quarta-feira, 29 de agosto de 2018

O Riocentro e seus ecos ainda hoje

Cinema

O Riocentro e seus ecos ainda hoje

Notas de Silvio Da-Rin esclarecem o contexto e suas motivações para realizar o documentário 'Missão 115', que chega aos cinemas para dialogar com o momento atual

 
23/08/2018 13:50
Divulgação
Créditos da foto: Divulgação
 
O projeto
Quando vi pela primeira vez as imagens do que restou do Puma depois da explosão da bomba no colo do sargento Rosário, no dia seguinte ao atentado do Riocentro, imediatamente me dei conta de que eram muitas as implicações daquele atentado e havia ali um tema a ser desenvolvido para um documentário. Durante mais de três décadas fui reunindo em uma pasta o que era publicado na imprensa sobre o atentado no Riocentro: sua imediata repercussão, as sucessivas tentativas de apuração ao longo dos anos e as conexões com outros eventos da história política brasileira das últimas décadas.

O título
O próprio DOI-CODI denominou "Missão 115" aquela suposta “ação de vigilância” de um espetáculo. Desde logo Missão 115 me pareceu um bom título: curto e intrigante, sem ser auto-explicativo. Como de resto, os títulos de todos os documentários que realizei. Títulos devem ser instigantes. Devem manter relação com o tema da obra, mas não precisam revelar seu conteúdo. O melhor é que sejam sugestivos e estimulem a decifração.

O personagem
O fator decisivo para viabilizar os trabalhos de pesquisa e preparação do documentário foi a publicação, em 2012, do livro Memórias de uma Guerra Suja, contendo a entrevista a uma dupla de jornalistas do ex-policial do DOPS capixaba Claudio Guerra. Convertido à religião evangélica e pastor, no livro Guerra assumia ter integrado uma das cinco equipes de agentes que haviam participado do atentado no Riocentro. Conta detalhes da operação  e revela quem a planejou e comandou. 



Em 2014 o Ministério Público Federal ofereceu denúncia contra seis sobreviventes do atentado: o civil Claudio Guerra e cinco militares a serviço do SNI e do I Exército. Materiais jornalísticos sobre o atentado mostravam claramente o compromisso de todos eles com o sigilo absoluto sobre o crime. Com exceção de Claudio Guerra, que já começava a fazer revelações. Ele tornou-se então o principal entrevistado de Missão 115.

As provas
Nossa pesquisa foi enriquecida com a divulgação do Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, em dezembro de 2014. Entre os documentos analisados, destacam-se os papéis achados na casa do coronel Julio Molinas Dias, que havia sido comandante do DOI-CODI na época em que explodiram as bombas no pátio do Riocentro. Parte crucial daquela documentação é o minucioso registro, hora a hora, feito por Molinas dos fatos ocorridos na noite do dia 30 de abril, na madrugada de 1º de Maio e nos dias subsequentes. São citados nomes e codinomes dos envolvidos, agentes do I Exército, da Polícia Civil e do SNI. 

Os documentos evidenciam o envolvimento de toda a cadeia de comando da operação, incluindo o general Gentil Marcondes, comandante do I Exército, e o general Newton Cruz, chefe da Agência Central do Serviço Nacional de Informações – SNI, com sede no mesmo andar do gabinete do presidente da República, no Palácio do Planalto.

A estrutura
Depois de tentar dois tratamentos diferentes para o roteiro, elaborei juntamente com o corroteirista Bernardo Florin um tratamento que intercalava entrevistas, materiais jornalísticos e uma série de encenações do trabalho de um terrorista anônimo, fabricando bombas, planejando atentados, desenhando panfletos e queimando documentos sigilosos. Esse dispositivo visava envolver o espectador na atmosfera do mundo clandestino do terrorismo de Estado. Nunca vemos o rosto do personagem, somente suas ações.

Uma das principais características do terceiro e último tratamento de roteiro foi a divisão da narrativa em três blocos. No primeiro apresentamos um sujeito coletivo, o “grupo secreto”, reunião de policiais civis e agentes militares que conspiraram contra a abertura democrática e partiram para o terrorismo. 

O segundo, “O desastre”, mostra a explosão prematura da bomba que matou um sargento do Exército, abortando o plano terrorista preparado para o espetáculo que reunia quase 20 mil pessoas no pavilhão do Riocentro. Esse bloco mostra a construção da versão farsesca apresentada pelo I Exército e seu unânime repúdio pela imprensa e por instituições da sociedade brasileira. 



Por fim, o terceiro ato, “A impunidade”, aborda o significado atual da Lei da Anistia, o hipotético desaparecimento dos documentos dos órgãos de informação da ditadura e os trabalhos das comissões nacional e estaduais da Verdade.

As imagens do show
Um dos achados de nossa pesquisa foi a gravação integral, pela Rede Bandeirantes, do espetáculo musical promovido no Riocentro pelo Centro Brasil Democrático, o Cebrade, presidido por Oscar Niemeyer. Chico Buarque e Fernando Peixoto haviam  sido os diretores artísticos do evento, que reuniu cantores do quilate de Clara Nunes, Gal Costa, João Nogueira, Cauby Peixoto, Simone, Gonzaguinha e seu pai Luiz Gonzaga, o homenageado da noite. 

Adquirimos os direitos para uso de imagens desses quatro últimos, o que dá ao espectador uma noção da atmosfera vibrante do show e da dimensão da tragédia que teria ocorrido caso as bombas tivessem explodido dentro do pavilhão, que tinha suas portas de emergência trancadas e as equipes de segurança e atendimento médico de emergência desmobilizadas por ordem do  coronel Newton Cerqueira, comandante da PM do Rio de Janeiro.

A atualidade
Sempre acreditei que documentários sobre temas históricos cumprem melhor seus objetivos quando não se limitam a reconstituir eventos passados, mas procuram lançar luz sobre o momento presente e o futuro da sociedade. Nos últimos meses me parece ter aumentado a atualidade do terceiro bloco de Missão 115

A Procuradoria Geral da República caminha no sentido de uma releitura da Lei da Anistia e começa a admitir a apuração de crimes contra a Humanidade. Documentos da CIA recentemente trazidos a público mostram que os generais Geisel e Figueiredo eram cientes das torturas e do assassinato de inimigos do regime militar, mesmo aqueles que militavam em organizações que não defendiam a luta armada. 

Torna-se cada dia mais inverossímil a  tese de que prontuários e outros documentos dos órgãos de segurança e informação da ditadura foram descartados – isso não se coaduna com os princípios e o modus operandi daquele tipo de organismo, que tem a informação como sua principal matéria-prima e razão de ser. Cópias daqueles documentos continuarão saindo da sombra e trarão importantes revelações sobre os anos de chumbo. Por outro lado, as recomendações da Comissão Nacional da Verdade continuarão a ser examinadas por pesquisadores e forças políticas da sociedade brasileira.

Veja o trailer do filme: 



Leia a resenha do crítico Carlos Alberto Mattos

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