aos palestinos que protestam contra a anexação de Jerusalém.
Em especial, a fúria contra Ahed Tamimi, adolescente de 16 anos detida e ameaçada com 14 anos de prisão por 12 crimes, inclusive “agressão grave, dificultar o cumprimento dos deveres militares e incitação” após dar algumas bofetadas em um soldado israelense na Cisjordânia na frente das câmeras.
A atitude da jovem, vale notar, não veio do nada: seu primo Mohammed Tamimi, um ano mais jovem, havia sido gravemente ferido com um tiro na cabeça ao participar de uma manifestação – isso depois de ter passado meses na prisão por jogar pedras em outros soldados israelenses.
Israel não mais se importa com a opinião pública ocidental ou mesmo aquela dos judeus liberais na diáspora. Para o governo Netanyahu, conta o jornal Haaretz, estes não contam por que desaparecerão em algumas décadas por assimilação ou mestiçagem.
Por isso, nem sequer se envergonha de buscar aliados na ultradireita ocidental, inclusive em movimentos ligados ao neonazismo e ao antissemitismo, como a Alt-Right dos EUA e o Partido da Liberdade austríaco.
Muito menos de tirar o país da Unesco, acelerar a construção de colônias judaicas na Cisjordânia, expulsar mais de 35 mil refugiados africanos, inclusive crianças nascidas no país, ameaçar cassar os deputados árabes e banir seus partidos e proibir a entrada no país de lideranças de 20 ONGs que promovem algum tipo de boicote a produtos israelenses.
Entre as organizações banidas, vale notar a presença do American Friends Service Committee, organização da igreja Quaker dos EUA que ganhou o Nobel da Paz de 1947por ajudar as vítimas do nazismo, inclusive judeus poupados do Holocausto.
Vítima. O primo Mohammed Tamimi, 15 anos, motivou a fúria de Ahed. Uma hora antes, metade da cabeça fora destruída por uma bala israelense quando protestava contra a ocupação
Para seus integrantes serem declarados personae non gratae, não precisaram pedir um boicote a Israel, mas apenas de “empresas que apoiem a ocupação, assentamentos, militarismo e outras violações de direitos humanos”. Também foi banida a Jewish Voice for Peace, organização judaica liberal dos EUA cujos principais dirigentes têm família em Israel.

Qual o futuro? Netanyahu está acossado por denúncias de corrupção e corre o risco de ser indiciado, apesar de ter aprovado uma lei para tornar isso mais difícil. A esposa, Sarah, está no centro de dois escândalos, um por maltratar empregados e outro por abusar de recursos públicos em banquetes e viagens.
O filho Yair, que ano passado divulgou memes antissemitas da ultradireita estadunidense na internet, agora se fez notar também por outras estripulias. Veio à luz que agentes do Shin Bet, serviço secreto israelense, guardavam a porta para ele quando encontrava garotas de um clube de strip-tease – e surgiu uma gravação na qual se queixa a um amigo, filho do bilionário do gás israelense Kobi Maimon: “Meu pai deu 20 bilhões de dólares ao seu e você quer me regular 400 shekels?” (para uma prostituta). 
O governo é alvo de protestos contra a corrupção e é bem possível que acabe forçado a renunciar. Dada, porém, a atitude do principal partido de oposição, isso pode não fazer grande diferença, mesmo que seu partido, Likud, seja derrotado.
Os únicos limites são os da autodestruição: se Israel expulsar os palestinos para além do Jordão, vai desestabilizar a Jordânia, de cuja colaboração depende para ter um mínimo de segurança.
Esse país, assim como o Egito e a Arábia Saudita, fazem o possível para minimizar a questão e convencer os súditos de que nada têm a ver com os palestinos, mas todos sabem estar sentados sobre barris de pólvora prontos a explodir a qualquer movimento brusco.
E podem levar consigo o Estado judeu, que, mesmo se puder continuar a cozinhar a questão palestina em fogo baixo, acabará condenado pela demografia a repetir o destino da África do Sul do apartheid.

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