Indecente é quem acha que o decote da deputada é indecente. Por Nathalí Macedo
O ano é 2019.
Um deputado usando um chapéu de caubói toma posse com sua esposa no colo, deixando muito claro que, no século em que ele vive, mulheres ainda são posse de seus companheiros e devem ser exibidas como troféus, ornando com chapéus ridículos e nenhuma elegância.
Para completar o show de horrores e cafonagem – isso para falarmos só dos personagens mais pateticamente caricatos dessa cerimônia – outro deputado adentra o recinto com um traje militar e uma bíblia embaixo do braço (sim, em um país supostamente laico, e por que não estou surpresa?)
Com tanta coisa pra se indignar, o que mais chamou a atenção mesmo foi o decote de uma mulher.
Eu já disse que o ano é 2019?
A deputada Ana Paula, quinta parlamentar mais votada de SC, foi achincalhada nas redes sociais por ter usado um vestido vermelho decotado na cerimônia de posse.
“Representante das Prostitutas”, disseram.
Certamente não estão inteirados sobre a carreira política notável de Paulinha, como é conhecida por seu eleitorado: foi prefeita duas vezes de Bombinhas, município de 20 mil habitantes a 70km de Florianópolis, e escolhida também duas vezes como a melhor gestora de Santa Catarina, e uma vez como a melhor gestora do Brasil.
Deixou o governo do município com 90% de aprovação do eleitorado.
E tudo o que se pode falar dela é que usa um decote – pigarreio – “indecente”.
Me poupem.
Indecente é que as pessoas recebam com naturalidade a cena esdrúxula de um deputado objetificando simbolicamente a própria esposa para fins de auto-afirmação, e com tanto estardalhaço uma mulher usando a roupa que bem entende.
Indecente é bíblia como símbolo no Congresso de um país laico.
O pior deste moralismo retrógrado e medíocre é que, parece, para essa gente, tudo o que uma mulher faz tem a ver com homens. Se uma mulher usa um vestido decotado, não pode ser simplesmente porque ela quer usar um vestido decotado: ela quer chamar atenção dos homens.
Esse moralismo, aliás, não é uma exclusividade da direita: aqui mesmo, na nossa bolha, as roupas das mulheres ainda são uma pauta, como se fossem mais importantes inclusive do que as coisas que essas mulheres falam e fazem: para o patriarcado, somos um símbolo, e tudo o que compõe esse símbolo tem, de alguma maneira, uma conotação sexual.
Por exemplo, em um dos meus vídeos aqui no DCM, há mais comentários sobre o decote – completamente despretensioso, e ainda que não fosse – do que sobre o assunto do qual eu falava. “Esse decote é covardia”, disseram, como se o fato de homens feitos não terem maturidade para lidarem com uma mulher que se veste como quer fosse um problema meu. Uma covardia minha.
Não é e não tem a ver com vocês. Nunca. Eu escolho a minha roupa. É minha essa prerrogativa. Se vão apreciá-la ou depreciá-la, pouco me importa: o meu corpo não existe para o deleite ou não-deleite de ninguém.
As minhas roupas não dependem da aprovação ou desaprovação de ninguém. Eu me pertenço, Paulinha pertence a si mesma e continuaremos dizendo isso por quantos anos forem necessários até que os machões moralistas enfim aterrissem no século XXI.
Não, queridos, nem tudo o que fazemos tem a ver com vocês. Às vezes a gente só está com calor. Às vezes a gente nem percebeu que o decote é “covardia”, porque, de acordo ao nosso senso moral, roupas não são convites ou provocações. Às vezes – e tenho certeza que sim – Paulinha só abriu o armário em um dia feliz de sua vida e pensou: “Eu vou ficar linda no meu modelito vermelho.”
E foi. Porque, quer queiram, quer não, nós temos o direito de nos vestirmos como quisermos.
Indagada sobre a repercussão absurda do decote, a Deputada deixou claro que continuaria se vestindo como bem entendesse.
“Olha, quando eu me separei, há sete anos, eu tomei uma resolução para a vida, de empoderamento mesmo: a partir dali, nunca mais deixaria alguém decidir que roupa eu usaria. Isso vale para o namorado e para o resto do mundo.”
Segura a onda, resto do mundo. As mulheres não estão pra brincadeira.
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