segunda-feira, 7 de novembro de 2016

PAPA CONDENA “INTERNACIONAL DO DINHEIRO” E QUER REFUNDAR A DEMOCRACIA

Papa condena “internacional do dinheiro” e quer refundar a democracia


No encerramento do III Encontro Mundial dos Movimentos Populares, na tarde deste sábado (5) na sala Paulo VI, no Vaticano, o Papa Francisco fez um ataque assertivo ao capitalismo, e disse que o mundo está dividido entre dois projetos: “Um projeto-ponte dos povos diante do projeto-muro do dinheiro.”

Ele defendeu “a destinação universal dos bens” e convocou os movimentos sociais para um projeto de “refundar as democracias” e a não se conformarem a serem “atores secundários, ou pior, a meros administradores da miséria existente”.

Francisco denunciou a “internacional do dinheiro”, usando uma expressão de 1931 de Pio XI, afirmou que os ricos governam o mundo com “o chicote do medo” e que existe um “terrorismo de base que deriva do controle global do dinheiro sobre a Terra e ameaça toda a humanidade”, acrescentando que “o sistema é terrorista”.

O Papa comparou o tratamento que o sistema capitalista destina aos bancos daquele que é dispensado aos refugiados, que são uma emergência planetária: “O que acontece no mundo de hoje quando ocorre a bancarrota de um banco: imediatamente aparecem somas escandalosas para salvá-lo. Mas quando acontece esta bancarrota da humanidade não existe sequer uma milésima parte para salvar esses irmãos que sofrem tanto? E assim o Mediterrâneo transformou-se em um cemitério e não somente o Mediterrâneo, muitos cemitérios próximos aos muros, muros manchados de sangue inocente.”

Francisco retomou uma formulação de sua Exortação Apostólica Evangelii gaudium (Alegria do Evangelho), de 2013, e afirmou que “enquanto não se resolverem radicalmente os problemas dos pobres, renunciando à autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira e atacando as causas estruturais da iniquidade, não se resolverão os problemas do mundo e definitivamente, nenhum problema. A iniquidade é a raiz dos males sociais”.

Ao final do discurso, Francisco advertiu os movimentos sociais quanto aos riscos da corrupção, mas não tratou do tema de acordo com a lógica conservadora da mídia, do sistema judiciário, empresarial e político brasileiro. Ao contrário chamou a atenção para a instrumentalização das notícias em torno da corrupção. O Papa afirmou que “como a política não é uma questão dos “políticos”, a corrupção não é um vício exclusivo da política. Existe corrupção na política, existe corrupção nas empresas, existe corrupção nos meios de comunicação, existe corrupção nas Igrejas e existe corrupção também nas organizações sociais e nos movimentos populares. É justo dizer que existe uma corrupção radicada em alguns âmbitos da vida econômica, em particular na atividade financeira, e que é menos notícia do que a corrupção diretamente e ligada ao âmbito político e social. É justo dizer que muito vezes se utilizam os casos de corrupção com más intenções.”

Além disso, o Papa indicou a obrigação dos que “escolheram uma vida de serviço” quanto à necessidade de “viver a vocação de servir com um forte sentido de austeridade e a humildade. Isto vale para os políticos, mas vale também para os dirigentes sociais e para nós pastores.” Francisco apontou que a necessidade de uma vida austera para os líderes dos movimentos sociais não pode se confundir nunca com as políticas de supressão de direitos sociais, como acontece no Brasil hoje: “Disse ‘austeridade’. Gostaria de esclarecer a que me refiro com a palavra austeridade. Pode ser uma palavra equivocada. Austeridade moral, austeridade no modo de viver, austeridade em como levo em frente a minha vida, minha família. Austeridade moral e humana. Porque no campo mais científico, científico-econômico se quiserem, ou das ciências do mercado, austeridade é sinônimo de ajuste. E não é a isto que me refiro. Não estou falando disto.”

Participaram do encontro em Roma, delegados de movimentos populares de mais de 60 países dos cinco continentes, entre eles o ex-presidente do Uruguai Pepe Mujica e a líder ambientalista indiana Vandana Shiva. João Pedro Stédile, líder histórico do MST, foi um dos integrantes do grupo brasileiro.

Em sua conferência no encontro, Mujica chamou a atenção para o fato de que apenas 32 pessoas detêm tanta riqueza quanto 300 milhões na América Latina e que a esta situação uma “concentração do poder político” com decisões dos governos “que favorecem os que acumulam”, num processo que “desacredita os sistemas políticos e faz o povo começar a dar as costas aos sistemas políticos representativos”. O ex-presidente uruguaio afirmou que sem uma mudança cultura profunda não haverá mudanças: Não se pode construir uma cultura solidária a partir de valores capitalistas”.

O documento final do encontro afirma que “o sistema capitalista que governa o mundo” é o causador da crise ambiental do planeta, por não respeitar a dignidade humana”. Um momento emocionante da leitura do documento por Edilma Mendes foi a menção a Berta Cárceres, líder ambiental hondurenha assassinada em março passado: “Queremos recordar Berta Cárceres, porta-voz de nosso primeiro encontro, assassinada por promover processos de mudanças”. Ela leu o documento final do primeiro encontro, realizado em 2014 também em Roma – o segundo, em 2015, foi em Santa Cruz de la Sierra (Bolívia).

Os movimentos populares apresentaram a proposta de “um salário social universal para os trabalhadores”, propuseram que a inviolabilidade da residência familiar seja um direito também universal, condenaram a privatização da água, os transgênicos e as patentes de sementes. Os movimentos populares querem “mecanismos institucionais” que garantam sua participação nas decisões políticas e econômicas e manifestaram o desejo de “construir uma cidadania universal que derrube os muros da exclusão e da xenofobia”.

Ao final do texto com as conclusões, os líderes dos movimentos sociais de boa parte do planeta afirmaram querer “trabalhar junto com Francisco, para que estas propostas transformem-se em direitos” e incentivaram “as igrejas locais a fazerem realidade as mensagens do Papa”.

João Pedro Stedile apresentou um bom resumo de como o diálogo e as formulações evoluíram desde o primeiro encontro, de 2014 a 2016.

Todo o discurso do Papa foi vazado em termos duros contra o capitalismo e os ricos e de incentivo aos movimentos populares para que tomem o destino do mundo em suas mãos.

Francisco apresentou um verdadeiro programa mínimo comum que poderia unificar os movimentos populares em todo o planeta “para caminhar em direção a uma alternativa humana diante da globalização da indiferença”: “Colocar a economia a serviço dos povos; Construir a paz e a justiça; Defender a Mãe Terra.”

A seguir, detalhou este programa que deveria se nortear pela seguinte plataforma: 1. “trabalho digno para aqueles que são excluídos do mercado de trabalho; 2. terra para os agricultores e as populações indígenas; 3. moradia para as famílias sem-teto; 3. integração humana para os bairros populares; 4. eliminação da discriminação, da violência contra as mulheres e das novas formas de escravidão; 5. fim de todas as guerras, do crime organizado e da repressão; 6. liberdade de expressão e de comunicação democrática; 7. ciência e tecnologia a serviço dos povos.”

O Papa escutou os consensos articulados nos trabalhos durante a semana e que foram reunidos pelo projeto surgido nos últimos anos na América Latina sob o desejo do “bem viver”: “Ouvimos também como vocês se comprometeram em abraçar um projeto de vida que rejeite o consumismo e recupere a solidariedade, o amor entre nós e o respeito pela Natureza como valores essenciais. É a felicidade de ‘bem viver’ aquilo que vocês reclamam, a ‘vida boa’, e não aquele ideal egoísta que enganosamente inverte as palavras e propõe a ‘bela vida’.”

O Papa fez um vínculo direto entre o governo do dinheiro e o terrorismo: “Quem governa então? O dinheiro. Como governa? Com o chicote do medo, da desigualdade, da violência econômica, social, cultural e militar que gera sempre mais violência em uma espiral descendente que parece não acabar nunca. Quanta dor, quanto medo! Existe – disse recentemente – existe um terrorismo de base que deriva do controle global do dinheiro sobre a Terra e ameaça toda a humanidade. Deste terrorismo de base se alimentam os terroristas derivados como o narcoterrorismo, o terrorismo de Estado e aquele que alguns erroneamente chamam terrorismo étnico ou religioso. Nenhum povo, nenhuma religião é terrorista. É verdade, existem pequenos grupos fundamentalistas de todas as partes. Mas o terrorismo inicia quando ‘é expulsa a maravilha da criação, o homem e a mulher, e colocado ali o dinheiro’ (Coletiva de imprensa no voo de retorno da Viagem Apostólica à Polônia, 31 de julho de 2016). Tal sistema é terrorista.”
O Papa animou os movimentos sociais do planeta a não se deixarem paralisar pelo medo: “Nenhuma tirania, nenhuma tirania se sustenta sem explorar os nossos medos. Isso é chave. Disto o fato de que toda a tirania seja terrorista. E quando este terror, que foi semeado nas periferias são com massacres, saques, opressão e injustiça, explode nos centros com diversas formas de violência, até mesmo com atentados odiosos e covardes, os cidadãos que ainda conservam alguns direitos são tentados pela falsa segurança dos muros físicos ou sociais. Muros que fecham alguns e exilam outros. Cidadãos murados, aterrorizados, de um lado; excluídos, exilados, ainda mais aterrorizados de outro. É esta a vida que Deus nosso Pai quer para os seus filhos? O medo é alimentado, manipulado. Porque o medo, além de ser um bom negócio para os mercadores das armas e da morte, nos enfraquece, nos desestabiliza, destrói as nossas defesas psicológicas e espirituais, nos anestesia diante do sofrimento dos outros e no final nos torna cruéis. Quando ouvimos que se festeja a morte de um jovem que talvez tenha errado o caminho, quando vemos que se prefere a guerra à paz, quando vemos que se difunde a xenofobia, quando constatamos que ganham terreno as propostas intolerantes; por trás desta crueldade que parece massificar-se existe o frio sopro do medo.”

E incentivou os líderes e protagonistas destes movimentos a atuarem na política em seus países, pois a ausência deles deixa terreno aberto para que “os grupos econômicos e midiáticos” dominem a cena – uma descrição quase literal do processo em curso no Brasil. “Os movimentos populares, o sei, não são partidos políticos e deixem que eu vos diga que, em grande parte, aqui está a vossa riqueza, porque vocês expressam uma forma diversa, dinâmica, e vital de participação social na vida pública. Mas não tenham medo de entrar nas grandes discussões, na Política com maiúscula”.

Também num trecho que pareceu talhado ao contexto brasileiro o Papa alertou os movimentos sociais para “o risco de deixar-se formatar e o risco de deixar-se corromper.” Para Francisco, esta “formatação” significaria os movimentos sociais relegarem-se a agendas assistencialistas nas quais “vocês são tolerados.” Quando os movimentos populares colocam-se “no terreno das grandes decisões que alguns pretendem monopolizar em pequenas castas” deixam de ser tolerados: “Assim a democracia se atrofia, torna-se um nominalismo, uma formalidade, perde representatividade, vai desencarnando-se porque deixa fora o povo na sua luta cotidiana pela dignidade, na construção de seu destino.”

O Papa convocou os movimentos sociais “a refundar as democracias que estão passando por uma verdadeira crise” e não se bastarem “a atores secundários, ou pior, a meros administradores da miséria existente. Nestes tempos de paralisias, desorientação e propostas destrutivas, a participação como protagonistas dos povos que buscam o bem comum pode vencer, com a ajuda de Deus, os falsos profetas que exploram o medo e o desespero, que vendem fórmulas mágicas de ódio e crueldade ou de um bem-estar egoístico e uma segurança ilusória.”



Nenhum comentário:

Postar um comentário