sexta-feira, 27 de abril de 2018

Política 'Hoje a forma de controle autoritário é mais dissimulada e, portanto, mais assustadora'

Política

'Hoje a forma de controle autoritário é mais dissimulada e, portanto, mais assustadora'

"Sem a mídia não teria isso o que está acontecendo. Mas eu acho que essa narrativa está em disputa, apesar do poder dos meios tradicionais", diz Venício Lima em entrevista




24/04/2018 10:51
 
‘’Há um crescimento, para mim assustador, de uma direita extremada e fascista que não dialoga politicamente; que acha que o adversário tem que ser eliminado. ’’ Quem o diz é o professor, sociólogo, cientista político e jornalista Venício Artur de Lima acaba de receber o título de Professor Emérito da Universidade de Brasília (UnB) da qual se aposentou após mais de 30 anos de trabalho. Inicialmente, como professor da Faculdade de Comunicação e, depois, no Departamento de Ciência Política. Um dos mais respeitados estudiosos do país em Comunicação e sua relação com a política, Venício de Lima recebeu Carta Maior no seu apartamento, em Brasília, para uma conversa sobre sua brilhante trajetória acadêmica e falou sobre a situação política atual. Falou também dos tempos da ditadura civil-militar na UnB e sobre a relação com as desastradas intervenções do governo golpista atual, no ensino das universidades brasileiras. Relembrou os tempos difíceis para a universidade, na década dos anos 60, os quais se repetem agora, e em especial em Brasília.

Carta Maior: A sua história na UnB se confunde um pouco com a história dessa universidade. O que significa para o senhor o título de Professor Emérito?Venício Lima: É uma grande honra. Na verdade, eu fui surpreendido com esse título. Dez anos atrás, o professor Clodomir Ferreira apresentou a proposta com meu nome, mas o tempo passou e o assunto não avançou. No fim de 2016 o professor Fernando Paulino me consultou sobre minha aprovação à apresentação, novamente, do meu nome à disposição para Professor Emérito e, a partir de então eu não soube mais nada sobre o tema. Quando o atual chefe de gabinete da Reitora, o professor Paulo César Marques, me ligou e me deu a notícia eu achei que era gozação do meu amigo.

CM: Em que fase da UnB o senhor entrou na Comunicação?

VL: Faço parte de um grupo que veio para a UnB no período de sua reorganização, depois da crise de 68, liderado pelo Dr. Caio Benjamim Dias. Vim em um momento de reconstrução e num contexto social e político bastante difícil porque era um momento agudo da experiência autoritária. Depois, tive dificuldades com a orientação que prevaleceu na universidade até a democratização do país. A UnB era uma instituição que merecia uma atenção especial dos órgãos de segurança. Na universidade havia um representante especifico inicialmente vice-reitor e em seguida reitor, que atuou influenciando a vida de todos nós que estávamos ali naquele período.

CM: O interventor era um coronel?VL: Não. Ele entrou na universidade na qualidade de professor de Física. Era da Marinha, um capitão de mar -e- guerra  (NR: José Carlos Azevedo), doutor em Física pelo MIT [Instituto de Tecnologia de Massachusetts. Hoje há provas documentais de que era ligado ao que se chamou naquela época de “linha dura do regime”.

CM: O reitor pertencia à comunidade de informações?VL: Sim, era e sabemos que exerceu um controle rígido da vida na universidade. Foi um período de lutas constantes até que os órgãos colegiados foram implantados e começaram a funcionar. Muitas pessoas, professores, alunos e funcionários que pensavam a política de forma diversa da que era a dele e do grupo que representava, e tinham ideologia diferente sofreram retaliações. Meu contrato foi suspenso e foi um ano extremamente difícil para mim. Certa vez, eu estava em casa, bateram à minha porta e era um oficial de justiça notificando que meu contrato estava suspenso. Eu tinha sido convidado pelo Conselho Britânico e estava viajando para uma visita dirigida na qual você escolhe os lugares e as pessoas com quem quer conversar. Era agosto de 1982. Tinha acabado de nascer minha filha que teve uma icterícia e precisou permanecer no hospital por um tempo, e em seguida o meu pai faleceu. Foi um ano extremamente difícil. Eu fiquei durante três anos e pouco com o meu contrato suspenso.

CM: Mas por quê? Qual o motivo apresentado?
VL: 
O reitor da UnB, o capitão Azevedo, havia conseguido fazer passar uma lei apelidada de
Lei Azevedo, permitindo que os dirigentes das fundações universitárias fossem reconduzidos diretamente pelo presidente da República quantas vezes o presidente julgasse necessário. Figueiredo, com essa lei, reconduziu o professor e reitor Capitão Azevedo. Essa lei tramitou no Congresso. Eu chegara do doutorado e meu sogro da época era líder do MDB no Senado e líder da oposição - o senador Humberto Lucena. Eu chegava do exterior e era muito próximo a ele que me pediu para ajudá-lo em artigos para jornal e nos seus discursos. Comecei a fazer isso antes que surgisse no Senado uma carreira fora do quadro, a de assessor técnico. Como eu já fazia isso ele me colocou como assessor técnico dele. Eu era professor de dedicação exclusiva na UnB. Hoje, olhando retrospectivamente, confesso que deveria ter consultado um advogado e averiguado se isso significava um risco de violação da natureza do meu contrato com a UnB. O contrato foi suspenso sem o conhecimento do meu departamento que se opôs à demissão e se manifestou pública e dentro da universidade contrário a ela. Houve uma inversão do processo. Porque quem inicia um processo de demissão por justa causa é a empresa, a instituição, o órgão onde a pessoa trabalha. No meu caso seria o meu departamento. Mas o processo partiu da reitoria.

CM: Como conseguiu reverter a situação?
VL: 
Foi mais de três anos até o próprio governo Figueiredo tramitar no Congresso um projeto de lei aprovado segundo o qual a escolha dos dirigentes das fundações universitárias voltava a ser efetivada segundo o critério da antiga Lei de Diretrizes e Bases. O vice-reitor assumiu a reitoria - professor Luiz Otávio de Souza Carmo - e me telefonou dizendo que desejava resolver a minha situação. Foi quando voltei para a universidade.

CM: E depois?

VL:
 Depois eu mudei de área, fui para a Ciência Política e havia uma disciplina de Comunicação e Política que não tinha quem ministrasse. Fui convidado para ir para lá, aceitei, e passei os meus últimos dez anos na universidade na Ciência Política.

CM: Qual a relação que o senhor faz daqueles tempos de ditadura, de perseguições a professores e do estrangulamento das universidades, com o momento que vivemos hoje? Como o senhor compara aquele golpe de 64 com esse golpe de agora que também está atingindo a autonomia e até a existência da universidade pública brasileira?AL: Talvez a idade e o peso dos anos tenham me feito mais medroso. Embora eu já não esteja mais, há muitos anos, no dia--a- dia acadêmico, eu continuo ligado à universidade. Hoje, ligado à UFMG, a Universidade Federal de Minas Gerais, onde participo do Centro de Estudos Republicanos Brasileiros, o Cerbras. Como temos projetos de pesquisa em andamento eu vou até lá com frequência. Talvez tenha a ver com a idade, mas naquela época, no início da década de 70, acho que éramos mais voluntariosos, desafiávamos mais o sistema, enfrentávamos mais as condições adversas e conseguimos fazer algumas coisas importantes dentro da universidade. Hoje, não estando dentro do cotidiano na vida universitária, eu sinto que a forma de controle autoritário é mais dissimulada, mais difusa e, portanto ela me assusta mais do que naquela época. Aos poucos,
direitos individuais vão sendo dilapidados. Aqui, uma medida, ali, outra. Uma questão de primeira instância, uma decisão de segunda instância. Decisões no Supremo. Aos poucos eu sinto - e acho que talvez a imensa maioria da população não perceba isso - que vai se dilapidando aos poucos os direitos individuais e cresce uma forma de controle autoritário da vida civil e da vida pública. Vejo e sinto isso com certo assombro. Fico assustado quando, por exemplo, não vejo punição para ações que estão obviamente em contradição com a lei. Quando um juiz de primeira instância diz: “O momento exige ações de exceção”. Isso dito em um tribunal de recurso de segunda instância, em votação que ficou só com um juiz.

CM: Qual a comparação que senhor faz?

VL:
 Do ponto de vista da experiência daquela época com a experiência de hoje, naquele tempo – em que eu nunca fiz a opção de vários amigos e colegas fizeram, tanto de ensino secundarista como de universidade, os que foram para a resistência armada, que morreram, que desapareceram -, mesmo com tudo aquilo, a resistência à ditadura era aberta, quer dizer, havia uma ditadura.

CM: Ela veio escancarada, sabia-se com o que estávamos lidando. Era um inimigo visível, não?
VL: 
Era exatamente isso. Hoje, acho que a coisa está mais dissimulada e você vê que não acontece só no Brasil, esse movimento das forças conservadoras e de interesse do capital financeiro. É o neoliberalismo a nível global. Isso está acontecendo em países da América Latina e há um
crescimento também, para mim assustador, de uma direita extremada e fascista que não dialoga politicamente, que acha que o adversário tem que ser eliminado. Isso me assusta. Naquela época, apesar de tudo eu não experimentei essa sensação. Talvez tenha a ver com a idade. Naquela época você era mais peito aberto e tal. Hoje eu fico mais medroso e penso muito nas gerações que virão. Eu já tenho filho de 40 e tantos anos, e eu penso nos meus netos, no mundo que eles terão que viver.

CM: Qual é o papel da mídia no processo atual de estímulo às forças fascistas, do ódio que vem sendo disseminado?
VL: 
Sem a participação da mídia não haveria isso tudo que está acontecendo. Há um artigo anterior ao início da Lava Jato, de autoria do juiz Sérgio Moro, em que ele compara a Operação Mãos Limpas, na Itália, à Lava Jato. Eu escrevi sobre isso tempos atrás. Ele fala abertamente da necessidade do que chama de opinião pública através do comprometimento da grande mídia, ou seja, a grande mídia faz parte do processo. E o que me incomoda mais é que ela faz parte do processo com a aparência de que está trabalhando na defesa da democracia e dos direitos humanos, do interesse coletivo e do bem público. O comprometimento da grande mídia brasileira me assusta e é escancarado; é evidente. Mas, hoje você conta com o que não existia naquela época: as novas tecnologias digitais que permitem um acompanhamento muito mais rápido e tecnicamente mais apurado do posicionamento majoritário desses grandes grupos de mídia a favor de determinadas causas e contra outras nas quais eles estão empenhados. Qualquer pessoa interessada pode acessar esses dados, que são públicos, em um grupo da UERJ liderado pelo professor João Feres Júnior - o Manchetômetro. Ele acompanha a grande mídia impressa e a dos grandes telejornais e publica, periodicamente, as avaliações tecnicamente realizadas as quais indicam, com toda clareza, não só a não neutralidade da mídia, mas o seu posicionamento. Então, é absolutamente evidente que sem a participação da mídia não teria havido esse movimento de opinião pública   avassalador no Brasil, que se autodenomina “movimento contra a corrupção”. Está claro que ele é seletivo. Manipula a suspeita de corrupção e a suspeita de corruptos que se encontram apenas de um lado. Eu acho que a participação da mídia nesse processo é absolutamente central.

CM: Talvez até pela construção a conta-gotas desse autoritarismo, as pessoas não estão percebendo, por exemplo, os estragos que estão sendo feitos em seus direitos imediatos - o trabalhista, por exemplo. A mídia estaria tendo o papel de manter essa letargia?
VL: Essa questão da letargia é central e muito complexa porque eu acho que é preciso fazer uma diferença, por exemplo, entre opinião pública, movimento de opinião pública e eleitorado. O Fábio Wanderley Reis, Professor Emérito da UFMG, professor de
Ciências Políticas,  há pouco tempo escreveu um texto sobre isso, publicado em um livro organizado pelo Luiz Felipe Miguel, da UnB. Ele chama atenção sobre isso. Quero dizer o seguinte: o que aparece publicamente como sendo a opinião pública não é igual às intenções de voto do eleitorado.
Melhor exemplo disso é que, apesar de tudo, do massacre que tem acontecido e da suspeita que, eu acho, pode ser levantada genuinamente com relação a certas pesquisas de opinião, você vê que o Lula continua crescendo eleitoralmente. Podemos citar, por exemplo, a pesquisa recente do Datafolha segundo a qual ele continua com mais de 30% da preferência do eleitorado. Quer dizer, isso mostra essa diferença entre opinião pública e eleitorado. Então você vê que a letargia não se expressa na posição do eleitor. Isso é inegável.

CM: Mas há os movimentos efetivos da direita.

VL: Sim; por outro lado há uma organização muito efetiva de movimentos de direita financiados inclusive com recursos de fora do país, o que também não é mistério. Esse financiamento é público também. Grupos americanos que financiam ONGs e financiam movimentos para influenciar a opinião pública. Eu participei há pouco tempo de um debate e escrevi inclusive o capítulo de um livro que foi publicado pela Fundação Perseu Abramo sobre a direita no Brasil, e tem vários, dois ou três capítulos deste livro que mostram esse movimento do financiamento externo de grupos conservadores atuando no mundo inteiro e no Brasil. Então, com isso uma parcela da classe média passou a ser muito ativa nas manifestações públicas em relação àquilo que as camadas de classe média consideram de seu interesse.

CM: preconceito?

VL:
 Eu estou pessoalmente convencido de que  há um componente muito forte de preconceito de classe social mesmo. É inegável que durante os anos dos governos de Dilma e Lula houve, e isso é um dado público também, uma ascensão de camadas que até então não podiam e não tinham acesso à universidade, ao ensino técnico, ao transporte aéreo, o que incomoda muita gente. Nós somos uma sociedade escravista, como diz o Jessé Souza, com quem eu mantenho várias discordâncias. Mas ele está absolutamente correto sobre isso. Não podemos esquecer o papel fundamental da nossa sociedade que é a matriz escravocrata. Visível ainda ou não ela existe de uma
forma absoluta hoje. Talvez haja menos do que  letargia daqueles que estão sendo prejudicados, que é a imensa população brasileira. Há uma exacerbação, uma presença de setores extremados da classe média que fomentam outros, e sobre todos os setores de classe média que se sentem ameaçados.

CM: E eles conseguem se sobrepor nesse debate político, na narrativa?VL: A disputa da narrativa ainda continua. Eu não tenho dados empíricos, eu não conheço também alguém que tenha estudado isso, mas eu acho que a disputa da narrativa continua sendo feita mesmo com o Jornal Nacional diariamente construindo uma narrativa do que está acontecendo. Tomando ainda como referência a pesquisa Datafolha: eu vi só na matéria da própria Folha; não tive acesso aos dados da pesquisa, não analisei cada dado, mas há um que é muito interessante. Você ver que apesar de toda a narrativa hegemônica liderada e capitaneada pelos grupos de comunicação, e não somente pela Globo, 40% das pessoas acha que a prisão do Lula foi injusta. E, veja só, o massacre diário da grande mídia é para dizer que o Lula é ladrão, que Lula é corrupto apesar de todos os buracos do processo, e com esse especifico do triplex do Guarujá. A ausência de provas, a ausência de contrapartida a uma série enorme de buracos que não são
suficientemente divulgados.

CM: Mas hoje a força das redes sociais...

VL:
 Sim, você tem inclusive a força das redes sociais apesar de todos os problemas que eu pessoalmente tenho em relação às redes sociais. Mas é inegável que ao contrário do que acontecia quando elas não existiam você não tem uma voz única, mesmo que a voz das redes atinja um espaço público menor, ou espaço público que atinja um nicho que já tem
uma opinião previa terminada. Mesmo assim, falando em termos de narrativa, acho que há uma disputa da narrativa, porque caso contrário não haveria como compreender que o Lula, apesar de preso, tenha o dobro de intenções de voto do que o segundo colocado no primeiro turno. Ou não conseguiria entender como é que 40% ou mais dos entrevistados consideram a prisão dele injusta. Acho que essa narrativa está em disputa apesar do poder dos meios tradicionais.

CM: Para finalizar -  tenta-se construir uma narrativa de que manter eleições, agora, seria prejudicial ao país. Ela pode se tornar realidade e prevalecer?
VL: 
A falácia desse argumento é de uma evidência total. O que está em jogo aqui,  desde que o grupo derrotado nas eleições de 2014 não aceitou o resultado delas, o que está em jogo é a soberania popular, é o voto. Quer dizer, na democracia as questões
políticas têm que ser resolvidas chamando o povo para se manifestar. Ele é soberano do poder político. Fora daí você tem outra coisa que não é democracia. Em qualquer situação, o recurso democrático é um chamamento à soberania popular para que se manifeste.

CM: Do contrário, seria outra fase do golpe?
VL: S
eria totalmente inaceitável, não? Eleições não seriam convenientes para quem? Contrariam quais interesses? Quem é que não quer eleições? Certamente não é a soberania popular que precisa se manifestar em nome da democracia. E eu espero não chegarmos a esse ponto.

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