Gilmar Mendes e a quebra da legalidade
A elites econômicas sempre tiveram a seu dispor juristas competentes para "corrigir" o processo eleitoral
por Roberto Amaral
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publicado
12/08/2016 13h45
José Cruz / Agência Brasil
Gilmar Mendes: ele sabe o que faz
O presidente do TSE, o inefável ministro Gilmar Mendes,
após inexplicado café da manhã com a cúpula do PSDB, determinou a
abertura de processo com vistas à cassação do registro do Partido dos
Trabalhadores (PT), o partido da atual presidente da República e do
ex-presidente Lula, enfim, partido que ganhou as quatro últimas eleições
presidenciais.
A proscrição de um partido politico não é fato trivial em uma democracia. Na República inaugurada em 1946, no governo do Marechal Dutra e no auge da Guerra Fria, foi cassado o registro do Partido Comunista do Brasil que emergiria após mais de uma década de clandestinidade elegendo pouco mais de uma dezena de deputados federais e um senador (Prestes).
A exclusão dos comunistas do sistema político-partidário é consumada em janeiro de 1948, com a cassação dos mandatos de todos os parlamentares. Em seguida, o Brasil rompe relações diplomáticas com a União Soviética, caminhando para além das recomendações do Departamento de Estado dos EUA.
A última vez em que tivemos cassação de partidos políticos – e foram todos os de então – ocorreu com o Ato Institucional nº2, de 1965, sustentado pelas baionetas do regime castrense.
O ministro Gilmar Mendes, “aquele que não disfarça”, é relator das contas de campanha da presidente Dilma Rousseff. Apesar de aprovadas essas contas, o ministro, militante irresignado, continua pedindo apurações, determinando diligências.
Foi também esse ministro o relator do mandado de segurança interposto pela advogada Marília de Paula Silveira – (professora do Instituto do qual o ministro é sócio majoritário) – com pedido de liminar, por ele concedido, impedindo a posse de Lula na chefia da Casa Civil da presidente Dilma e assim interferindo, direta e deliberadamente, na crise politica, visando ao seu agravamento e a uma saída contra o governo Dilma.
Não estamos diante de fato isolado, mas da demonstração de como o STF, por um de seus membros e agora presidente do TSE, participa, como ator, do golpe de Estado atípico em curso hoje no Senado Federal.
A iniciativa do ministro é concertada na primeira instância com iniciativas que – desde Sergio Moro até um juiz anônimo de uma vara federal do Distrito Federal, passando pelo Ministério Público de São Paulo – visa a, depois da humilhação e do linchamento moral, de que se encarregou a grande mídia, transformar Lula em réu, em condenado, em presidiário, afastando-o de qualquer possibilidade de disputa das eleições prometidas para 2018.
O golpe quer garantias de longevidade. Aliás – e eis um segredo de polichinelo – Lula já está, e de há muito, condenado, e para sua prisão já foi preparada a opinião pública; resta engendrar a acusação e organizar o processo.
Na insaciável fome de poder do novo Moloch não basta, portanto, a apropriação do mandato de Dilma Rousseff; mesmo ainda não concluída a manobra do impeachment, os presumidos novos donos do poder já cuidam de evitar o retorno dos decaídos.
Se é impossível derrotá-los seguindo o rito democrático das eleições, eliminem-se Lula e o PT. Se é impossível afastá-los da liça, elimine-se o processo eleitoral. É preciso liquidar o PT e jogar ao mar suas cinzas para que jamais renasçam, seja ele mesmo, seja o que chegou a representar no processo político brasileiro, incluídas as lutas sociais e sindicais e a organização popular pós-ditadura.
Esse é o preço antecipadamente cobrado para que tenhamos as eleições de 2018, porque essas terão de ser eleições consagradoras do status quo: o projeto neoliberal-conservador não pode ter sua continuidade ameaçada pela soberania popular.
O sistema tem viva a memória de 1965, quando o varguismo golpeado em 1954 retornou ao poder com as eleições de Juscelino e Jango.
Eleições sim, mas apenas com segurança.
O que fazer, porém, com as regras do jogo democrático? Às favas com elas, como louvava o coronel Jarbas Passarinho, recomendando ao general Costa e Silva a assinatura do Ato Institucional nº5, conhecido como ‘o golpe dentro do golpe’.
O honrado senador Cristovam Buarque (com quem tive a honra de integrar o primeiro ministério do presidente Lula, não sei se ele ainda se lembra disso), na companhia de seus agora colegas Romero Jucá e Ronaldo Caiado, dirá que tudo isso está na ordem natural das coisas, lembrando um certo personagem de Voltaire: "tudo vai pelo melhor no melhor dos mundos possíveis".
Só não vê o curso do golpe quem não quer. Ou quem não pode vê-lo para não entrar em crise com o próprio passado. E o golpe que nos assusta não é apenas este que se apresenta ameaçando efetivar a troca da presidente eleita por um vice perjuro e sem voto, porque o golpe é isto que se expõe à luz do dia, mas é também o que se escamoteia, o que se sonega, o que está por vir e que apenas se insinua nos atos do governo interino: a regressão social, a regressão política, a regressão econômica, a regressão conservadora. Enfim: a busca retroativa do passado travestido de modernidade.
O golpe em curso se distancia do putsch e da quebra da legalidade, o que, aliás não representa qualquer novidade em nossa história, pois as elites econômicas sempre dispuseram de juristas competentes todas as vezes em que tiveram de intervir para ‘corrigir’ o processo eleitoral, pois o nosso presidencialismo admite eventuais vitórias de representantes de forças populares dissociadas do bloco hegemônico.
Esse golpe, contrariando o modelo clássico, não veio de surpresa, nem lançou mão da violência clássica. Tampouco se construiu de uma vez; é golpe de caráter continuado, que se instala através de manobras sucessivas, peça por peça, que, começando pela tomada do poder político, caminhará para a construção de uma nova hegemonia, conservadora, nos planos político e econômico.
Cuidadosamente planejado, instala-se como uma efetiva sedição levada a cabo nas entranhas do poder. Na busca do formalismo legal (os autores dos golpes, de todos os golpes em todo o curso da história, deles se envergonham), o golpe adquire sua feição transformista com a roupagem do impeachment, mas de um impeachment sem o crime de responsabilidade exigido pela Constituição, num julgamento de cartas marcadas, com votos já negociados e já anunciados.
É o velho e sonhado projeto político-empresarial que, com o concurso de setores majoritários do Poder Judiciário (em suas diversas instâncias, inclusive no STF) e de setores da burocracia estatal e do Ministério Público Federal, objetiva a remoção de um governo legítimo, derivado do voto e comprometido com os interesses populares, e sua substituição por um arranjo das elites para pôr em prática, projeto em curso, uma agenda antipopular que nenhum candidato defenderia em campanha eleitoral, e cuja efetivação – quem viver verá — exige um governo autoritário amparado por uma ordem legal adequadamente revista, como, aliás, já vivemos mais de uma vez, na história republicana.
É a promessa de uma ‘ditadura de novo tipo’, como primeira consequência do golpe parlamentar. Do pacto de elites receberá o apoio estrutural necessário, enquanto os meios de comunicação assegurarão o monopólio ideológico, fechando o círculo.
No altar desse pacto governante brilha o poder do chamado “mercado”, o ‘Rei sol’ da modernidade, agente político sem carteira de identidade, sem CPF, sem residência conhecida, sem rosto, mas (por isso mesmo?) onipresente, poderoso, vigilante, fazendo efetivos seus interesses de classe. O projeto, de hoje e de sempre, não é necessariamente a presidência da República – o poder simbólico –, que pode ser exercido por delegação (como, aliás, ocorre nesta interinidade), mas o poder real, que já abocanhou com garras e presas e dele não se deixa apartar, como a hiena faminta que não abandona a presa.
É o controle do Ministério da Fazenda e suas adjacências, do Banco Central, do comércio externo, abocanhado pelo delatado chanceler, eterno presidenciável.
O ‘primeiro-ministro’ desse parlamentarismo de conveniência é o banqueiro goiano assalariado da banca internacional, Henrique Meirelles, cuja missão (ele cumpre missão, não se trata de sujeito histórico), anunciada, é um programa que compreende juros altos, ajuste rigoroso para os pobres e facilidades para o 1% que controla a avenida Paulista, livre fluxo de captais, flexibilização dos direitos trabalhistas e mais restrições aos aposentados, revisão das politicas de compensação social, desarticulação da escola pública, fragilização do Estado e desnacionalização da economia – a começar pela desmontagem do pré-sal.
Enfim, trata-se da implantação de governo que, como a gestão Campos-Bulhões de 1964, só pode ser sustentado por um regime burocrático-autoritário, naquele momento uma ditadura franca, agora, uma ordem constitucional ‘revisitada’ que dispensará a voz das casernas.
O que nos espreita no horizonte a olho nu é algo mais profundo, mais sério e ameaçador do que uma tradicional troca de guarda. Entre o céu e a terra há algo mais que a troca de Dilma por Termer. De uma forma e de outra, sem que a soberania brasileira tenha sido ouvida, perpetra-se o fim do Estado de bem-estar social prometido pela Constituição de 1988.
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Fonte: Carta Capital
A proscrição de um partido politico não é fato trivial em uma democracia. Na República inaugurada em 1946, no governo do Marechal Dutra e no auge da Guerra Fria, foi cassado o registro do Partido Comunista do Brasil que emergiria após mais de uma década de clandestinidade elegendo pouco mais de uma dezena de deputados federais e um senador (Prestes).
A exclusão dos comunistas do sistema político-partidário é consumada em janeiro de 1948, com a cassação dos mandatos de todos os parlamentares. Em seguida, o Brasil rompe relações diplomáticas com a União Soviética, caminhando para além das recomendações do Departamento de Estado dos EUA.
A última vez em que tivemos cassação de partidos políticos – e foram todos os de então – ocorreu com o Ato Institucional nº2, de 1965, sustentado pelas baionetas do regime castrense.
O ministro Gilmar Mendes, “aquele que não disfarça”, é relator das contas de campanha da presidente Dilma Rousseff. Apesar de aprovadas essas contas, o ministro, militante irresignado, continua pedindo apurações, determinando diligências.
Foi também esse ministro o relator do mandado de segurança interposto pela advogada Marília de Paula Silveira – (professora do Instituto do qual o ministro é sócio majoritário) – com pedido de liminar, por ele concedido, impedindo a posse de Lula na chefia da Casa Civil da presidente Dilma e assim interferindo, direta e deliberadamente, na crise politica, visando ao seu agravamento e a uma saída contra o governo Dilma.
Não estamos diante de fato isolado, mas da demonstração de como o STF, por um de seus membros e agora presidente do TSE, participa, como ator, do golpe de Estado atípico em curso hoje no Senado Federal.
A iniciativa do ministro é concertada na primeira instância com iniciativas que – desde Sergio Moro até um juiz anônimo de uma vara federal do Distrito Federal, passando pelo Ministério Público de São Paulo – visa a, depois da humilhação e do linchamento moral, de que se encarregou a grande mídia, transformar Lula em réu, em condenado, em presidiário, afastando-o de qualquer possibilidade de disputa das eleições prometidas para 2018.
O golpe quer garantias de longevidade. Aliás – e eis um segredo de polichinelo – Lula já está, e de há muito, condenado, e para sua prisão já foi preparada a opinião pública; resta engendrar a acusação e organizar o processo.
Na insaciável fome de poder do novo Moloch não basta, portanto, a apropriação do mandato de Dilma Rousseff; mesmo ainda não concluída a manobra do impeachment, os presumidos novos donos do poder já cuidam de evitar o retorno dos decaídos.
Se é impossível derrotá-los seguindo o rito democrático das eleições, eliminem-se Lula e o PT. Se é impossível afastá-los da liça, elimine-se o processo eleitoral. É preciso liquidar o PT e jogar ao mar suas cinzas para que jamais renasçam, seja ele mesmo, seja o que chegou a representar no processo político brasileiro, incluídas as lutas sociais e sindicais e a organização popular pós-ditadura.
Esse é o preço antecipadamente cobrado para que tenhamos as eleições de 2018, porque essas terão de ser eleições consagradoras do status quo: o projeto neoliberal-conservador não pode ter sua continuidade ameaçada pela soberania popular.
O sistema tem viva a memória de 1965, quando o varguismo golpeado em 1954 retornou ao poder com as eleições de Juscelino e Jango.
Eleições sim, mas apenas com segurança.
O que fazer, porém, com as regras do jogo democrático? Às favas com elas, como louvava o coronel Jarbas Passarinho, recomendando ao general Costa e Silva a assinatura do Ato Institucional nº5, conhecido como ‘o golpe dentro do golpe’.
O honrado senador Cristovam Buarque (com quem tive a honra de integrar o primeiro ministério do presidente Lula, não sei se ele ainda se lembra disso), na companhia de seus agora colegas Romero Jucá e Ronaldo Caiado, dirá que tudo isso está na ordem natural das coisas, lembrando um certo personagem de Voltaire: "tudo vai pelo melhor no melhor dos mundos possíveis".
Só não vê o curso do golpe quem não quer. Ou quem não pode vê-lo para não entrar em crise com o próprio passado. E o golpe que nos assusta não é apenas este que se apresenta ameaçando efetivar a troca da presidente eleita por um vice perjuro e sem voto, porque o golpe é isto que se expõe à luz do dia, mas é também o que se escamoteia, o que se sonega, o que está por vir e que apenas se insinua nos atos do governo interino: a regressão social, a regressão política, a regressão econômica, a regressão conservadora. Enfim: a busca retroativa do passado travestido de modernidade.
O golpe em curso se distancia do putsch e da quebra da legalidade, o que, aliás não representa qualquer novidade em nossa história, pois as elites econômicas sempre dispuseram de juristas competentes todas as vezes em que tiveram de intervir para ‘corrigir’ o processo eleitoral, pois o nosso presidencialismo admite eventuais vitórias de representantes de forças populares dissociadas do bloco hegemônico.
Esse golpe, contrariando o modelo clássico, não veio de surpresa, nem lançou mão da violência clássica. Tampouco se construiu de uma vez; é golpe de caráter continuado, que se instala através de manobras sucessivas, peça por peça, que, começando pela tomada do poder político, caminhará para a construção de uma nova hegemonia, conservadora, nos planos político e econômico.
Cuidadosamente planejado, instala-se como uma efetiva sedição levada a cabo nas entranhas do poder. Na busca do formalismo legal (os autores dos golpes, de todos os golpes em todo o curso da história, deles se envergonham), o golpe adquire sua feição transformista com a roupagem do impeachment, mas de um impeachment sem o crime de responsabilidade exigido pela Constituição, num julgamento de cartas marcadas, com votos já negociados e já anunciados.
É o velho e sonhado projeto político-empresarial que, com o concurso de setores majoritários do Poder Judiciário (em suas diversas instâncias, inclusive no STF) e de setores da burocracia estatal e do Ministério Público Federal, objetiva a remoção de um governo legítimo, derivado do voto e comprometido com os interesses populares, e sua substituição por um arranjo das elites para pôr em prática, projeto em curso, uma agenda antipopular que nenhum candidato defenderia em campanha eleitoral, e cuja efetivação – quem viver verá — exige um governo autoritário amparado por uma ordem legal adequadamente revista, como, aliás, já vivemos mais de uma vez, na história republicana.
É a promessa de uma ‘ditadura de novo tipo’, como primeira consequência do golpe parlamentar. Do pacto de elites receberá o apoio estrutural necessário, enquanto os meios de comunicação assegurarão o monopólio ideológico, fechando o círculo.
No altar desse pacto governante brilha o poder do chamado “mercado”, o ‘Rei sol’ da modernidade, agente político sem carteira de identidade, sem CPF, sem residência conhecida, sem rosto, mas (por isso mesmo?) onipresente, poderoso, vigilante, fazendo efetivos seus interesses de classe. O projeto, de hoje e de sempre, não é necessariamente a presidência da República – o poder simbólico –, que pode ser exercido por delegação (como, aliás, ocorre nesta interinidade), mas o poder real, que já abocanhou com garras e presas e dele não se deixa apartar, como a hiena faminta que não abandona a presa.
É o controle do Ministério da Fazenda e suas adjacências, do Banco Central, do comércio externo, abocanhado pelo delatado chanceler, eterno presidenciável.
O ‘primeiro-ministro’ desse parlamentarismo de conveniência é o banqueiro goiano assalariado da banca internacional, Henrique Meirelles, cuja missão (ele cumpre missão, não se trata de sujeito histórico), anunciada, é um programa que compreende juros altos, ajuste rigoroso para os pobres e facilidades para o 1% que controla a avenida Paulista, livre fluxo de captais, flexibilização dos direitos trabalhistas e mais restrições aos aposentados, revisão das politicas de compensação social, desarticulação da escola pública, fragilização do Estado e desnacionalização da economia – a começar pela desmontagem do pré-sal.
Enfim, trata-se da implantação de governo que, como a gestão Campos-Bulhões de 1964, só pode ser sustentado por um regime burocrático-autoritário, naquele momento uma ditadura franca, agora, uma ordem constitucional ‘revisitada’ que dispensará a voz das casernas.
O que nos espreita no horizonte a olho nu é algo mais profundo, mais sério e ameaçador do que uma tradicional troca de guarda. Entre o céu e a terra há algo mais que a troca de Dilma por Termer. De uma forma e de outra, sem que a soberania brasileira tenha sido ouvida, perpetra-se o fim do Estado de bem-estar social prometido pela Constituição de 1988.
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Fonte: Carta Capital
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