terça-feira, 8 de janeiro de 2019

Carta de Coimbra: Para uma liberdade da narrativa vitoriosa

Cartas do Mundo

Carta de Coimbra: Para uma liberdade da narrativa vitoriosa

 

 
08/01/2019 11:57
 
 
Nesses últimos dias vi dois vídeos que me levaram a imaginar uma bolha que pode ser criada a partir de uma narrativa. 

O primeiro, no dia 30/12, passou no canal da SIC, em Portugal, e falava sobre a trajetória do papado na igreja Católica. O vídeo abordava as primeiras escolhas para o papa e a prevalência da promiscuidade, do jogo de interesses e da manipulação das elites para o controle da cadeira mais importante da igreja católica. Além do papado ter sido utilizado como um cargo de herança, onde filhos ocupavam o cargo dos pais, foi motivo de batalhas e muito trabalho político. Com o documentário, aprendemos que o Conclave foi uma das formas que a Igreja encontrou para dirimir as influências sobre as escolhas para o Papa. O vídeo mostrava os avanços e retrocessos da igreja ao longo da história. O teor histórico começa a desvendar o seu objetivo quando relembra que a residência do papa foi, durante quase um século, a cidade fancesa de Avingnon. De acordo com os intervenientes do documentário, cientistas, pesquisadores/as e sacerdotes, a mudança física da residência papal estremecia os fundamentos da Igreja, uma vez que abandonou o alicerce católico significado em Roma, o túmulo de São Pedro.  

Confesso que eu estava assistindo aquilo um tanto atônito. Afinal, lá… em Brasília, sabia que a programação de TV, em época de final de ano, gira em torno dos filmes infantis, valorização extrema da família, filmes de Jesus e noticiário das festas. Um documentário sobre os alicerces da igreja católica? A ser transmitido em uma das emissoras de maior audiência? Nunca vi algo nem próximo a isso. Se bem que, na verdade, documentário não é algo que se constuma passar nas TVs do Brasil, ou o Globo Repórter transmite documentários? Mas, enfim, imagina como eu estava a ver tudo aquilo e ainda lembrar que 80% da população portuguesa declaram-se católicos?  

Mas então, voltando ao documentário… anteriormente a parte da mudança de endereço do papa, também assistimos a problemática que se erguia nos tempos que havia dois papas. A existência de dois papas representava o conflito entre as famílias abastadas ou de interesses que pretendiam controlar a Igreja e, logicamente, a riqueza advinda de seu poder. Mais uma vez, o Conclave foi lembrado como uma forma de evitar essa situação e sinalizar a união da igreja. Depois do apanhado histórico, na última parte do documentário, chegamos aos tempos atuais e entendemos a encruzilhada que a Igreja se meteu por meio da renúncia do Papa Bento XVI, em 11/02/2013. O último Papa a renunciar foi Gregório XII em 1415. Portanto, durante 598 anos não houve renúncias do posto Papal. A escolha do Papa é o pilar da Igreja Católica que define o sucessor de Pedro e a consequente representação da ligação entre a terra e o céu. Por isso, a escolha é uma missão que se tem para a vida. A renúncia de Bento não é crítica pelo fato de existirem dois papas vivos mas pela indicação que a outrora missão de vida não passa de um cargo a ser exercido. Assim como a mudança da residência tocou na fundamentação filosófica e existencial da Igreja, a renúncia de Bento tem a mesma conotação porque se a cadeira papal é apenas um cargo, o sacerdócio é uma profissão e, assim, está longe do “chamado de Cristo”. O documentário ainda tem tempo de acenar para um possível interesse do Papa Francisco renunciar e nos deixa com uma intrigante sensação de acompanharmos os “próximos capítulos” dentro da Igreja.

Não sei precisar o que sentia ao fim do documentário da SIC. Eram misturas inquientantes que me faziam pensar sobre quando teremos documentários que abordam pontos sensíveis de nossa sociedade transmitidos nas grandes redes de televisão e, principalmente, em horário nobre? Poderiam começar por transimitirem Ilha das Flores. São 10 minutinhos que vão lhe perseguir por muito tempo. E se os fatos históricos apontam para questão(ões) real(ais), porque não apresentá-los?

Não são perguntas vazias ou, muito menos, despropositadas. Porque sabemos que os fatos apresentados servem para a construção de uma narrativa específica. E, essas perguntas e a necessidade da narrativa são abordadas no outro vídeo que vi nesse fim de ano. 

O vídeo A facada no mito está disponível no youtube. Apesar de demonstrar um trabalho minuncioso e ter uma qualidade de montagem muito boa, é um vídeo amador. Ao passo que é motivador vermos a confecção de um vídeo a partir dos recursos que temos a disposição, é frustrante perceber que por um trabalho profissional poderíamos ter a melhoria das imagens e a identificação de cada pessoa que aparece. Ou será que esse trabalho já foi feito? Bem, enfim… Os realizadores levam a entender que tudo começou por uma atenção no discurso dos envolvidos, mais precisamente o autor do golpe e seu advogado. Ao ver o vídeo fiquei pensando na(s) pessoa(s) que o elaboraram. Definitivamente são pessoas curiosas. Provavelmente são da área da segurança. Relembro que o golpe foi há três meses. O trabalho de encontrarem aquilo que muitos não querem mostrar, exigiu tempo, esforço, paciência, meticulosidade e inspiração. A inspiração para encontrar a verdade. Pois como ninguém viu a contagem regressiva, feita pelos dedos da mão, que um dos seguranças fez para Bolsonaro antes do golpe? Como que a única pessoa com jaqueta preta desfere um primeiro golpe, subindo nas costas de um segurança e desquilibrando-o? Porque afirmar que o autor do atentado estava sozinho se, claramente, ele tinha ajuda e apoio? Porque as pessoas que formam, continuamente e ao mesmo tempo, um cordão ao redor do presidente e uma linha de acesso para o golpeador? Porque ninguém se preocupa em desarmar Adélio, somente em protegê-lo? E a faca? A camisa? O sangue, que sangue? E o que falar do conflito entre policiais depois do atentado e por dinheiro? E sobre a doação milionária para Juiz de Fora? E, não menos importante, porque o candidato estava sem o seu usual colete de proteção? Enfim, são perguntas simples e diretas que podem ser levantadas pelo perigo em si do atentado ou, mais evidente ainda, da tradição brasileira de se produzir “atentados” para culpar a oposição. Mas nada disso importa, porque a narrativa precisa ser construída. Ao invés da verdade editorial e responsabilidade da comunicação que se encontra fora do Brasil, em nosso país vivemos a bolha fake.

Os comentários sobre a posse de Bolsonaro está por todos os lados, inclusive agora que escrevo estas linhas recebi a ligação para reportagem do canal Shifter, Messias Bolsonaro é o primeiro presságio de 2019. Outros ainda engradecem a aparição da primeira-dama. E eu fico aqui com os meus botões, será que ela sabe que a surdez é uma questão de identidade? Sabe que os surdos e deficientes lutam por direitos civis e não caridade? Tem consciência que, utilizando as palavras de seu marido, são os “vermelhos” que estão a frente do reconhecimento da profissão de intérpretes de libras? Consegue perceber o choque entre a crítica de seu marido ao “politicamente correto” e sua linguagem de sinais? 

A posse responde quase todas essas perguntas e demonstra que o casal nunca pensou que o Politicamente Correto é uma questão de Direitos Humanos. Por isso não há qualquer conflito entre o que ela e ele demonstram para o público. Não há conflito algum entre a insólita comunicação por libras no mesmo palco onde as minorias são rechaçadas e o discurso da meritocracia engrandecido. E a razão da inexistência de conflito ou, no mínimo, de desconforto é porque a base do casal é certa, cativa e que não somente os surdos mas todas as pessoas que atuam no campo da deficiência rechaçam: A CARIDADE. Neste sentido, não é difícil vermos que a caridade do “cidadão de bem” é que vai nortear esse governo e captura dos direitos humanos será um exercício de condecendência e distante da relaidade da luta.

Um bom ano para tod@s e que a narrativa imposta esteja sempre acompanhada de nossas dúvidas.

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