sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Contra o golpe

Elza Soares contra os homens

Os versos são de Vinicius de Moraes, o poetinha ex-diplomata que nunca chegou a ser o mais progressista dos brasileiros. A música é de Baden Powell, que no final da vida extirpou a palavra “saravá” de suas canções e substituiu os antigos cantos de candomblé pela religião evangélica. Transtornado por Elza Soares, o “Canto de Ossanha” (1966) de Baden e Vinicius constituiu-se, para boas entendedoras, no grande momento político da cerimônia planetária de abertura das tristes Olimpíadas do Rio de Janeiro.
Foi um recado explícito, cortante e 100% feminino ao “macho” traidor Michel Temer, a grande estrela negativa da noite universal. “Coitado do homem que cai no canto de Ossanha traidor“, cantou Elza em meio ao espetáculo de despolitização transnacional, com ênfase aberta, indignada, às sílabas do (des)qualificativo traidor. Obra de gênio, de gênia.
O homem que diz “sou” não é. Porque quem é mesmo é “não sou”.
O homem que diz “tô” não tá. Porque ninguém tá quando quer.
Para filtrar tais versos e trazê-los a 2016 é necessário apenas ser boa entendedora, bom entendedor. É necessário apenas não ser robô.
Brasileiras devotas da democracia assistimos atarantadas à escalada de repressão testada nas Olimpíadas do Brasil. Tropas de choque avançam sobre o Rio de Janeiro e São Paulo para calar o “fora Temer“. A lei dos homens olímpicos faz de tudo para escorraçar a política das arenas esportivas. Policiais militares transgridem ínfimas leis para oprimir professoras que desejam se manifestar em arena contra o golpe de estado em curso.
A cerimônia transcorre apática, dirigida à política do anódino, obediente à blitzkrieg endoidecida para preservar a “integridade” do golpe. Fracos diante da máquina de moer sonhos, esportistas e artistas se movem como o grande rebanho big brother aboiado pela Rede Globo aqui no país tropical abençoado pelo golpe. Até que Elza adentra a arena, já bastante machucada pelo tempo e pela violência cotidiana disparada preferencialmente contra as carnes mais baratas do mercado branco.
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Sentada impávida rodeada por três jovens mulheres de carne negra e cabelos black power, Elza não faz nada mais, nada menos que ressuscitar o “Canto de Ossanha” de 1966, ano 2 da ditadura civil-militar de 1964.
Irmã preta da “Maria Moita” (1964) de Nara Leão (e Vinicius e Carlos Lyra), Elza devolve a voz à voz feminina que foi suprimida da “grande” “festa” dos “homens” “atléticos”: Dilma Rousseff.
“Amigo sinhô, saravá, Xangô me mandou lhe dizer/ se é canto de Ossanha não vá, que muito vai se arrepender/ pergunte pro seu Orixá, o amor só é bom se doer”, avisa Elza, a mandinga feminina resplandescente contra as ditaduras masculinas onde tudo o mais ensaia se calar.
O preço da traição será enorme para todos os pactuares do corte, adverte a mandingueira soberana. O semblante de Temer, sombrio por inúmeros motivos, é a prova viva de que a melhor de todas as cartas abertas chegou a seu destinatário. Nem precisávamos mais das vaias.

(p.s.: Todas nós, brasileiras que precisamos de democracia, temos um grito uníssono de celebração para acalentar o triste início dos Jogos da Exclusão e da Vergonha: viva Elza Soares!)

Editor de FAROFAFÁ, jornalista e crítico musical desde 1995, autor de "Tropicalismo - Decadência Bonita do Samba" (Boitempo, 2000) e "Como Dois e Dois São Cinco - Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa)" (Boitempo, 2004)

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 Nota: observem que a edição da apresentação de Elza Soares sabotou a grande intérprete: corte, som reduzido, locutor interrompendo...  Isso é o que a Globo faz!
Glauco Gouvêa

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