MONJA COEN: É LAMENTÁVEL BOLSONARO ESTIMULAR O DISCURSO DE ÓDIO
Monja budista Coen Roshi o estímulo ao discurso de ódio pro parte de Jair Bolsonaro "tem afetado de uma forma não tão boa a sociedade. Estão acontecendo muitos casos de abusos, de violência"; segundo ela, o ódio "foi estimulado nessa ideia de que nós temos um grande inimigo"
10 DE NOVEMBRO DE 2018 ÀS 19:37 // INSCREVA-SE NA TV 247
Annie Castro, Sul 21 - De um lado, a importância de respeitar o vencedor de uma eleição, seja ele quem for. De outro, a necessidade de estar alerta e se levantar, caso seja necessário. As ponderações são da monja budista Coen Roshi, que esteve em Porto Alegre esta semana para participar da 64ª Feira do Livro, onde realizou, na última quinta-feira (8), uma palestra e sessão de autógrafos de seu novo livro “Zen para Distraídos: princípios para viver melhor no mundo moderno”, obra que, segundo Coen, funciona quase como um manual de zen budismo.
Nos últimos anos, a monja esteve muito presente na mídia e nas redes sociais devido ao lançamento de obras como “A monja e o Professor”, “O Sofrimento É Opcional” e “O inferno somos nós: do ódio a uma cultura de paz”, escrito juntamente com o historiador Leandro Karnal, e ao sucesso do canal MOVA no Youtube, que publica vídeos de palestras e falas da Monja sobre o zen budismo e a influência das práticas budistas no cotidiano. O canal atualmente tem mais de 832 mil inscritos.
Além disso, ganhou destaque por manifestações envolvendo seu posicionamento político. Uma das ocasiões foi quando Coen Roshi participou de um protesto contra o impeachment da presidenta Dilma Rousseff (PT), em 2016; outra, em julho deste ano, quando visitou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), na sede da Polícia Federal em Curitiba.
Em conversa com o Sul21, ela falou sobre o momento político atual, o fortalecimento do discurso de ódio no país, a laicidade do Estado e sobre como o budismo pode auxiliar a sociedade em um contexto de ódio e medo. A respeito da recente eleição, ela defendeu que é importante que as pessoas compreendam que a alternância no poder faz parte do jogo. “A dificuldade é essa, aquele que perde não ficar com raiva e jurar vingança, que é o que eu acho que aconteceu contra a presidenta Dilma. O grupo que perdeu ficou com raiva e tirou ela de lá. E com isso levou o nosso país a essa situação que está agora. Quer dizer, o ódio que foi gerado naquela campanha eleitoral não esmoreceu, pelo contrário, ele foi estimulado nessa ideia de que nós temos um grande inimigo, que é esse partido, o personagem que é o líder desse partido, e, se isso sair, o país vai ser feliz e vai crescer”.
Confira abaixo a entrevista completa:
Sul21: Você conhece pessoas adeptas ao zen budismo que votaram em Bolsonaro?
Monja Coen: Eu dei uma entrevista para um menino e ele deu um título infeliz, que eu não falei. Dizia “quem é budista não vota em Bolsonaro” e eu não cheguei a falar isso. O que eu falei é que o verdadeiro pensamento budista é de não violência, de não agressão. Nosso princípio é não fazer o mal, fazer o bem a todos os seres. E depois, nós temos dez preceitos que falam: não matar, não roubar, não abusar da sexualidade, não mentir, não negociar intoxicantes, não falar dos erros e faltas alheias, não se elevar e rebaixar os outros, não ser movido pela ganância, pela raiva e não destruir o princípio das três jóias. Então, se eu seguir esses valores eu não poderia estar votando em uma pessoa que está ameaçando o outro de morte, que está dizendo que tem seres inferiores a outros e que fala dos erros e faltas alheios. Mas se a gente olhar direito, o PT também falou dos erros e faltas alheios. Então, a coisa ficou mal. Eu insistia muito para falarmos só as coisas boas que podemos fazer.
Mas existe sim. Por exemplo, aqui na nossa comunidade em Porto Alegre, um monge fez uma grande divulgação do Bolsonaro. Em São Paulo. Tem membros da comunidade, aqui em São Leopoldo também, que são a favor do Bolsonaro. E são pessoas que dizem que não aguentam mais do jeito que está, toda essa violência, não estão repartindo os bens, servidores estão sem receber. No Rio de Janeiro também, a esposa do governador com muitas jóias e a população muitas vezes sem nada. Quem está vendo isso está falando que não quer mais e exigindo uma mudança há muito tempo. Então, o fato de querer uma mudança faz votar num personagem que é muito diferente dos anteriores.
Sul21: Qual o perigo de misturar religião e Estado?
Monja Coen: Eu acho que o Estado é laico. E a nossa população tem direito de escolher sua religião, nós não podemos impor uma religião. E temos visto essa imposição acontecer.
Sul21: Podemos ver isso com o fortalecimento da Bancada Evangélica, por exemplo?
Monja Coen: Temos visto isso com a Bancada Evangélica, e mesmo antes de ela existir já havia, em todos os órgãos públicos, crucifixos. A minha pergunta é: por que isso? Ou você põe símbolos de todas as tradições espirituais ou nenhuma. Todas as salas de justiça tem um crucifixo, que história é essa? São todos cristãos e cristãos de uma determinada ordem, porque os evangélicos não gostam de Jesus na cruz. Eles gostam de Jesus pregando, falando, vivo, e não só o sofrimento dele. Nosso país é um país onde Estado e religião sempre estiveram muito ligados. A Igreja Católica era a grande eminência parda de todos os governos e agora está passando pros neopentecostais. Nós estamos tendo uma mudança, mas uma mudança cristã, do cristianismo da Igreja Católica passando esse poder para os grupos neopentecostais. Resolveram agora também pegar uma parte da população muito ligada ao candomblé e à umbanda e fazer uma campanha muito grande contra as tradições de origem africana. O que é um horror, não tem porque fazer isso. Os coitados já vieram escravizados da África para cá, foram proibidos de manter sua cultura e agora aqueles que ainda mantêm um traço disso são ameaçados de morte. É vergonhoso que estejamos vivendo isso. É lamentável.
Sul21: Como o budismo pode ajudar a sociedade nesse momento de ódio e medo?
Monja Coen: Eu acho que a gente tem que trabalhar um pouco respiração consciente, trabalhar um pouquinho de autoconhecimento. Esse é o ponto que eu estava falando para você do autor de Israel [Yuval Noah Harari]. Ele fala que a solução da transformação social da humanidade é meditação. Quando nós começarmos a entender o que é a mente humana, como funciona, e a usarmos de forma adequada, nós vamos ter pessoas menos agressivas, menos violentas, mais participativas e compartilhando da realidade para um bem maior. Enquanto o ego estiver mandando no pedaço, vai ser muito difícil. Mas quando você sai do eu menor, você se percebe esse eu maior em que você é a vida da terra, que você está inter relacionado a tudo e a todos e tem um compromisso ético. Ética é fazer o bem pelo bem, sem medalhas nem nada em troca. Quando acessarmos esse nível de consciência vamos ter um mundo melhor do que está agora.
O mais interessante é que a vida é um movimento de transformação. Então, você vê que quando um lado se fortifica, o outro lado aguarda o momento, também se fortifica e vem com a força contrária. O que nós temos agora é um momento de paciência e perseverança, de não desistir de nossos propósitos. Quando eu falo de resiliência quero dizer que às vezes a gente tem que se fazer pequeno e mais calado, para deixar essa onda de violência e agressão passar. Não precisa ficar respondendo o outro. Como que os princípios, os direitos humanos, o respeito à vida na sua pluralidade podem ser mantidos? E se eles são mantidos pelas pessoas, elas podem até ser tolerantes com aquilo que seria intolerável, que são os pensamentos neonazistas. Devemos saber que esses pensamentos existem, que também são humanos, mas não devemos deixar crescer. E já que esse personagem que usou essa linguagem se tornou o presidente da nação, que a gente possa orar para que ele tenha uma expansão de consciência e, como disse o assessor dele quando ele foi eleito, que Jesus lhe dê sabedoria para transcender um pensamento menor e ser realmente o presidente de todos, não de poucos. Mas isso não impede que exista oposição. Não digo para ficarmos calados. O que se falou nesse período eleitoral foi grave, foi sério, perigoso, e é necessário que, caso algo nessa linha se encaminhe para ser concretizado, a população esteja alerta para se levantar e dizer não, há certas coisas que não podemos concordar e aceitar.
Eu acho que o discurso foi para ganhar a eleição. E ele ganhou. O discurso de ódio teve um propósito. Vou pegar todos os insatisfeitos e vou dizer “nós os insatisfeitos não aguentamos mais e vamos pegar as vias de fato para acabar com isso”. Aí o outro lado era o partido que ficou 13 anos no poder com uma campanha ferrenha de oposição. E também tinha a grande mídia enfatizando o tempo todo que um personagem desse partido não presta, que é ladrão, aí as pessoas acreditaram. Então, tivemos uma população dizendo “não voto neste, mas também não voto neste”. E não votaram. Anularam o voto ou foi branco. Nós temos uma parte muito grande da população que se eximiu. E eu falo que é um crime isto. Quando você se omite você está favorecendo um dos lados. De forma indireta você favoreceu um dos lados. E esse é o resultado que a gente teve.
A gente sabe que a manipulação e a psicologia de massa existem desde muito tempo atrás. Isso foi muito bem usado, não só aqui no Brasil, mas em outros países também. Você cria uma instabilidade, cria medo, põe notícias que são de espanto, então você joga uma fumaça em cima da realidade e apresenta uma solução e um salvador. Nós vamos querer sempre um bode expiatório também, que será o mal, e quando nos livrarmos dele seremos uma sociedade feliz e boa. Isso é criado e recriado de tempos em tempos por diferentes grupos políticos e partidos políticos. Quase todos fazem isso. Tem sempre um inimigo terrível que precisa ser vencido, ele é perigoso, vai acabar com tudo e eu vou salvar você disso. Foi isso que os dois grupos fizeram nessas eleições. Infelizmente, os dois usaram uma estratégia muito semelhante. Só que um deles foi mais hábil, soube usar melhor as redes sociais, soube desenvolver a raiva de um determinado grupo em cima de um partido, de um personagem. O outro grupo também quis dizer “esse é o mal” em função de suas falas de discriminação, de preconceito, que são errôneas, mas ao mesmo tempo esse candidato simbolizava alguém que ia libertar as pessoas de um mal dito maior. Isso tudo é um jogo de mídia e de estratégia. Um deles teve uma estratégia um pouco melhor e que foi bem atendida por causa de um momento histórico que não é só nacional, mas que é internacional também. A gente vê o neonazismo surgindo na Alemanha de novo, a gente vê na Europa que movimentos fascistas também estão ressurgindo.
Sul21: Esse discurso de ódio tem se voltado muito para parcelas da população que são, historicamente, desassistidas. Como você enxerga a eleição de alguém que, até certo ponto, fomenta esse discurso?
Monja Coen: Acho que é lamentável. E parece que tem afetado de uma forma não tão boa a sociedade. Estão acontecendo muitos casos de abusos, de violência. Parece que as pessoas entenderam que eu posso bater em quem eu quiser, que se eu estiver com raiva eu posso agredir alguém, que se eu bater em uma pessoa que é homossexual ela vai deixar de ser, que negros não devem ter cotas nem nada, que índios não devem ter terra. O que é isso? Há toda uma virada de pensamento. E isso veio atender uma parcela da população que pensava dessa maneira mas estava dentro do armário. Porque não é só gay que fica dentro do armário, os violentos também ficam escondidinhos e, de repente, alguém diz que é permitido dizer o que você acha e que é bonito você dizer que vai bater em quem você não concorda. Fomentou uma doencinha que estava latente, quase que foi como se estivesse dando uma permissão para manifestar atos de violência e de grosseria, quando eu acredito que nem mesmo esse senhor tivesse essa intenção. Talvez ele não tivesse alcance de que a maneira que ele estava falando provocaria isso. O discurso de posse dele já foi bem diferente e eu acredito que, se ele quiser se manter no poder, ele vai ter que seguir mudando essa fala e esse pensamento.
Sul21: Na sua visão, podemos perceber esse ódio ao outro em movimentos como #EleNão e PT Não?
Monja Coen: Pois é né, copiaram a mesma coisa. Pra quê? Um defendendo a democracia e atacando um pensamento que é de extrema direita, e o outro atacando um pensamento petista. Criamos um bode expiatório que está morto e afastado, que não pode participar. Criaram uma polaridade, dois pensamentos que não foram capazes de conversar. Não houve diálogo, só xingamentos e ofensas. Eu acredito que nós, como humanidade, precisamos dar um passo adiante.
Eu não assisto um programa muito conhecido que se chama Big Brother Brasil, mas, para mim, essa campanha política estava muito parecida com esses programas. Quem falar mais bobagem, quem insultar mais o outro, vai ter mais popularidade. E vai pegar uma camada da população que não sabe muito bem em quem votar, e se tornará tão absurdo que ela vai vê-lo e vai votar nele. Eu acho que isso foi usado pelos marqueteiros, eu acho que é lamentável e já foi usado anteriormente. Um exemplo são nas eleições de 2014, que criaram essa polaridade. Foi lá que surgiu, não é de agora. E eu acho uma pena que se faça isso. A coisa toda é poder, o que as pessoas querem é poder. Ele é muito mais forte que a riqueza. E ficam todos embriagados por quererem atingir esse poder. E é muito perigoso quando a gente põe o dinheiro, o poder, na frente do bem estar da população.
Eu estive com o professor Clóvis de Barros Filho em um programa onde um menino perguntou pra ele se corremos risco com esse novo presidente. Ele disse que “depende do que você imagina que seja uma sociedade ideal. Desde que nós mantenhamos os princípios democráticos, onde existem três poderes. Desde que cada um dos poderes mantenha o seu poder, e que não haja ninguém querendo ficar para sempre no poder. Que quando haja mudança de poder, que as pessoas compreendam que faz parte do jogo, e que ninguém fique com raiva de ninguém”. A dificuldade é essa, aquele que perde não ficar com raiva e jurar vingança, que é o que eu acho que aconteceu com a presidenta Dilma quando ela entrou. O grupo que perdeu ficou com raiva e tirou ela de lá. E com isso levou o nosso país a essa situação que está agora. Quer dizer, o ódio que foi gerado naquela campanha eleitoral não esmoreceu, pelo contrário, ele foi estimulado nessa ideia de que nós temos um grande inimigo, que é esse partido, o personagem que é o líder desse partido, e se isso sair o país vai ser feliz e vai crescer.
Eu espero ainda que haja um despertar de consciência, não da população porque ela já fez sua escolha. Mas nós temos que lembrar que 42 milhões não votaram, foram votos brancos ou nulos. E 47 milhões foram votos para o Haddad. Então, nós temos 89 milhões que não concordaram com esse governo. Dizer que 57 milhões é o pensamento do Brasil está errado. Não é, não é maioria e, por isso, vai ser um governo muito difícil.
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