Entrada da Rússia na guerra síria refaz equilíbrio de forças mundiais, mas nada se fala sobre isso
Salem Nasser | São Paulo| Revista Brasileiros - 14/10/2015 - 06h00
O que se pensa em Damasco, em Teerã, em Pequim, não há correspondentes que digam. Não há quem traduza ou transmita o que dizem seus porta-vozes. Não há outro ângulo para olhar o mundo e seus acontecimentos
A Rússia entrou então em força na guerra síria. A questão talvez mais importante da política internacional nestes últimos anos sofrerá transformações profundas. O equilíbrio de forças no Oriente Médio e no mundo está sendo refeito.
Mas entre nós a notícia não é essa. A notícia é a reação dos Estados Unidos à entrada da Rússia, o que os Estados Unidos disseram que pensam sobre o assunto. A notícia é que os Estados Unidos não gostaram, que eles acham que os ataques russos fortalecerão o Estado Islâmico, que causarão a fúria dos sunitas moderados… O mesmo pensam, ou dizem que pensam, o Reino Unido, a França, a Otan…
Agência Efe
Sírios durante protesto favorável à ação russa no país
Sírios durante protesto favorável à ação russa no país
É isso que nos contam os correspondentes desde Nova York, Londres, Paris. É o que nos contam os artigos que alguém escreveu nos think-tanks e universidades dessas mesmas cidades. É o que declaram os porta-vozes desses mesmos governos.
O que pensam os russos e o que se diz em Moscou, ninguém sabe, não é notícia. O que se pensa em Damasco, em Teerã, em Pequim, não há correspondentes que nos digam. Não há quem traduza ou transmita o que dizem os porta-vozes desses outros governos. Não há outro ângulo de onde olhar o mundo e seus acontecimentos.
É um pouco como o lado oculto da lua. Mal nos lembramos que está lá porque o sol que ilumina tudo que vemos, ou, se quisermos, o dono da lanterna, só aponta para onde quer.
O que é verdade para a Síria talvez o seja ainda mais para a Palestina.
“Netanyahu teve que cancelar a sua viagem à Alemanha por causa da violência dos últimos dias”. Foi mais ou menos assim que a apresentadora de um grande canal de informação abriu a notícia. Seguiu contando da mulher palestina que atacou um homem israelense com uma faca e contando que o homem estava armado e atirou nela. E mais, que outro palestino atacou a facadas soldados israelenses e foi morto por eles. E, finalmente, que antes disso alguns palestinos haviam morrido.
Agência Efe
Jovem palestino ajuda companheiro ferido após ação israelense
Jovem palestino ajuda companheiro ferido após ação israelense
A estrutura desse discurso revela muito daquela visão unilateral em que foram treinados espíritos pouco dispostos para a crítica ou mesmo para a curiosidade.
A secretária pessoal de Netanyahu talvez tenha como primeira preocupação o adiamento da viagem. Que a Palestina talvez esteja à beira da terceira intifada é o que deveria ocupar o jornalista. Mas o que fazer se as agências internacionais cujo conteúdo se reproduz não disseram nada sobre isso?
Essa história veio contada assim: alguns palestinos enlouquecidos, ou, sendo naturalmente violentos, resolveram atacar israelenses indefesos que apenas por acaso estavam armados ou soldados que tranquilamente vigiavam uma terra em que até ali reinava a paz.
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Nenhum contexto, nada sobre a ocupação, nada sobre os assentamentos, nada sobre as expulsões dos palestinos de suas casas e sobre a destruição das casas dos palestinos, nada sobre a exclusão dos palestinos da cidade antiga de Jerusalém, nada sobre o novo regime para a entrada na esplanada das mesquitas.
E mais, nada sobre a humilhação cotidiana, nada sobre a ausência de futuro, nada sobre o desespero.
Já aqueles outros palestinos que, in extremis nos é dito, morreram, bem, simplesmente morreram. Como foi, não se sabe, não parece interessar. Foram mortos? A tiros? A facadas? Morreram. Não há mais que interesse à notícia.
Já em outro lugar alguém descreveu assim o que acontece nestes últimos dias: “está aberta a temporada de caça, qualquer soldado, qualquer colono, sabe que pode matar impunemente qualquer palestino”.
Mas isso foi dito lá, em algum lugar do lado oculto. Não temos como ouvir daqui.
*Salem Nasser é professor de Direito Internacional da FGV Direito SP
Texto publicado originalmente pela Revista Brasileiros com título O lado oculto
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