Papa condena
“internacional do dinheiro” e quer refundar a democracia
No encerramento do III Encontro Mundial
dos Movimentos Populares, na tarde deste sábado (5) na sala Paulo VI, no
Vaticano, o Papa Francisco fez um ataque assertivo ao capitalismo, e disse que
o mundo está dividido entre dois projetos: “Um projeto-ponte dos povos diante
do projeto-muro do dinheiro.”
Ele defendeu “a destinação universal dos
bens” e convocou os movimentos sociais para um projeto de “refundar as
democracias” e a não se conformarem a serem “atores secundários, ou pior, a
meros administradores da miséria existente”.
Francisco denunciou a “internacional do
dinheiro”, usando uma expressão de 1931 de Pio XI, afirmou que os ricos
governam o mundo com “o chicote do medo” e que existe um “terrorismo de base
que deriva do controle global do dinheiro sobre a Terra e ameaça toda a
humanidade”, acrescentando que “o sistema é terrorista”.
O Papa comparou o tratamento que o
sistema capitalista destina aos bancos daquele que é dispensado aos refugiados,
que são uma emergência planetária: “O que acontece no mundo de hoje quando
ocorre a bancarrota de um banco: imediatamente aparecem somas escandalosas para
salvá-lo. Mas quando acontece esta bancarrota da humanidade não existe sequer uma
milésima parte para salvar esses irmãos que sofrem tanto? E assim o
Mediterrâneo transformou-se em um cemitério e não somente o Mediterrâneo,
muitos cemitérios próximos aos muros, muros manchados de sangue inocente.”
Francisco retomou uma formulação de sua
Exortação Apostólica Evangelii gaudium (Alegria do Evangelho), de 2013, e
afirmou que “enquanto não se resolverem radicalmente os problemas dos pobres,
renunciando à autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira e
atacando as causas estruturais da iniquidade, não se resolverão os problemas do
mundo e definitivamente, nenhum problema. A iniquidade é a raiz dos males
sociais”.
Ao final do discurso, Francisco advertiu
os movimentos sociais quanto aos riscos da corrupção, mas não tratou do tema de
acordo com a lógica conservadora da mídia, do sistema judiciário, empresarial e
político brasileiro. Ao contrário chamou a atenção para a instrumentalização
das notícias em torno da corrupção. O Papa afirmou que “como a política não é
uma questão dos “políticos”, a corrupção não é um vício exclusivo da política.
Existe corrupção na política, existe corrupção nas empresas, existe corrupção
nos meios de comunicação, existe corrupção nas Igrejas e existe corrupção
também nas organizações sociais e nos movimentos populares. É justo dizer que
existe uma corrupção radicada em alguns âmbitos da vida econômica, em
particular na atividade financeira, e que é menos notícia do que a corrupção
diretamente e ligada ao âmbito político e social. É justo dizer que muito vezes
se utilizam os casos de corrupção com más intenções.”
Além disso, o Papa indicou a obrigação
dos que “escolheram uma vida de serviço” quanto à necessidade de “viver a
vocação de servir com um forte sentido de austeridade e a humildade. Isto vale
para os políticos, mas vale também para os dirigentes sociais e para nós
pastores.” Francisco apontou que a necessidade de uma vida austera para os
líderes dos movimentos sociais não pode se confundir nunca com as políticas de
supressão de direitos sociais, como acontece no Brasil hoje: “Disse
‘austeridade’. Gostaria de esclarecer a que me refiro com a palavra
austeridade. Pode ser uma palavra equivocada. Austeridade moral, austeridade no
modo de viver, austeridade em como levo em frente a minha vida, minha família.
Austeridade moral e humana. Porque no campo mais científico,
científico-econômico se quiserem, ou das ciências do mercado, austeridade é
sinônimo de ajuste. E não é a isto que me refiro. Não estou falando disto.”
Participaram do encontro em Roma,
delegados de movimentos populares de mais de 60 países dos cinco continentes,
entre eles o ex-presidente do Uruguai Pepe Mujica e a líder ambientalista
indiana Vandana Shiva. João Pedro Stédile, líder histórico do MST, foi um dos
integrantes do grupo brasileiro.
Em sua conferência no encontro, Mujica
chamou a atenção para o fato de que apenas 32 pessoas detêm tanta riqueza
quanto 300 milhões na América Latina e que a esta situação uma “concentração do
poder político” com decisões dos governos “que favorecem os que acumulam”, num
processo que “desacredita os sistemas políticos e faz o povo começar a dar as
costas aos sistemas políticos representativos”. O ex-presidente uruguaio
afirmou que sem uma mudança cultura profunda não haverá mudanças: Não se pode construir
uma cultura solidária a partir de valores capitalistas”.
O documento final do encontro afirma que
“o sistema capitalista que governa o mundo” é o causador da crise ambiental do
planeta, por não respeitar a dignidade humana”. Um momento emocionante da
leitura do documento por Edilma Mendes foi a menção a Berta Cárceres, líder
ambiental hondurenha assassinada em março passado: “Queremos recordar Berta
Cárceres, porta-voz de nosso primeiro encontro, assassinada por promover
processos de mudanças”. Ela leu o documento final do primeiro encontro,
realizado em 2014 também em Roma – o segundo, em 2015, foi em Santa Cruz de la
Sierra (Bolívia).
Os movimentos populares apresentaram a
proposta de “um salário social universal para os trabalhadores”, propuseram que
a inviolabilidade da residência familiar seja um direito também universal,
condenaram a privatização da água, os transgênicos e as patentes de sementes.
Os movimentos populares querem “mecanismos institucionais” que garantam sua
participação nas decisões políticas e econômicas e manifestaram o desejo de
“construir uma cidadania universal que derrube os muros da exclusão e da
xenofobia”.
Ao final do texto com as conclusões, os
líderes dos movimentos sociais de boa parte do planeta afirmaram querer
“trabalhar junto com Francisco, para que estas propostas transformem-se em
direitos” e incentivaram “as igrejas locais a fazerem realidade as mensagens do
Papa”.
João Pedro Stedile apresentou um bom
resumo de como o diálogo e as formulações evoluíram desde o primeiro encontro,
de 2014 a 2016.
Todo o discurso do Papa foi vazado em
termos duros contra o capitalismo e os ricos e de incentivo aos movimentos
populares para que tomem o destino do mundo em suas mãos.
Francisco apresentou um verdadeiro programa
mínimo comum que poderia unificar os movimentos populares em todo o planeta
“para caminhar em direção a uma alternativa humana diante da globalização da
indiferença”: “Colocar a economia a serviço dos povos; Construir a paz e a
justiça; Defender a Mãe Terra.”
A seguir, detalhou este programa que
deveria se nortear pela seguinte plataforma: 1. “trabalho digno para aqueles
que são excluídos do mercado de trabalho; 2. terra para os agricultores e as
populações indígenas; 3. moradia para as famílias sem-teto; 3. integração
humana para os bairros populares; 4. eliminação da discriminação, da violência
contra as mulheres e das novas formas de escravidão; 5. fim de todas as
guerras, do crime organizado e da repressão; 6. liberdade de expressão e de
comunicação democrática; 7. ciência e tecnologia a serviço dos povos.”
O Papa escutou os consensos articulados
nos trabalhos durante a semana e que foram reunidos pelo projeto surgido nos
últimos anos na América Latina sob o desejo do “bem viver”: “Ouvimos também como
vocês se comprometeram em abraçar um projeto de vida que rejeite o consumismo e
recupere a solidariedade, o amor entre nós e o respeito pela Natureza como
valores essenciais. É a felicidade de ‘bem viver’ aquilo que vocês reclamam, a
‘vida boa’, e não aquele ideal egoísta que enganosamente inverte as palavras e
propõe a ‘bela vida’.”
O Papa fez um vínculo direto entre o
governo do dinheiro e o terrorismo: “Quem governa então? O dinheiro. Como
governa? Com o chicote do medo, da desigualdade, da violência econômica,
social, cultural e militar que gera sempre mais violência em uma espiral
descendente que parece não acabar nunca. Quanta dor, quanto medo! Existe –
disse recentemente – existe um terrorismo de base que deriva do controle global
do dinheiro sobre a Terra e ameaça toda a humanidade. Deste terrorismo de base
se alimentam os terroristas derivados como o narcoterrorismo, o terrorismo de
Estado e aquele que alguns erroneamente chamam terrorismo étnico ou religioso.
Nenhum povo, nenhuma religião é terrorista. É verdade, existem pequenos grupos
fundamentalistas de todas as partes. Mas o terrorismo inicia quando ‘é expulsa
a maravilha da criação, o homem e a mulher, e colocado ali o dinheiro’
(Coletiva de imprensa no voo de retorno da Viagem Apostólica à Polônia, 31 de
julho de 2016). Tal sistema é terrorista.”
O Papa animou os movimentos sociais do
planeta a não se deixarem paralisar pelo medo: “Nenhuma tirania, nenhuma
tirania se sustenta sem explorar os nossos medos. Isso é chave. Disto o fato de
que toda a tirania seja terrorista. E quando este terror, que foi semeado nas
periferias são com massacres, saques, opressão e injustiça, explode nos centros
com diversas formas de violência, até mesmo com atentados odiosos e covardes,
os cidadãos que ainda conservam alguns direitos são tentados pela falsa
segurança dos muros físicos ou sociais. Muros que fecham alguns e exilam
outros. Cidadãos murados, aterrorizados, de um lado; excluídos, exilados, ainda
mais aterrorizados de outro. É esta a vida que Deus nosso Pai quer para os seus
filhos? O medo é alimentado, manipulado. Porque o medo, além de ser um bom
negócio para os mercadores das armas e da morte, nos enfraquece, nos
desestabiliza, destrói as nossas defesas psicológicas e espirituais, nos
anestesia diante do sofrimento dos outros e no final nos torna cruéis. Quando
ouvimos que se festeja a morte de um jovem que talvez tenha errado o caminho,
quando vemos que se prefere a guerra à paz, quando vemos que se difunde a
xenofobia, quando constatamos que ganham terreno as propostas intolerantes; por
trás desta crueldade que parece massificar-se existe o frio sopro do medo.”
E incentivou os líderes e protagonistas
destes movimentos a atuarem na política em seus países, pois a ausência deles
deixa terreno aberto para que “os grupos econômicos e midiáticos” dominem a
cena – uma descrição quase literal do processo em curso no Brasil. “Os
movimentos populares, o sei, não são partidos políticos e deixem que eu vos
diga que, em grande parte, aqui está a vossa riqueza, porque vocês expressam
uma forma diversa, dinâmica, e vital de participação social na vida pública.
Mas não tenham medo de entrar nas grandes discussões, na Política com
maiúscula”.
Também num trecho que pareceu talhado ao
contexto brasileiro o Papa alertou os movimentos sociais para “o risco de
deixar-se formatar e o risco de deixar-se corromper.” Para Francisco, esta
“formatação” significaria os movimentos sociais relegarem-se a agendas
assistencialistas nas quais “vocês são tolerados.” Quando os movimentos
populares colocam-se “no terreno das grandes decisões que alguns pretendem
monopolizar em pequenas castas” deixam de ser tolerados: “Assim a democracia se
atrofia, torna-se um nominalismo, uma formalidade, perde representatividade,
vai desencarnando-se porque deixa fora o povo na sua luta cotidiana pela
dignidade, na construção de seu destino.”
O Papa convocou os movimentos sociais “a
refundar as democracias que estão passando por uma verdadeira crise” e não se
bastarem “a atores secundários, ou pior, a meros administradores da miséria
existente. Nestes tempos de paralisias, desorientação e propostas destrutivas,
a participação como protagonistas dos povos que buscam o bem comum pode vencer,
com a ajuda de Deus, os falsos profetas que exploram o medo e o desespero, que
vendem fórmulas mágicas de ódio e crueldade ou de um bem-estar egoístico e uma
segurança ilusória.”
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