terça-feira, 8 de janeiro de 2019

O que Marx diria dos coletes amarelos

Política

O que Marx diria dos coletes amarelos

Os coletes amarelos fazem parte de uma longa tradição de movimentos populares como o People Party, os Narodniki ou os camponeses parcelários do século XIX. "Momentos do povo" que não anunciam nada mas exacerbam a urgência em reencontrar os caminhos da luta de classes

 
08/01/2019 13:15
 
 


Os coletes amarelos são um objeto não identificado. O movimento não tem precedentes recentes. Apesar de original na França, é de grande banalidade no período atual e está inscrito em uma tradição de mais de dois séculos de movimentos que surgem em conjunturas que misturam mudanças econômicas brutais com o colapso do sistema político.

O movimento une dois símbolos. O colete amarelo, que deve ser usado por quem para o carro numa emergência na estrada, pelos derrotados da economia globalizada. Imobilizados, bloqueiam os trevos das estradas e destroem os pedágios. Os invisíveis tornam-se visíveis. E a bandeira francesa, que tremula nos trevos, é brandida nas manifestações, enrolada sobre o colete, junto com a Marselhesa, entoada repetidamente, inclusive diante dos cordões de isolamento policial. O colete e a bandeira simbolizam as seis características do movimento.

1. Eles definem o "povo" a que os manifestantes se referem, povo muito diverso, mas unido pela mesma experiência de dificuldades sociais.

2. Diante da injustiça, a indignação é menos social que moral. É ela que gera um povo "irado", como muitos escrevem em seus coletes: sua situação é fruto da traição das elites "corruptas" que "se aproveitam" e estão prontas para "vender" o país. O "povo" quer excluir e punir a elite.

3. A rejeição moral leva ao apelo por uma soberania popular direta que se faz ouvir cada vez mais alto à medida que o movimento avança e se traduz em hostilidade contra os órgãos intermediários, a mídia e especialmente os parlamentares. Nem à direita nem à esquerda, o que importa é se dirigir diretamente ao Presidente, de quem pedem a renúncia.

4. O movimento é incapaz de se estruturar, de apontar porta-vozes ou de aceitar uma negociação: tudo isso seria traição e corrupção. Entre o sentimento de injustiça e o apelo ao povo, não há uma estrutura política que organize ou construa as reivindicações que agreguem as muitas demandas. Pouco substancial, o movimento é facilmente manipulável por ideologias mais consistentes, suscetível aos boatos e aberto às teorias da "conspiração".

5. O conjunto toma a forma de um desejo de retorno ao passado, não em uma lógica reacionária, mas para reencontrar os equilíbrios sociais e políticos que garantiriam um futuro mais justo para os "pequenos", permitindo-lhes voltar para casa.

6. Entre o apelo ao povo e as diversas demandas, não há nada além de sentimentos de raiva e um imenso ressentimento. O resultado é a violência: é ela que mantém a integridade do movimento. Trata-se de um curto-circuito que traz para dentro do sistema aqueles que estão de fora. É a única estratégia política possível "para se fazer ouvir".

Os coletes amarelos fazem parte da longa tradição de movimentos populares como os conhecemos, desde o People Party ou os Narodniki no século XIX até o Tea Party, dos quais são um avatar quase ordinário. Mas diferem em uma dimensão: esses movimentos foram marcados por uma forte xenofobia, às vezes por racismo, somado à hostilidade aos pobres que recebem benefícios sociais. Esses temas estiveram presentes, mas permaneceram marginais.

Crise de representação

Marx fez a análise mais sólida desses movimentos, explicando-os através da combinação de mudanças econômicas com dificuldades sociais e crise da representação. Não há quase nada a acrescentar a sua análise. Em 1848, camponeses parcelários se viram diante de profundas mudanças econômicas que ameaçavam sua existência. Assim como os coletes amarelos se manifestando em pequenos grupos dispersos em Paris, seu isolamento não lhes permitia constituir uma categoria unida capaz de se defender. Seus interesses os opunham a outros grupos sociais, e as condições de sua existência os separavam uns dos outros. Não havia laços entre eles, nenhuma organização ou identidade. Incapazes de representar a si mesmos, eles precisavam ser representados, escreve Marx, e esperavam que os representantes e o Estado os protegessem contra as outras classes e especialmente contra as mudanças, a fim de restaurar o "esplendor de outrora". Sua influência encontrava expressão na "subordinação da sociedade ao poder executivo", à política. Marx era violentamente hostil a esse tipo de movimento, rejeitando tanto sua economia moral e o desejo de "volta ao passado" quanto o apelo ao povo e a filosofia da miséria.

Marx enxergava ali o vetor da tomada do poder por Napoleão Bonaparte, o principal apoio a um regime autoritário e forte e uma forma de revolta "primitiva", que marcava o fim de um mundo ao mesmo tempo em que impedia uma nova luta de classes. Como os camponeses parcelários, os coletes amarelos são fruto da desintegração social e da injustiça brutal produzidas por mudanças econômicas que os excluem e do vácuo em que o colapso do sistema político os colocou, especialmente do desaparecimento da esquerda, da qual restam apenas fragmentos caricaturais. São produto de um "momento", o momento do "povo", inaugurado na última eleição presidencial, e que pode durar por muitas décadas, como nos lembram os camponeses parcelários, cuja participação no plebiscito precipitou o colapso da democracia: foi preciso quase meio século até que as lutas de classe se afirmassem pela construção de um movimento operário e de uma esquerda política. Os coletes amarelos não anunciam nada, mas seu movimento popular exacerba a urgência de, partindo deste "momento do povo", refundar a democracia representativa e reencontrar os caminhos da luta de classes.

Didier Lapeyronnie é sociólogo

*Publicado originalmente em liberation.fr | Tradução de Clarisse Meireles

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