O impeachment e o papel do STF
O Supremo tem o dever de analisar o afastamento de Dilma tanto na forma quanto no mérito
por Pedro Estevam Serrano e Anderson Medeiros — publicado 01/09/2016 12h47, última modificação 01/09/2016 12h59
Antonio Cruz / Agência Brasil
Espera-se que o Supremo Tribunal Federal avalie o impeachment
O impeachment é um mecanismo do Legislativo para controlar determinados agentes políticos do Estado. Talvez por essa razão, por muito tempo, sustentou-se que referido processo e respectivas sanções possuiriam natureza essencialmente política, o que subtrairia, inclusive, o seu controle jurisdicional no que tange aos seus aspectos materiais.
O apartamento entre o Direito e a política é uma crença resistente ao tempo. Entretanto, não há conteúdo politicamente independente do Direito. Especialmente considerando que o impeachment possui relação umbilical com os princípios republicano e democrático, não se pode subtrair ao controle jurisdicional a aplicabilidade dos referidos elementos constitucionais orgânicos e de estabilização.
A Constituição não é um mero instrumento de aferição de parametricidade formal dos atos estatais. É preciso que se promova uma reorientação dos chamados conteúdos políticos tendo em vista a normatividade da Constituição.
A Constituição institucionaliza, juridicamente, as relações políticas. Isto é, ela conforma o político e traduz-se numa insindicável vinculação jurídica aos atos políticos. Portanto, em linhas gerais, a Constituição representa uma resposta, dada pela recursividade do próprio Direito, à dinâmica da polis.
A crise do Estado de Direito legalista, bem como o esgotamento do paradigma legal como única “tecnologia disciplinar”, conforme expressão de Michel Foucault, abriu caminho ao surgimento do que podemos chamar, vulgarmente, de Estado constitucional, o qual implicou, por exemplo, no rompimento do modelo de “democracia radical”, exacerbadora da vontade majoritária.
Do mesmo modo, as ideias de supremacia e força normativa à Constituição geraram a necessidade de um órgão regularizador do sistema, a Justiça constitucional, destinada a realizar o reconhecimento das fontes normativas e verificação da adequação dos seus produtos. Por essa razão é que, inclusive, reputa-se à Justiça constitucional condição de possibilidade do Estado Democrático de Direito.
A conformação jurídico-constitucional do poder democrático e a juridicização da organização do poder político impõem que o poder político seja exercido conforme o figurino do Estado constitucional.
Assim considerando, o Supremo Tribunal Federal (STF), órgão de soberania do Estado dotado de jurisdicionalidade e a quem compete realizar, precipuamente, a guarda da Constituição, possui competência para examinar, inclusive no seu aspecto material, a decisão que condenou a presidente da República à perda do seu mandato. Do contrário, a autocontenção deslegitimadora da sua relevante função pública representaria o esvaziamento da sua função de contrapoder político.
No Estado Democrático de Direito não há espaço no qual ele não penetra. O caráter político de um ato não exclui o conhecimento jurídico do mesmo. Não há função política do Estado senão nos quadrantes da Constituição.
Jon Elster assinala que a Constituição, na democracia, atua como mecanismo de autolimitação e de precomprometimento aos órgãos ordinários de decisão política. Assim, é preciso que recordemos a releitura do autor de uma passagem da Odisseia de Homero, na qual Ulisses determina que o amarrem ao mastro de uma embarcação para não sucumbir ao canto das sereias.
Para o autor, a Constituição, nas democracias, possui finalidade similar às referidas amarras quando se destina a proteger determinados valores face às inconsistências temporais e de paixões momentâneas dos órgãos do Estado.
Espera-se, assim, que o STF valha-se da prudência de Ulisses e não sucumba ao canto das sereias e promova a análise de justiciabilidade, material e formal, da decisão que condenou a presidente da República à perda do seu mandato.
*Pedro Estevam Serrano é professor de Direito Constitucional da PUC-SP e Anderson Medeiros Bonfim é especialista em Direito Econômico pela FGV-SP.
Fonte: Carta Capital
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