quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Marilena Chaui: Sim, há golpe de Estado

Marilena Chaui: Sim, há golpe de Estado


Na medida em que não há crime de responsabilidade, procedimentos empregados para promover impedimento pertencem à definição de golpe como ardil, manobra desleal, busca indevida de proveitos próprios e uso de injúrias contra Dilma
Espinosa recomenda que, numa investigação, comecemos pelo uso costumeiro das palavras porque, na origem, elas possuem função denotativa, isto é, indicativa de alguma coisa e somente depois adquirem um sentido conotativo, como nas metáforas, metonímias, sinédoques e outras figuras de linguagem. Se aceitarmos essa recomendação, ao empregar a palavra golpe convém buscarmos nos dicionários seu primeiro sentido. O Dicionário da Língua Portuguesa de Laudelino Freire, por exemplo, apresenta: “1. pancada com instrumento cortante ou contundente; 2. ferimento, ferida, brecha feita com instrumento cortante ou contundente; 3. acontecimento funesto inesperado; infortúnio; desgraça; 4. crise; 5. trama”. O Dicionário Houaiss registra os mesmos significados, mas acrescenta: “ato pelo qual uma pessoa, utilizando-se de práticas ardilosas, obtém proveitos indevidos; estratagema, ardil, trama, manobra desleal [...] ataque acintoso por meio de palavras, injúria, insulto”. Entre os inúmeros sentidos figurados, os dicionários registram “golpe de Estado”. Laudelino Freire registra: “1. ato violento a que um governo recorre para sustentar o poder; 2. trama pela qual indivíduos por meios violentos derrubam o governo estabelecido”. E Houaiss: “1. tomada inesperada do poder governamental pela força sem participação do povo; 2. ato pelo qual um governo tenta manter-se no poder pela força, além do tempo devido”. Nessa perspectiva, compreende-se que muitos afirmem, incluindo o PT, que não está havendo um golpe de Estado, pois tudo se passa segundo a legalidade posta pela Constituição, não há uso da força nem mudança do regime (não se passa da democracia para a ditadura).
Examinemos, porém, os procedimentos empregados. Na medida em que não há crime de responsabilidade pública por parte da presidenta agora destituída Dilma Rousseff, os procedimentos empregados para promover seu impedimento pertencem à definição de golpe como trama, ardil, estratagema, manobra desleal, busca indevida de proveitos próprios e uso de palavras acintosas e injuriosas contra a sua pessoa. Em outros termos, a lei está sendo usada para pisotear o direito. Estamos, pois, perante o núcleo da palavra golpe como violência, desgraça, ferida e crise.
Mais importante: examinemos se, de fato, não há mudança de regime.

Agência Efe

Senado brasileiro votou pelo impeachment de Dilma Rousseff
Em primeiro lugar, estamos perante a desinstitucionalização da república. Na medida em que o pilar da forma republicana é a autonomia dos três poderes, vemos que esta se encontra rompida, por um lado, pelo que se denomina “judicialização da política” (em que poder judiciário opera para bloquear o trabalho dos conflitos – trabalho que é o núcleo da democracia), além de interferir diretamente de maneira seletiva e pré-determinada nos dois outros poderes. Por outro lado, é notória a interferência do poder executivo de Temer sobre o poder legislativo para a compra ou barganha de votos do Senado. Podemos não estar perante uma ditadura militar, mas percebemos claramente não que estamos diante de uma verdadeira república.
 

Processo de impeachment de Dilma é 'crime' contra democracia, aponta jornal mexicano

Evo Morales diz que vai chamar embaixador da Bolívia de volta se impeachment for aprovado

Senado aprova impeachment de Dilma, mas mantém direitos políticos; Temer assume presidência em definitivo

 
Em segundo lugar, e muito mais grave, estamos diante da desconstrução da democracia. Esta, como sabemos, não se define apenas pela concepção liberal, que a reduz a um regime político baseado na ideia de direitos civis, organizada em partidos políticos e que se manifesta no processo eleitoral de escolha dos representantes e nas soluções técnicas para os problemas econômicos e sociais. A marca da democracia é a criação de direitos e a garantia de seu exercício.
Neste momento, que se passa com o direito à igualdade? Está destruída, como indicam as medidas já tomadas pelo governo Temer e as anunciadas por ele (como a PEC 241) e os 59 projetos de lei trazidos ao Congresso pela bancada do Boi, da Bala e da Bíblia, que selam a recusa da igualdade econômica, social, racial, sexual, religiosa, fundada nos direitos econômicos, sociais e culturais conquistados nos últimos quinze anos graças, de um lado, a políticas de erradicação da miséria e de inclusão por meio de transferência de renda, e, de outro lado, pela criação das secretarias de ações afirmativas.

Agência Efe

Na medida em que não há crime de responsabilidade pública, os procedimentos empregados para promover impedimento pertencem à definição de golpe
Que se passa com o direito à liberdade? Está sendo pisoteada, em primeiro lugar, pela supressão da Secretaria de Direitos Humanos e sua substituição pela Secretaria de Segurança Nacional, sob o comando de um general; em segundo lugar, pelo recurso ininterrupto às força policiais para reprimir movimentos populares e sociais de contestação e de reivindicação (fato observado sobretudo nas cidades menores do Sul e Sudeste e nas grandes cidades do Norte e do Nordeste), anunciando o emprego futuro da lei antiterrorismo contra a população.
Que se passa com a participação? Tornou-se impossível porque há o monopólio da informação pelos meios de comunicação, que não apenas desinformam, mas produzem ininterruptamente falsas informações.
Conclusão: podemos ainda não estar num Estado policial, mas certamente já não estamos numa democracia.
Finalmente, a questão da soberania. A política externa do governo Temer, abandonando a política ativa e altiva dos governos Lula e Dilma, quebrou o Brics e o Mercosul e outros organismos de unificação continental, restaurou a geopolítica que orientou e comandou o golpe de 1964, isto é, recolocou o país submisso à esfera de poder e influência dos Estados Unidos, do Banco Mundial e do FMI. E, evidentemente, no que diz respeito às fontes de energia, em particular o petróleo, essa decisão geopolítica lançará o Brasil no mundo do confronto sangrento que marca a situação do Oriente Médio.
Nestas circunstâncias, como não falar em golpe de Estado?


Texto originalmente publicado em Le Monde Diplomatique Brasil

Nenhum comentário:

Postar um comentário