Lenio Streck: “Sistema judicial dos azembe, na África do Sul, dá mais chances de justiça a Lula que o brasileiro”
Publicado no Sul21
POR MARCO WEISSHEIMER
Flávio Koutzii passou quatro anos preso, entre 1975 e 1979, em cinco prisões da ditadura argentina. Foi preso por integrar a Fracción Roja do PRT e do ERP (Partido Revolucionário dos Trabalhadores – Exército Revolucionário do Povo), que participou da resistência armada à ditadura. Após sair da prisão, Koutzii foi para a França, onde se diplomou em Sociologia na “École des Hautes Études en Sciences Sociales”, onde defendeu a tese “Système et contre-système carceral pour les prisonniers politiques en Argentine” – 1976-1980”, que serviu de base para o livro “Pedaços de Morte no Coração”, publicado no Brasil em 1984 pela L&PM. Koutzii citou essa pesquisa, durante debate realizado segunda-feira (23) à noite no auditório do Sindicato dos Bancários de Porto Alegre, para falar da prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, na superintendência da Polícia Federal em Curitiba.
Promovido pelos mandatos da deputada estadual Stela Farias e do deputado federal Henrique Fontana, do PT, o debate, que lotou o auditório do SindBancários, reuniu Flávio Koutzii e Lenio Streck, convidados para falar sobre o “colapso da democracia e a ascensão do conservadorismo no Brasil”. Koutzii lembrou do estudo baseado na vivência direta que teve nas prisões da ditadura argentina, para falar da prisão de Lula.
“Tenho uma certa experiência sobre isso. Passei quatro anos preso na Argentina e depois, em liberdade, escrevi um trabalho sobre o sistema prisional em que vivi. Passei por cinco prisões e procurei sistematizar o modelo que cada uma usava para tentar coagir e destruir física e psiquicamente os prisioneiros. Quando olhei o desenho da cela onde Lula foi colocado na Polícia Federal em Curitiba, que é apenas um pouquinho maior do que aquelas em que fiquei na Argentina, vi que a estrutura dela é exatamente igual a do sistema prisional que a ditadura argentina usou para destruir seus opositores, uma ditadura, cabe lembrar, que ‘desapareceu’ 30 mil pessoas”.
Flávio Koutzii disse que ficou pasmo com o que os meios de comunicação estavam reproduzindo sobre os supostos “privilégios” que Lula estaria usufruindo no prédio da Polícia Federal em Curitiba. “Havia coisas que tínhamos, como um período para tomar sol, que não está claro se Lula está tendo. Estou cada vez mais convencido que há uma engrenagem de destruição física e psíquica de Lula em Curitiba”.
O diagnóstico de Koutzii acerca do tratamento ao qual Lula vem sendo destinado foi acompanhado de uma advertência sobre a duração desse processo: “Isso não vai se resolver em seis meses. É preciso ter isso em mente na luta de resistência. Eles não conseguiram a imagem que queriam na prisão de Lula. Pelo contrario, a imagem que ficou foi ele sendo carregado nos braços do povo”. Para o ex-deputado estadual e ex-chefe da Casa Civil do governo Olívio Dutra, a prisão de Lula representa uma virada na história do Brasil. “Parece o momento de uma derrota, mas não é uma derrota irreversível”. Mais uma vez, ele lembrou da Argentina, mais especificamente do peronismo. “Desde os anos 50, com tudo o que aconteceu, é impossível fazer política na Argentina sem o peronismo. Resguardadas todas as diferenças, não tenho dúvida em dizer que não haverá política no Brasil sem Lula. Eles têm a Globo, o Moro e aquele dono de puteiro, mas nós temos uma figura gigantesca”.
Para Lenio Streck, o sistema judicial dos azembe, na África do Sul, ofereceria maiores chances de justiça a Lula do que o sistema brasileiro. No sistema azembe, assinalou, os pajés preparam um veneno que é ingerido por um pintinho. “Se o pintinho morre, o réu é condenado; se ele vive, é absolvido. Neste sistema, Lula teria pelo menos 50% de chances de ser absolvido”. Streck classificou como extremamente grave o que em acontecendo no sistema judicial brasileiro. O item 9 do acórdão da sentença contra Lula, assinalou, diz que não se pode exigir do Ministério Público uma postura isenta no processo. “Adverti meus colegas do MP que eles não poderiam aceitar isso, mas descobri que eles próprios eram os autores dessa formulação”.
Essa situação, ressaltou, se fortaleceu graças à postura da própria esquerda brasileira que negligenciou coisas que não deveria ter negligenciado. “Aquilo que nós desprezamos está nos destruindo. Uma parcela da esquerda desdenhou o Direito e agora que precisa dele ele não está mais lá”. Lenio Streck disse acreditar, por outro lado, que o STF está metido em uma ‘sinuca de bico’, especialmente apos a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC), impetrada pelo PCdoB, pedindo a declaração de constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal e a proibição da execução antecipada da pena. Essa ADC, observou Streck, tem a ver com um ponto levantado por Gilmar Mendes, segundo o qual, o voto do falecido ministro Teori Zavaski apontou a possibilidade de prisão após decisão em segunda instância e não obrigatoriedade.
Lenio Streck ironizou o caminho adotado pelo ministro Edson Fachin, dizendo que ele está fazendo exatamente o percurso contrario de São Paulo. “Fachin faz o caminho inverso ao feito por Saulo, faz o caminho contrário de Damasco”. E apontou a parcela de responsabilidade da esquerda em relação ao que está acontecendo hoje.
“A ministra Rosa Weber aplicou o drible da vaca em seu voto ao adotar a tese da colegialidade, mas é bom lembrar que essa tese foi defendida em passado recente pela esquerda. A tese de que você tem que ser coerente mesmo no erro e que a soma dos votos de um colegiado vincula o seu voto. Esse foi o fator principal da prisão de Lula e de várias outras pessoas. Nós deixamos passar batido muitas coisas que não deveríamos ter deixado passar, inclusive em episódios como os da prisão do Delcídio do Amaral e do Eduardo Cunha, esta última uma prisão para esquentar o golpe. Caímos na armadilha do discurso fácil contra o foro privilegiado. Primeiro aconteceu isso, depois aconteceu aquilo e depois não tem mais nada. O objetivo maior de todo esse processo é a criminalização da política”, alertou.
Streck criticou a lógica que vem imperando nas faculdades de Direito. “As faculdades de Direito não estão formando apenas analfabetos funcionais, estão formando fascistas. O professor de Direito Constitucional, hoje, é um subversivo. Ao dar aula de Direito Constitucional ele pode ser acusado de obstrução de justiça”.
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