Sem-teto se organizam após incêndio na Ocupação Prestes Maia
Crianças de banho tomado e uma já dormindo. Ao mesmo tempo a merendeira desempregada Lucilene Aparecida França, 34 anos, preparava o jantar da família à espera do marido, o autônomo Rodrigo de Jesus Pereira da Silva, que havia saído com a filha para vender água na noite do centro de São Paulo. De repente, “Fogo, fogo!”. Os gritos de uma vizinha, somados a batidas na porta, transformaram a tranquilidade em desespero.
Lucilene só viu uma fumaça preta e já não enxergava mais nada à sua frente. Tratou de pegar dois dos filhos no colo enquanto a vizinha pegava outros dois. Ela ainda sacou roupas do varal, as molhou num balde. Cobriu as crianças e partiu para o breu de um corredor de cerca de 20 metros que levava à escada para sair do quarto andar da do Bloco A da Ocupação Prestes Maia, no centro de São Paulo, que hoje ainda detém o título de maior ocupação da América Latina. O edifício que tem saída para a avenida Prestes Maia e para a Rua Brigadeiro Tobias, um dia, abrigou uma fábrica têxtil, a Companhia Nacional de Tecidos.
Ao vencer a fumaça, Lucilene precisou sentar-se no primeiro degrau da escada — ainda faltavam 64 degraus, outros vinte e cinco metros de corrida e mais uns passos entre os andares até a saída para o intacto Bloco B, acessível pelo primeiro andar do edifício.
Lucilene nem teve muito tempo de respirar e logo foi incentivada a seguir, em meio ao caos que estava na escada, com moradores descendo em fuga e moradores da equipe de brigadistas subindo pela escada.
A merendeira foi motivada a se levantar e seguir rapidamente pela dona de casa Tayla Lanzoni, 23, moradora do barraco mais longe da saída, na esquina mais extrema à escada do sexto andar do prédio, que abrigava de 13 a 15 famílias e foi onde começou o incêndio da noite da última quarta-feira (21/11).
Quando foi alertada do incêndio, Tayla fazia um penteado em sua filha de quatro anos, Emily Vitória, para já adiantar a saída matinal para a escola no dia seguinte. Também estava com seu filho, Alex Sander, 7 anos, uma gata, a Gatinha, e a cachorra Lola. A vizinha Jamile Neves, 20, foi quem provavelmente viu primeiro o incêndio e logo a chamou, assim como fez com os demais moradores do último andar com habitantes da construção. Do sétimo ao nono não havia mais morador.
“Eu via o fogo no meio do corredor, voltei, peguei documentos, minha filha e ela meu filho, quando voltei, em segundos, o fogo já estava em mim. Cobri o rosto da minha filha e vi o Daniel [outro vizinho] com o extintor. Quando ele disparou o extintor, o fogo baixou e passei no meio da fumaça. Cheguei sem ar na escada. Mas continuei. Era muita gente subindo e descendo”, lembrou Tayla, horas depois de vivenciar o drama, que vitimou Gatinha e provavelmente Lola, desaparecida até a noite do dia seguinte, horário em que a reportagem deixou a Ocupação Prestes Maia.
Vizinha ao barraco onde o incêndio começou, no qual não havia morador algum no momento, Tayla comentou que tinha sentido cheiro de queimado no andar. Entretanto, ela nem se preocupou. Dois barracos ao lado do foco do incêndio era a moradia de Seu Rubens, que trabalha com equipamentos eletrônicos e habitualmente usa solda, o que a impediu de desconfiar de incêndio.
Quando o fogo se espalhou, era tarde, pois apesar de a estrutura do prédio ser de alvenaria, os barracos são divididos por paredes de madeira, material que tem mais facilidade de entrar em combustão.
O cheiro de queimado também havia sido sentido pelo autônomo Flávio Cândido da Cruz, 35, que havia deixado o sexto andar minutos antes do incêndio para trabalhar na 25 de março. Mas ele prontamente voltou ao receber um telefonema da própria Tayla, informando do incêndio e o tranquilizando, pois a mulher — Juliana Alves, 33 — e os filhos — Pedro, 10, e Ana Julia, 5 — estavam em segurança no térreo, como todos outros moradores do sexto andar e de todo o Bloco A, onde vivem cerca de 400 pessoas.
A preservação de 100% das vidas humanas na maior Ocupação da América Latina, que chegou a ter quase 500 famílias, está longe de ter sido obra do acaso, de alguma força superior ou mesmo sorte. Depois da tragédia que foi o incêndio e desabamento do Edifício Wilton Paes, no Largo Paissandu, no último 1º de maio, a prevenção de incêndios passou a ser assunto de máxima importância nas ocupações do centro de São Paulo.
Um trabalho de prevenção passou a ser desenvolvido com o objetivo de preparar moradores brigadistas nas ocupações. Arquiteta da Faculdade Belas Artes, a bombeira civil Ana Flores liderou vistorias e treinou os moradores da Ocupação Prestes Maia.
“Foi o que salvou nossas vidas, com certeza. A gente só vê que vale o trabalho quando precisa”, comentou o líder da ocupação, João Batista do Nascimento, do Movimento de Moradia na Luta por Justiça (MMLJ). “Quando os bombeiros chegaram o prédio já estava todo evacuado e ainda acompanhamos o trabalho dos bombeiros”, disse, orgulhoso do trabalho desenvolvido por ele e os outros brigadistas no incêndio que começou por volta de 21h15 e acabou antes das 23h.
Quando foi alertado pelo filho Jean, de 11 anos, sobre o incêndio, João conta que foi ligar a sirene do edifício, mas alguém já tinha se adiantado na tarefa. A eletricidade foi desligada e ele então ordenou que todos os extintores do bloco B fossem levados para ajudar a conter o fogo e foi ajudar as equipes organizadas para evacuar o prédio e conter o fogo com extintores e hidrantes.
Com os moradores fora do prédio e salvos, os bombeiros demoraram menos de duas horas para conter as chamas, que destruíram praticamente todos os barracos do sexto andar e afetaram ainda os andares de cima, que tinham apenas alguns objetos deixados por moradores.
Os três últimos andares do Bloco A estavam desocupados, assim como alguns do Bloco B, que é mais alto e tem 22 andares. Aos poucos, os moradores da Prestes Maia estão sendo deslocados para outras ocupações do Centro de São Paulo, pois o prédio será restaurado para depois integrar o Programa Minha Casa Minha Vida – Entidades.
O programa, ligado à Secretaria Nacional de Habitação do Ministério das Cidades, está vinculado à Prefeitura de São Paulo para conduzir a solução para a Ocupação Prestes Maia, que estava prevista para 2018, mas já ficou para o ano que vem.
Enquanto isso, desde o incêndio de quarta-feira, todos os moradores do Bloco A foram desalojados e aguardam laudo da Defesa Civil para retornarem a seus lares — e os reconstruírem, quando necessário.
Até a manhã desta sexta-feira, os moradores que não optaram por ir a casas de amigos e familiares provisoriamente ficaram instalados no primeiro andar do Bloco B, pois a vistoria inicial indica que não houve danos estruturais no prédio e apenas o reboco das paredes foi queimado. A previsão indica que eles têm boas chances de voltar rapidamente ao Bloco A.
Em nota, a Prefeitura de São Paulo informa que a SMADS (Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social) atendeu as famílias afetadas no incêndio. “São 320 moradores no total que receberam colchões e cobertores. Quarenta pessoas decidiram ir para casa de familiares e os outros 280 preferiram permanecer no bloco do prédio que não foi afetado”.
A administração também afirma que o edifício faz parte dos prédios ocupados que receberam visita técnica da defesa civil, após o incêndio do Paissandu, e que, na ocasião, as lideranças foram aconselhadas a adotar medidas de segurança para se adequar às normas técnicas vigentes. “A Secretaria Municipal de Habitação e Cohab estão trabalhando juntas na contratação de projetos para 283 unidades habitacionais. Já há um projeto de retrofit para o prédio, que será destinado para habitação social, em análise na Caixa Econômica Federal. O Núcleo de mediação de conflitos da Sehab está em constante contato com os moradores”, informa a nota.
Apesar do susto e do drama vivido na madrugada do incêndio, a reportagem passou mais de cinco horas na tarde de quinta-feira (22/11) no local e testemunhou como a solidariedade é o ingrediente principal da relação dos moradores. Além disso, existe rigorosa organização na Ocupação, com regras básicas como lugar específico para fumar, orientação para o lixo, cuidado e atenção especial às crianças e o emergencial respeito às orientações da Defesa Civil.
Em colchões espalhados pelo saguão do primeiro andar do Bloco B, muitos moradores descansavam em colchões para se refazer da madrugada. Outros, moradores do Bloco B ou da vizinhança, surgiram oferecendo banho e a ajuda que pudessem, inclusive para cumprir missões estabelecidas pela Defesa Civil para agilizar a readequação da edificação para ela voltar a ser habitável, como por exemplo a árdua tarefa de retirar rebocos soltos na fachada.
Ao mesmo tempo, muitas crianças brincavam felizes, mesmo descalças e sabendo que até o chinelo haviam perdido. Elas ainda foram premiadas com a instalação improvisada de uma televisão e comeram, rindo, o lanche oferecido pelo MMLJ a partir de doações.
O clima no saguão, apesar do olhar ainda meio atônito de muitos adultos, nem chegava perto da sensação transmitida no interior do Bloco A, visitado com exclusividade pela reportagem.
O cheiro de queimado era forte desde o corredor do primeiro andar e só aumentou a cada degrau avançado na escada. No sexto andar, o cenário era desolador, com pelo menos 10 barracos totalmente em cinzas. Ou então, nos menos afetados, nada se aproveitava: estavam aparentes carcaças de fogões, geladeiras, guarda-roupas, mesas, panelas, restos de colchões e sofás. Intactos apenas extintores de incêndio e alguns botijões de gás.
Somente os três últimos barracos do sexto andar tinham alguns objetos salvos, mas justamente na última moradia do pavimento queimado estava a única vítima confirmada do incêndio: a Gatinha, deitava de bruços, perto de uma cama de solteiro que tem um cabideiro acima da cabeça que a utilizava para dormir.
Apesar do alívio das vidas salvas, muitos moradores perderam tudo que tinham: roupas, móveis, fogões, geladeiras, televisores, microondas, louças, pias e até máquinas de costura de uma senhora costureira viraram pó.
“O que o fogo não queimou, a água estragou!”, resumiu a merendeira Lucilene, retratando a situação no quarto andar, alvo da água dos bombeiros e lembrando que teve objetos queimados nos andares mais altos e desocupados do edifício.
No sexto pavimento, além da visível perda, Flávio Cândido da Cruz relatou que teve 1.200 reais queimados. A quantia foi guardada por sete meses para garantir as férias com a mulher e o filhos na casa de familiares no interior. Moradores ainda contaram que haviam máquinas de costura de uma senhora que vive desse ofício, que remonta justamente à origem do prédio, que originalmente foi uma fábrica têxtil. Nem a carcaça das máquinas de costura estavam aparentes em meio às cinzas.
Diante da situação, qualquer ajuda aos moradores da Ocupação será de enorme valia. A lista de pedidos urgentes é grande: fralda, leite, bolacha, água, produtos de higiene, alimentos perecíveis ou não, roupas de todos os tamanhos, móveis, geladeiras, fogão. Apesar de a ocupação ser na Avenida Prestes Maia, as doações estão concentradas na Ocupação Mauá, localizada na Rua Mauá, 340, onde há sempre um porteiro para receber as doações, 24 horas por dia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário