Análise: 17 de abril e o golpe dos escravocratas
A admissibilidade do impeachment é uma derrota para os milhões de argentinos e sul-americanos que simpatizam com a proteção de direitos trabalhistas; o Congresso brasileiro está retrocedendo a história no Brasil e em toda a América do Sul
Ao chamado de um senhor com abotoaduras e sorriso sarcástico, os deputados iam passando um a um para gritar seu voto diante do microfone.
Dez deputados do Estado do Pará votaram “Sim” à admissibilidade do impeachment. Sete votaram “Não”. Um se absteve.
Pablo Vergara/ MST
Protesto realizado no Rio de Janeiro em memória das vítimas do Massacre de Eldorado dos Carajás
Protesto realizado no Rio de Janeiro em memória das vítimas do Massacre de Eldorado dos Carajás
Às 18h30, no Pará, o golpe havia ganhado.
Localizado no Norte, inclinado contra Suriname, Guiana e o Atlântico, o Pará abriga a maior reserva de minério de ferro do mundo e é um Estado rural. Em uma superfície de 1.253.164 quilômetros quadrados (quatro províncias de Buenos Aires e uma Colômbia) vivem cerca de oito milhões de habitantes.
O 17 de abril não é um dia qualquer para o Estado. Nesse dia se completavam 20 anos exatos do massacre de Eldorado dos Carajás, no Pará, quando 19 trabalhadores rurais foram assassinados pela polícia. O jornalista Eric Nepomuceno, um dos correspondentes do Página/12, reconstituiu a história em seu maravilhoso livro O Massacre. Qualifica os assassinatos como “uma das mais frias e emblemáticas matanças da história contemporânea do Brasil”. Todos pertenciam ao MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra), a maior organização social brasileira fora do âmbito sindical.
Há 20 anos o Pará tinha registrados 18 mil camponeses em condição de servidão. Como o salário não era suficiente, ficavam atados ao patrão, o fazendeiro, pelas compras do armazém. Conta Eric que em 2004, já durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), a família de fazendeiros Mutran foi multada em 435 mil dólares por trabalho escravo. Segundo a Pastoral da Terra do Episcopado, somente entre 1971 e 2004 foram assassinados 772 camponeses por reivindicar terras. “É mais perigosos matar um boi que um homem”, escreveu Eric. “Os matadores de gado normalmente são presos e condenados; os matadores de homens ficam impunes.”
Às 17h de 17 de abril de 1996, uma quarta-feira, um total de 155 agentes da Polícia Militar e talvez também pistoleiros paramilitares dispararam contra 2.500 manifestantes do MST.
O governador era Almir Gabriel, do PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira), o mesmo que era encabeçado pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). Quem lembrou o fato foi Valmir Assunção, deputado do PT pela Bahia. Gabriel foi quem deu à PM ordem de dispersar a marcha. Morreu em 2013 sem ter sido investigado nem processado. A Justiça só condenou um coronel e um major. Não se saíram muito mal. Foram detidos em novembro de 2004 e liberados no ano seguinte.
O 17 de abril ficou consagrado como o Dia Mundial da Luta pela Terra.
Nenhum dos dez deputados que no domingo votou “Sim” recordou a matança. Um gritou que votava Sim “contra os ladrões do PT”. Outro vociferou que votaria Sim porque “tenho uma família e um filho de quatro anos e não quero que lhes ensinem sexo na escola”.
No entanto, esses legisladores do Pará e os outros que votaram “Sim” começaram a romper um processo social de integração que necessitava de décadas para afirmar-se e agora pode ficar inconcluso.
Eduardo Cunha, presidente da Câmara dos Deputados e dono do sorrisinho à Giulio Andreotti, é o rosto visível da conspiração para derrubar Dilma e destruir o PT (Partido dos Trabalhadores). O STF (Supremo Tribunal Federal) o processou no mês passado por corrupção no sistema multimilionário de subornos da Petrobras. Ultraconservador, é autor de projetos para instituir o Dia do Orgulho Heterossexual e penalizar com 10 anos os médicos que ajudem a abortar.
Pablo Vergara/ MST
Protestos foram realizados em diversos Estados do país contra a impunidade
Protestos foram realizados em diversos Estados do país contra a impunidade
Cunha passou por partidos menores e terminou se ancorando no PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro), uma constelação de chefes estaduais ligados aos poderes locais. Sem os seus representantes no Congresso, ninguém pode governar o Brasil. O PMDB foi aliado de Cardoso, aliado passivo de Lula e, depois, aliado ativo do PT, a tal ponto que Lula promoveu o peemedebista Michel Temer a vice-presidente de Dilma em 2010 e, de novo, em 2014. O PMDB cogovernou enquanto pôde obter vantagens e deixou de fazê-lo quando a crise econômica começou a ser notada no PIB, que este ano pode encolher 4%. O emaranhado de alianças se baseou na confluência de interesses e distribuição de subornos. Quando a crise e a imperícia de Dilma na gestão presidencial deixaram o principal aliado incomodado, saiu à superfície a distribuição compartilhada por congressistas do PMDB, do PSDB e por alguns legisladores ou funcionários do PT.
É difícil vencer a soma de corrupção mais recessão mais conspiração. Uma presidenta paralisada politicamente quis fugir com um ajuste ortodoxo. O PMDB correu para que o descrédito caísse sobre o PT, Dilma e Lula. Se o Senado afastar Dilma por 180 dias, Temer ficará no Planalto, e, por certo, não promete continuar com as políticas neodesenvolvimentistas de Lula, mas superar a ortodoxia de Joaquim Levy, o primeiro ministro da Fazenda no segundo mandato de Dilma.
Nem o PMDB na versão Cunha-Temer, nem o PSDB de Aécio Neves estão longe de Almir Gabriel, aquele governador do Pará que mandou matar os trabalhadores rurais. Mas o PT, que sempre encarnou as forças opostas aos fazendeiros, ficou enredado e na defensiva. Parecia impossível imaginar então este capítulo para um partido que só sete anos depois da matança, em 2003, começou com Lula a reparação social mais imponente da história do Brasil.
Os deputados que no domingo gritavam como selvagens não são uma raridade. Simplesmente, sua monstruosidade foi televisionada. Assim funciona o Brasil. Em circunstâncias críticas afloram as características racistas, classistas e escravocratas. Os trabalhadores de hoje seriam como os escravos do século XIX ou como os que eram reduzidos à servidão no Pará e não deveriam perturbar aparecendo na casa grande dos senhores. Essas características se transferem a toda a elite e ocultam com uma ideologia tradicionalista e grotesca os interesses dos bancos transnacionais, do grande empresariado nacional que desfralda a bandeira “Renuncia já” na sede da Fiesp (Federação das Indústrias de São Paulo), dos desertores do sistema político e dos gigantescos meios de comunicação, que no caso da televisão aberta formam um monopólio como a Globo. Foi notório no domingo o tom pré-político de muitos deputados que votaram pelo “Sim”. Alguns invocaram seus eleitores. Mas os demais mencionaram seus pais, seus filhos, sua família e até seus amigos como fonte legitimadora do voto. Ou disseram que votavam “Sim” “contra o comunismo”, como Jair Bolsonaro, do Rio, que homenageou o torturador de Dilma durante a ditadura, Brilhante Ustra.
É terrível ver alguém votar em homenagem ao maior torturador que o Brasil já conheceu, diz Dilma à imprensa estrangeira
'EUA não podem continuar intervindo e derrubando governos na América Latina', diz Bernie Sanders
Morre Patricio Aylwin, primeiro presidente do Chile após ditadura de Pinochet
PUBLICIDADE
Os motivos do “Não” foram claros. Como disse Marcelo Castro, um membro dilmista do PMDB, Dilma é honesta, Dilma não roubou, Dilma não tem empresas nem contas no exterior, ou seja, não há delito. E sem delito o julgamento é um golpe.
Se após a admissibilidade votada na Câmara o Senado afastar Dilma e, pior, se depois a destituir, será preciso reler a análise de Ciro Gomes. Ex-ministro de Lula e opositor de Dilma, mas, sobretudo, contrário ao impeachment, disse na revista Carta Capital que, se o golpe se consumar, “não vejo possibilidades de um governo estável nos próximos 20 anos”. Descreveu que no ódio e na raiva confluem três grandes grupos: os eleitores frustrados de Aécio Neves, os afetados pela decadência econômica e os impactados pela “novela do escândalo a cargo dos grandes órgãos da mídia”. Cunha seria a síntese dessa tripla negação. E Temer, a encarnação “da ilegitimidade do governante e do entreguismo aos interesses internacionais, flagrantemente inseridos nesse assunto, sobretudo quando falamos de petróleo”.
Antonio Augusto/ Câmara dos Deputados
Dos 511 deputados que votaram no último domingo, apenas 36 chegaram ao Congresso com votos próprios
Dos 511 deputados que votaram no último domingo, apenas 36 chegaram ao Congresso com votos próprios
O voto de domingo é uma horrível notícia para a Argentina. Mauricio Macri foi endeusado pelos megaindustriais da Fiesp. Mas a persistência da queda econômica e da crise política no principal parceiro da Argentina reduzirá ainda mais as chances de recuperação econômica. Golpeará diretamente a indústria automobilística e minguará as exportações industriais.
A admissibilidade do impeachment é uma derrota para os milhões de argentinos e sul-americanos que simpatizam com a proteção de direitos trabalhistas, com uma maior intervenção do Estado, com políticas reformistas, com a integração e com os Brics (grupo formado por Brasil, Rússia, China e África do Sul) como alternativa em matéria de financiamento sem condicionantes conservadores.
O Congresso brasileiro está retrocedendo a história no Brasil e em toda a América do Sul.
Como disse Patrus Ananias, do PT, voto número 100 contra o impeachment, “é um golpe contra os pobres”.
O golpe dos escravocratas.
--
Texto publicado originalmente pelo site Página/12
Traduzido por Maria Teresa de Souza
Nenhum comentário:
Postar um comentário