Josué de Castro, o homem que ‘descobriu’ a fome
Como cantou o pernambucano Chico Science, “tem que saber pra onde corre o rio, tem que saber seguir o leito, tem que estar informado, tem que saber quem é Josué de Castro... rapaz!”
Jantando num dos restaurantes mais caros do Rio, a socialite Josephina Jordan afirmou ao jornalista Luiz Antônio Ryff, do Jornal do Brasil, que o problema da fome não se coloca no País: “Não existe fome no Brasil; um país em que qualquer um pode comer uma bananinha, um arrozinho... Não existe fome. Aqui não sabem o que é fome.”
Se a declaração soa ridícula, é preciso que se lembre que não foi sempre assim. Quando iniciou sua cruzada contra a fome, o brasileiro Josué de Castro (1908-1973) enfrentou dura resistência. Não se entendia por que tanto bater de caixa por tão pouco, como disse um editorial de jornal de sua época. A reedição de obras de Castro ajuda a mostrar hoje como a consciência do problema mudou.
Na introdução ao Geografia da Fome, publicado originalmente em 1946 e relançado pela Civilização Brasileira, Castro faz um esforço para convencer o leitor de que a fome era, sim, um problema brasileiro e para romper o que chamava de “verdadeira conspiração do silêncio em torno da fome”. “Para aqueles que têm conhecimento da fome apenas através do noticiário dos jornais, reduzem-se a estas duas grandes regiões geográficas – o Oriente exótico e a Europa devastada – as áreas de distribuição da fome, atuando como calamidade social. Infelizmente, esta é uma impressão errada, resultante da observação superficial do fenômeno”, escreveu o pensador, que, formado em medicina, tem hoje seu nome relacionado à geografia, à sociologia, à nutrição e à política.
Passados mais de meio século do fim da 2.ª Guerra Mundial, todo esse esmero de Castro soa estranho. É difícil pensar em fome e lembrar-se da Europa ocidental hoje, mas não era esse o quadro de então. Geografia da Fome tornou-se um clássico mundial – um livro que mudou o mundo, como já foi definido, e que seduziu o cineasta Roberto Rosselini, que, entretanto, não chegou a filmá-lo – justamente porque não foi capaz de se distanciar da ideia que se fazia da fome, então associada às “imagens dos campos de concentração e das cidades e dos campos europeus devastados pela tirania nazi” e a “manchas compactas de ascéticos indianos envolvidos em suas longas túnicas”. Castro não negou a existência dessa fome. Apenas a distinguiu de outra. E isso fez toda a diferença.
No Brasil, objeto de Geografia da Fome e início de um projeto de mapear a fome no mundo, um exemplo ajuda a entender essa diferença.
Nas palavras do geógrafo Milton Santos, morto recentemente, que assinou a apresentação da nova edição: “Josué de Castro mostrou que havia carências alimentares tanto no Nordeste seco quanto na chuvosa Zona da Mata. Mas no Nordeste semiárido, formado pelos sertões, as deficiências nutricionais eram episódicas, ligadas sem dúvida a um déficit periódico na provisão de alimentos, situação que apenas aparentemente era ligada ao clima, já que abaixo do consumo de comida em certas ocasiões devia-se sobretudo à pobreza generalizada da população, incapacitada de fazer transportar produtos alimentares ao seu lugar de residência e até mesmo de fugir para outras áreas.”
Algo bastante diverso ocorria na Zona da Mata: “Já no Nordeste úmido, a fome seria ainda mais grave porque era praticamente permanente; chovia de modo regular, as terras eram consideradas de boa qualidade, mas as populações pobres eram anêmicas e as causas dessa penúria não eram estudadas, nem consideradas. A subalimentação era tida como algo natural. Por isso, Josué de Castro a adjetiva de endêmica. O uso monopolista da terra pela cana de açúcar constituía um impedimento para outras utilizações.”
O problema da fome deixava de ser uma questão apenas climática para virar um problema de gestão pública de recursos e de alteração de uma organização fundiária que não priorizava a produção e a distribuição de alimentos. Em suma, um problema socioeconômico.
Assim como havia as áreas de fome endêmica, permanente, havia as de fome epidêmica, transitória. A partir dessa ideia, Josué de Castro construiu um mapa do Brasil em que identificava as principais carências alimentares do país. Zona da Mata e região Norte, a grosso modo, eram áreas de fome (pelo menos metade da população apresentava “nítidas manifestações carenciais no seu estado de nutrição”) endêmica; o semiárido nordestino, área de fome epidêmica. E, se o Centro-Oeste, Sul e Sudeste não podiam ser incluídos no quadro de calamidade, também ali se encontravam quadros de subnutrição claros.
Mas fazer ciência não era suficiente para Castro, que também foi deputado federal por duas legislaturas (pelo PTB) e presidente da FAO (fundação da ONU para a alimentação e nutrição) também duas vezes. Em 1964, fez parte da primeira lista de políticos cassados: seu discurso era considerado um elemento da agitação comunista.
Para Silvio Tendler, diretor do documentário Josué de Castro – Cidadão do Mundo (1995), em que figuras como Milton Santos e Herbert de Souza, o Betinho, rendem homenagens a Castro, o pesquisador decidiu entrar na política porque não bastaria fazer pesquisa: o problema da fome era também uma questão de governo. Na luta pela implantação de programas como o da merenda escolar, Castro foi chamado de demagogo e corrupto – e ganhou a alcunha de Josué da Fome.
Josué da Fome, apelido que de pejorativo virou homenagem, em Paris, no exílio, onde morreu, escreveu seu único romance, também agora reeditado: trata-se de Homens e Caranguejos (Civilização Brasileira). É um pequeno livro sobre a vida nos manguezais do Recife. Nele, Castro mostra como percebeu o problema da fome. Num relato mais direto, mostra como lutam para sobreviver os moradores dessas áreas, que têm no animal a grande fonte de proteínas, mas, como eles, “filhos da lama”.
Como cantou o pernambucano Chico Science, “tem que saber pra onde corre o rio, tem que saber seguir o leito, tem que estar informado, tem que saber quem é Josué de Castro... rapaz!”
(*) Publicado originalmente no jornal O Estado de S.Paulo de 5 de agosto de 2001.
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