Saul Leblon
Muitos dos
que até há bem pouco tempo viviam um exílio de desinteresse político, hoje
consultam a agenda das manifestações contra o golpe para incluí-las entre as
prioridades da semana.
Inclua-se aí
a megaconcentração prevista para o próximo sábado, dia 9, possivelmente com
Lula já ministro chefe da Casa Civil de Dilma.
Estamos
falando da ressurgência pública de democratas e progressistas; de cidadãos e
cidadãs dotados de discernimento político, mas desvinculados de estruturas
militantes; estamos falando de um pedaço da classe média que desmentiu a
unanimidade vendida pelo Jornal Nacional e assemelhados. E o fez em espécie, na
rua, oferecendo-se ao Datafolha para afrontar o monólogo conservador.
Isso não é
pouco.
Na verdade,
significa muito, ao revelar uma singular determinação de resistência no
interior da sociedade –sobretudo daquele segmento que parecia definitivamente
prostrado e perdido para a vida política.
Ainda que
crítica ao governo e ao PT, ao se reconciliar com a rua – onde já estavam os
movimentos sociais e os sindicatos de trabalhadores- a classe média democrática
consolidou uma espécie de piso na luta política: a defesa da legalidade.
Qualquer
degrau abaixo ela considera inaceitável, descabido e não pretende admitir.
‘Não vai ter
golpe’ é o bordão que define essa linha vermelha da consciência democrática,
viral a ponto de ter roubado o espaço do ‘Fora Dilma’, nas últimas semanas.
Mais que
isso.
A ponto de
devolver à equação política brasileiraum elo de esperança em algo ainda maior.
Qual?
Uma frente
ampla e ecumênica, que tenha a legalidade como norte, a pactuação do
desenvolvimento como ferramenta, e a democracia social como meta para superar
essa que é uma das mais desafiadoras encruzilhadas do desenvolvimento do país.
Um ciclo se
esgotou; a definição do próximo carece de um projeto hegemônico que o conduza.
O mergulho no
abismo conservador não é um risco afastado. Mas ostenta hoje uma probabilidade
inferior à de ontem e, ao que tudo indica, superior a de amanhã.
Ou não será
isso que diz o grito histérico da ‘Folha de SP’ na primeira página deste
domingo, onde estampou um editorial para admitir que o impeachment micou?
O golpismo
ainda alardeia um consenso devastador na demolição da alternativa progressista.
Mas a mudança no estado de espírito da classe média democrática altera
rapidamente o perfil das ruas, praças, segmentos sociais etc.
Há vetores
por toda a parte. Não apenas em eventos no Palácio do Planalto, a causar
estupefação à direita e a seus porta-vozes.
Na última
sexta-feira, em São Paulo, por exemplo, o cantor Criolo desfraldou uma faixa no
palco no meio do seu show. A mensagemfoi rapidamente endossada pela plateia que
entoou em coro: ‘Não vai ter golpe; não vai ter golpe...’
Ninguém
noticiou. Mas aconteceu.
Repetiu-se na
mesma sexta-feira, em Brasília, no show da cantora Tulipa Ruiz, que abriu o
microfone para a plateia engajada no mesmo verso.
Ocorreu algo
semelhante no show de Caetano para 150 mil pessoas, no sábado, no Farol da
Barra, em comemoração aos 467 anos de Salvador. Ao som do estribilho ‘Odeio’, o
público respondia, ‘Cunha’. Ao final, parte da plateia puxou o grito "Não
vai ter golpe’. E Caetano sorrindo respondeu: ‘Não vai’.
Repita-se: é
viral.
Assim também
como o foi, guardadas as proporções, em 1964.
Enquanto o
golpe permitiu certa liberdade, as mais expressivas figuras da classe artística
e intelectual ergueram uma barragem de resistência democrática, que desembocou
em enfrentamentos direto de rua, em 1968.
O passo
seguinte foi a repressão violenta, a censura, a extinção dos partidos, a
supressão das liberdades políticas e o fim das garantias individuais.
O golpismo
parlamentar atual, dirigido por um condomínio da vigarice, com reacionários e
endinheirados, terá que percorrer a mesma viagem ao inferno se quiser calar
aquilo que já é incontrolável.
Embora o
editorial da Folha de domingo (3) conceda a existência de uma ‘minoria
expressiva’ que atrapalha o impeachment (seja lá o que significa esse oxímoro
político), o fato é que a coisa avança em espirais, tornando descabida a lógica
do jornal, que passa a pedir a renúncia de quem já não acredita que se possa
apear do poder.
Fosse mais
jornalístico o veículo dos Frias admitiria o broto novo que viceja na aridez
política do país.
A classe
média democrática, que se imaginava aposentada para a rua, troca olhares
cúmplices, sorrisos camaradas, lembranças afetivas no reencontro entre
personagens que se conheceram e se perderam em algum ponto da linha do tempo, na
luta por liberdade e justiça no país nas últimas décadas.
A traumática
experiência de governar um capitalismo ainda sem condições de modificá-lo
integralmente, iria acometê-la de um misto de prostração, cansaço e descrédito
nos anos recentes.
Por todas as
razões, erros, concessões e cercos sabidos - regularmente discutidos em Carta
Maior- isso se traduziu, primeiro, no afastamento da intelectualidade
progressista em relação ao governo e ao PT. No campo despovoado de sentido e
identidade progressista deu-se a fuga da classe média democrática.
Especialmente
sensível à fiança de credibilidade que a arte e a inteligência exercem na sua
relação com a política, é esse protagonista que refaz agora o caminho de volta,
ajudando a lotar praças, desenrolando bandeiras, desenferrujando jingles,
flertando com a esperança ao abraçar a defesa da legalidade.
Que projeto
crível de futuro será capaz de entusiasmá-lo a ir além?
Não qualquer
‘além’.
Mas aquele
capazde unir seu peso ideológico à força
política de dezenas de milhões de outros personagens representados pelos
movimentos sociais, os sindicatos e as centrais de trabalhadores do campo e da
cidade.
Esse é o
desafio de uma verdadeira repactuação, que não se confunde com a operação
emergencial de juntar o rescaldo da governabilidade implodida para apagar o
incêndio do golpe legislativo.
Sem o
principal, o emergencial rapidamente será consumido na brasa dormida das
conspirações.
Evitá-lo
implica um inusitadodesassombro para agarrar a régua do tempo e restabelecer as
pontes entre o espírito de 2002 - quando a esperança venceu o medo em
gigantescas mobilizações eleitorais- e a
reinvenção do passo seguinte do país em 2016.
Não se negue
as adversidades históricas superlativas que distinguem os dois momentos.
Aquele,
favorecido pela ampla janela de oportunidade do início de um ciclo de alta das
commodities no mercado mundial, agora em parafuso descendente. Sem esquecer o
noviço entusiasmo com um projeto que até então não vivenciara, ainda, as
fraquezas, tropeços e rendições no moedor de ossos e sonhos que é governar o
capitalismo brasileiro com minoria no Congresso.
É desse
mirante de adversidades, mas também de sangrento amadurecimento, que avulta a
importância do ressurgimento do ‘espírito de 2002’ nas ruas de 2016.
A expressãoé
emprestada de um documentário de Ken Loach, de 2013 (‘O Espírito de 45’), em
que o cineasta britânico traça o painel da construção e do desmonte do Estado
do Bem Estar Social na Inglaterra, desde a sua arrancada épica e esperançosa no
pós guerra, à destruição promovida pelo neoliberalismo de Margareth Thatcher.
Na montanha
desordenada de ruínas que restou, Loach condensa o foco em uma idosa que
vivenciou as duas pontas da história.
‘Não há mais
nenhum país para os pobres’, desabafa essa heroína às avessas. ‘Estaremos
acabados se o governo conseguir terminar com o Serviço Nacional de Saúde’,
lamenta diante da última trava na porta despedaçada dessa que foi uma das
fortalezas da civilização.
Indagado por
que fez esse filme, Loach adicionou subversão à geologia histórica: ‘Porque a
sociedade hoje não funciona; é o caos. E para que as pessoas pensem no que pode
ser feito, outra vez, na promoção do bem-estar social. Meu filme é para lembrar
o que já conseguimos’.
O ‘45’
brasileiro foi em 1988, quando conseguimos estampar direitos sociais universais
numa Constituição paradoxalmenteescrita na contramão do Zeitgeist da época.
A Carta
Cidadã afrontaria a ascensão das reformas neoliberais em marcha, desde a
Inglaterra de Thatcher (e antes ainda, do Chile, de Pinochet, em 1973),
oferecendo-se aos ‘refugiados’ do país como um bote para remar seu anseio por
pátria e cidadania.
Com as
virtudes e defeitos sabidos (a hesitação com a reforma agrária entre elas), a
Constituição promulgada em cinco de outubro de 1988 esticou o pontão dos
direitos sociais ao ponto mais avançado permitido pela correlação de forças que
derrubou a ditadura.
Conduziu-a um
impulso gigantesco de ondas sobrepostas. Da resistência heroica à ditadura, aos
levantes operários surpreendentes registrados no ABC paulista nos anos 70/80;
às ruas tomadas pela avassaladora campanha das ‘Diretas Já!’, impondo o fim da
opressão militar ao país.
Trincou ali o
mar glacial da desigualdade que a censura e a tortura protegiam.
O degelo
esticaria a fronteira da democracia com a repactuação da sociedade a cargo da
Constituinte de fevereiro de 1987.
‘Não é a
Constituição perfeita, mas será luz, ainda que de lamparina, na noite dos
desgraçados’, profetizou então Ulysses Guimarães, na promulgação da carta,
dezenove meses depois.
A lamparina
dos desgraçados teve no ciclo de governos do PT seu reconhecimento como bússola
da democracia e guia do desenvolvimento.
Avanços podem
ser contabilizados no cumprimento de políticas sociais, na aplicação de
direitos trabalhistas, no acesso ao crédito, à escola, à moradia, no direito à
segurança alimentar, na recomposição do poder aquisitivo do salário mínimo, na
soberania nacional, na defesa das riquezas nacionais–tudo como previsto no
espírito da Carta Cidadã.
Os que viviam
na soleira da porta, do lado de fora do país, atravessaram a fronteira do
mercado e bateram na porta da cidadania.
Hoje formam
53% da população e 46% da renda nacional.
O conjunto de
certa forma soldou em um só destino a sorte da Carta, a do partido que dela
divergiu em 1988, mas se tornou seu mais fiel escudeiro, e a das gentes que ela
dignificou na lei.
Um dos elos
mais importantes desse entrelaçamento foi o ganho real de70% no poder de compra
do salário mínimo desde 2002, com extensão plena aos aposentados do campo e aos
beneficiados por idade e invalidez.
Estamos
falando de um contingente de 18 milhões de brasileiros. Multiplique-se isso por
quatro dependentes: temos aí um universo de 70 milhões de pessoas.
Não é preciso
validar integralmente o ciclo de governos iniciado em 2003 para admitir que a
obediência ao espírito de 1988 sacudiu placas tectônicas do apartheid
brasileiro.
Acrescente-se
ao degelo, o alcance de outras políticas pertinentes à promoção da segurança
alimentar, caso do Bolsa Família, por exemplo.
O bote
inflável passa a abarcar um contingente adicional de doze milhões de famílias
–mais de 48 milhões de pessoas que viviam exiladas em seu próprio país.
No meio do
caminho eclodiu uma crise mundial.
A mediação
dos conflitos do desenvolvimento perdeu o amortecedor do bolo em expansão.
À ‘fase
alegre dos consensos’ sucedeu-se a espiral de acirramento da luta de classes,
até atingir o capítulo atual de guerra aberta das elites, aquarteladas para o
golpe ‘saneador’.
O tripé
formado pela ‘lamparina dos desgraçados’, por eles próprios e pelo PT tornou-se
intolerável aos olhos do dinheiro grosso.
Deriva daí o
ódio de classe hoje justificado pelos ‘desmandos do lulopetismo’, que
transborda para as ruas na caça aos vermelhos, até alcançar sua síntese
explosiva no caso da médica que recusou atendimento a uma criança cuja mãe é
vinculada ao ‘inimigo’: o PT de Lula.
Aquilo que
latejou em banho Maria dentro das caçarolas francesas no período de alta do
ciclo econômico, borbulha agora na violência clássica que ‘as classes produtivas’
dispensam aos que dependem dos fundos fiscais e das políticas públicas para
almejar a dignidade pactuada na Carta de 1988.
Dissimulado
em responsabilidade orçamentária e cruzada ética, está em curso uma guerra
social dos muito ricos contra os muito pobres e os trabalhadores remediados.
A
Constituição de 1988 não cabe no equilíbrio fiscal, os pobres não cabem na
sociedade, o mandato de Dilma não cabe numa almejada restauração neoliberal, o
PT não cabe na paz social que o livre capitalismo requer.
Não é só o
impeachment, portanto.
O que está em
marcha é um acerto de contas histórico, uma espécie de conjura do filé mignon
(que a literalidade da FIESP serviu às barricadas do golpe, na Paulista), cujo
cardápio é a rejeição esférica da elite à vasta maioria de brasileiros que
reivindica fazer parte da nação.
Esse é o
espírito do golpe de 2016.
A tarefa da
repactuação progressista, portanto, consiste em agarrar a Constituição Cidadã
com as duas mãos, transformando-a de estorvo dos endinheirados, em ponte retransmissora
do espírito de 1988 e 2002 para o futuro brasileiro.
A exemplo da
resistência ao impeachment, trata-se de unir o país em uma frente pela
legalidade constitucional, opondo a ‘lamparina dos desgraçados’ à conjura do
filé mignon.
Há requisitos
organizativos para que isso tenha sucesso.
Promovê-los,
ao lado de frear a recessão e o desemprego, é a razão de se lutar pela
integralidade do mandato da Presidenta Dilma Rousseff.
A ninguém
ocorre fazer das milhões de famílias, trabalhadores e jovens beneficiados pelas
muitas políticas e programas sociais e setoriais do governo, uma correia de
transmissão de conveniências políticas e ideológicas.
Mas a
construção do Estado social brasileiro prevista na Carta de 1988, e a do
desenvolvimento que ele requer, não avançará se menosprezar a organização dos
interesses catalisados pelas políticas populares dos últimos dez anos.
Esse foi –ao
lado da omissão na regulação da mídia, o pecado capital do ciclo degovernos do
PT.
A
despolitização da agenda do desenvolvimento explica boa parte da encruzilhada
atual do país.
Uma mistura
equivocada de economicismo e busca de indulgência junto aos detentores da
riqueza cimentou o pragmatismo cego que creditou às gôndolas dos supermercados
a tarefa de promover a consciênciapopular na defesa das conquistas acumulados
desde 2003.
O PT e uma
parte de seus dirigentes – mas também círculos de seu entorno aliado-
deixaram-se hipnotizar pela miragem do boom de commodities, como se capitalismo
fosse o consenso e não a tensão na história.
Durante um
período longo demais, muitos dentro do governo e do partido acharam que essa
era uma ‘não-questão’.
Que tudo se
resolveria com avanços incrementais no consumo, que se propagariam das
geladeiras abastecidas para a correlação de forças da sociedade, em uma espiral
ascendente e virtuosa.
O absenteísmo
em relação às bases, às ruas e à luta ideológica; a inexistência de canais de
comunicação próprios com a sociedade, tudo parecia tangencial diante do
persuasivo poder de compra do tíquete médio, numa gincana em que todos
ganhariam.
Ganharam, de
fato. Mas era um ciclo, não o ’novo normal do capitalismo’
A eclosão da
desordem neoliberal em 2008 sacudiu esse interregno de conforto, expondo com
virulência o reduzido grau de tolerância conservadora à construção da
democracia social prevista na Carta de 1988.
Daí para o
enfrentamento bruto entre arrocho ou tributação da riqueza dos endinheirados,
foi um pulo que levou ao olho do furacão em que nos encontramos.
Uma primeira
pista para sair dele é não atribuir à economia aquilo que compete à correlação
de forças decidir.
Em outras
palavras, a repactuação de um novo ciclo de investimento com distribuição da
riqueza é indissociável do avanço da democracia participativa no país.
Uma
Conferência Nacional das Mães do Bolsa Família, por exemplo, que fazem do
Brasil a referência mundial na luta contra a fome e a miséria, por certo
adicionaria nervos e musculatura nessa equação.
Conferências
nacionais dos bolsistas do Fies e do Prouni; bem como conferências extraordinárias
da reforma agrária, da saúde, da educação, da cultura, do petróleo, da
comunicação etc. deveriam fazer parte da ferramentaria democrática nesta hora
decisiva da repactuação nacional.
Ou será que
apenas a família Frias tem direito de expor na primeira página o que advoga
como futuro para a sociedade e o desenvolvimento?
Se a ideia
for apenas respirar, basta de fato contrapor ao dikitatmidiático a redivisão do
butim com partidos nanicos da base esfacelada no Congresso.
'Mas se o
objetivo for mais amplo do que apenas respirar por aparelhos, então a
resistência à lógica regressiva dos ‘gastadores de gente’, como dizia o saudoso
Darcy Ribeiro, terá que ir além.
Ir além
significa fazer do espírito de 1988 e 2002 o guia para o passo seguinte do
desenvolvimento brasileiro.
www.cartamaior.com.br 04/04/2016
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