Qual o papel das redes na manipulação da opinião pública?
Muito além de influenciar uma eleição presidencial: investigação da 'influência russa' revelou algo cuja complexidade só começamos a desconfiar
Mathias Oesterle/Zumapress/Fotoarena
As respostas de Zuckerberg e dos fundadores do Google, Brin e Page, às ameaças de Thomson e Murdoch ajudam a entender a explosão de fake news no final da campanha eleitoral nos Estados Unidos
Mesmo se exagerada a influência dos russos, o debate sobre o seu papel na polarização da política nos Estados Unidos e na eleição de 2016 teve ao menos o mérito de arranhar o mito da isenção e neutralidade das redes sociais e buscadores. Neste caso, o Facebook apareceu no centro do palco, mas as questões levantadas a seu respeito são mais amplas.
A expressão “o meio é a mensagem”, cunhada por Marshall McLuhan em 1964, é verdadeira na medida em que as características do meio, tanto as técnicas que determinam seu funcionamento quanto as econômicas e sociais que definem como se sustenta, moldam o comportamento dos usuários.
Tanto emissores quanto receptores vêm a ser mais condicionados pelo meio do que pelos conteúdos que, em abstrato, aspirariam a receber ou transmitir. Na maioria dos casos, acabam por se conformar ao que o meio exige deles, o que é parte do negócio. A pretensão das empresas de internet, desde o início, foi revolucionar o mundo sem se responsabilizar sobre os resultados, ou seja, comer o bolo e ficar com ele.
Para fugir de regulamentações, quiseram apresentar-se como plataformas neutras, nas quais o usuário seria o único responsável pelo que publica e encontra. Nunca foi assim, mas foi preciso surgir um desafio à hegemonia de Washington para se questionarem suas práticas.
A partir do momento em que as plataformas estabelecem regras para seu uso e selecionam ou priorizam por meio de algoritmos aquilo que o usuário conseguirá ver ou transmitir, tornam-se tanto censoras quanto editoras. Se monopolizam meios cada vez mais vitais para a socialização e as comunicações cotidianas, adquirem um poder sobre a opinião pública superior ao de qualquer jornal ou rede de tevê, quer o usem elas mesmas, quer o aluguem a quem puder pagar.
Isso mesmo antes de se levar em conta de que dispõem de mais informações sobre gostos e opiniões de cada usuário do que qualquer regime totalitário jamais possuiu sobre seus mais vigiados dissidentes. E, na medida em que o lucro depende de convencer os anunciantes de sua capacidade de prever e predizer aonde seus usuários vão, o que compram e onde clicam, convém torná-los mais previsíveis, limitar suas escolhas e convencê-los a imitar outros.
As empresas de mídia tradicionais deram-se conta da perda não só de relevância como também de independência, agravada a partir de março de 2015, quando o Facebookanunciou a intenção de hospedar os sites de notícias, a começar por The New York Times, BuzzFeed e National Geographic. A intenção era esvaziar os sites próprios desses meios e acostumar os usuários a receber notícias apenas por meio da rede, além de forçar a mídia a publicar de acordo com suas regras.
Além de renunciar ao paywall (exigência depois relaxada) deveriam publicar Instant Articlessimplificados, aceitar os anúncios que o Facebook quisesse associar às suas matérias e deixá-lo ficar com dois terços da receita de publicidade.
Para ter sucesso, os textos deveriam ser curtos e “virais”, ou seja, sensacionalistas. Um texto mais longo custa mais a ser compartilhado, um texto mais ponderado dá menos chances ao usuário de ganhar “curtidas” ao compartilhá-lo com seus afins.
Segundo uma matéria da revista Wired de 12 de fevereiro, em uma conferência de julho de 2016 a News Corp. de Rupert Murdoch e seu executivo Robert Thomson puseram o Facebook de Mark Zuckerberg e o Google de Larry Page e Sergey Brin contra a parede e os ameaçaram com uma campanha mundial pela investigação e regulamentação das empresas de internet se não oferecessem um acordo melhor à mídia tradicional e desistissem de tentar tomar o seu lugar.
Parte da resposta do Facebook foi demitir, em agosto, os jornalistas que até então priorizavam os Trending Topics ou “Assuntos do Momento” e deixar a questão na mão de engenheiros, cujos algoritmos teoricamente técnicos e imparciais favoreceram ainda mais o sensacionalismo exaltado à custa do jornalismo profissional. Foi um dos fatores a facilitarem a explosão das chamadas fake news na reta final da eleição presidencial.
Se os russos as promoveram com um objetivo estratégico, não foi menor o papel de oportunistas independentes ao criá-las apenas para serem replicadas por eleitores indignados (principalmente, mas não só, republicanos) e lhes proporcionar receitas de publicidade.
Um sistema que automaticamente promove mensagens com base no número bruto e rapidez de cliques, curtidas, compartilhamentos e comentários torna-se cada vez mais sensacionalista e competitivo, pune argumentos complexos e alimenta divisões, ódios e rancores. Como se não bastasse, a rede e seus anunciantes exibem postagens e enviam sugestões aos usuários com base em afinidades prováveis de interesses segundo estatísticas acumuladas pela rede.
Descobriu-se, por exemplo, que quem gosta de séries sobre zumbis tem mais chances de apreciar propaganda e notícias contra a imigração. Daí é um passo para sugerir seguir uma página que promove a campanha antivacinação ou outras teorias conspiratórias fascinantes e receber cada vez mais delírios e menos informação e debate racional.
Não parecia grave enquanto a rede era um passatempo marginal e minoritário, mas, após envolver uma parte tão grande de uma população e do seu tempo, seus efeitos não podem mais ser ignorados.
Assim como o lobby armamentista insiste em que a solução para a violência provocada por armas é “pessoas de bem” se defenderem com mais armas, o Facebook e similares pediram mais engajamento de usuários dispostos a defender pontos de vista racionais, sugestão fútil se o dinheiro determina o poder real de promover narrativas e usar “robôs” – perfis automáticos ou pagos – para aplaudi-las ou vaiá-las em massa.
No início de 2018, a reação às redes e buscadores cresceu e alguns governos, principalmente europeus, começaram a exigir restrições ao discurso violento e preconceituoso, à distorção do debate político, à manipulação do noticiário e das buscas e à difusão de boatos claramente falsos, sob pena de regulamentos mais estritos.
O Facebook então anunciou que deixaria de promover notícias e passaria a priorizar a comunicação local e entre parentes e amigos. Isso nada faz por arejar o debate, enfraquece o jornalismo e foi uma facada nas costas para muitos veículos que, desde 2015, investiam na rede social.
As críticas aos gigantes da internet e propostas de regulamentação ganharam mais espaço nas mídias tradicionais, com alguns gestos indignados, como a decisão da Folha de S.Paulo de abandonar sua página na rede.
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Redes e buscadores tentam outros gestos para amenizar as críticas, tais como controlar ameaças e difamações e restringir a multiplicação de “robôs”. Entretanto, seus algoritmos continuam a ser totalmente opacos e a história mostra como a autorregulação, se geralmente é uma farsa, o é e mais ainda em setores monopolizados. Quando muito, tais medidas incentivam a manipulação a se tornar mais sutil e difícil de detectar.
Citemos umexemplo intrigante. A Omidyar Network, criada por Pierre Omidyar, criador do eBay e do PayPal, investe em ONGs para promover “participação cidadã” e “alianças entre líderes empresariais e sociais” em vários países do Sul, tais como a Fundação Avina, criada pelo empresário suíço Stephan Schmidheiny, com sede no Chile e forte presença no Brasil.
Outra das organizações apoiadas por essa rede neste país é a ONG Nossas, que, entre outras iniciativas, criou a “primeira chatbot feminista do Facebook”, chamada Betânia ou Beta, com a qual as interessadas podem entrar em contato pelo Facebook Messenger para obter informações sobre a luta feminista e receber alertas para se mobilizar por pautas específicas.
Ao contrário, digamos, da Atlas Net-work, dos irmãos Koch e parceiros, que atuam nestas latitudes para promover ideias conservadoras e “libertarians” por meio de organizações como o MBL e o Instituto Millenium, a Omidyar Network identifica-se com pautas “liberais”, no sentido estadunidense (relativamente progressista) da palavra. Mas o que é um algoritmo feminista?
Entre feministas de carne e osso, o movimento é muito plural e inclui correntes divergentes, às vezes com teses opostas sobre questões importantes. Como decidir quais informações merecem ser divulgadas e quais pautas merecem mobilização?
Sejam quais forem as intenções de quem o programou, pode servir para domesticar um movimento social e influenciá-lo na direção desejada pelo patrocinador, como parecem visar outras promoções da mesma organização.
Enquanto empresas transferem postos de trabalho a robôs de modo a reduzir o controle da produção e do comércio por trabalhadores reais, redes e buscadores dão plataformas a algoritmos para diminuir ainda mais o controle dos debates culturais, dos movimentos sociais e políticos e da própria “opinião pública” por cidadãos reais, em ambos os casos em favor dos detentores de capital. Compreendemos ainda menos as consequências a longo prazo da segunda tendência do que as da primeira, até por ser menos visível, mas podem ser ainda mais sérias.
O holofote da investigação da “influência russa” revelou a pontinha de um iceberg de cuja verdadeira complexidade só começamos a desconfiar e tem ao menos o mérito de chamar a atenção para o problema, incentivar investigações e dar credibilidade a quem está disposto a expor as questões em jogo e formular propostas para limitar suas piores consequências.
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