Por que com ele é como se Getúlio
falasse; ou Allende para os chilenos; ou Perón para os argentinos; ou Cárdenas
para os mexicanos. Com uma diferença: Lula vive.
Saul Leblon
Respira-se um cheiro azedo de fardas,
togas e ternos empapados da sofreguidão nervosa que marca as escaladas de
demolição do Estado de Direito nos solavancos da História.
Consulte os anos 30 na Alemanha, os 50
do macarthismo norte-americano, os 60 da ditadura brasileira, os 70 do massacre
chileno.
Há um clima de dane-se o pudor por parte
das elites e da escória que a serve.
Faz parte desses crepúsculos
institucionais a perda dos bons modos e a convocação das milícias, enquanto o
jornalismo isento finge não ver a curva ascendente do arbítrio.
Com a mesma desenvoltura com que se
anistia montanhas de dólares remetidos ao exterior, classifica-se o MST como
‘movimento criminoso’.
Persegue-se e intimida-se estudantes
secundaristas com lista de nomes exigindo que se delate endereços de colegas
ocupantes.
Invade-se a bala dependências e
movimentos sociais e, de metralhadora em punho, escolas tomadas por
adolescentes que reclamam o direito de opinar sobre a própria educação.
Ensaios da orquestra.
Decibéis crescentes, afiados pelo mesmo
diapasão ecoam de diferentes pontos do país. Só não ouve quem não quer.
Há dinheiro, patrocínio e poder em jogo
na incapacidade auditiva para ouvir os gritos da democracia sendo violada na
sala ao lado de onde se discute a ‘reconstrução do Brasil’.
A conveniência reflete a insurgência que
se esboça.
A resistência ao golpe escapa ao que se
supunha ser o alvo isolado e triturado pela centrífuga da Lava-Jato.
Adolescentes falam o que a vastidão dos
votos nulos, brancos e abstenções cifraram nas urnas municipais, quando
suplantaram os vitoriosos de São Paulo, Rio, Belo Horizonte e Porto Alegre.
Se as duas vozes se fundirem num idioma
único, o que acontecerá?
O cheiro azedo exalado das fardas, togas
e ternos de corte fino, empapados da sofreguidão nervosa, reflete essa esquina incerta da
História para a qual caminha o país.
A
truculência policial e midiática sobe rápido os degraus da exceção.
Essa é a hora diante da qual a
resistência progressista não pode piscar.
Daí a importância da campanha lançada
neste dia 10 de novembro para sacudir a hesitação em defesa do óbvio.
O óbvio hoje começa por defender Lula.
Porque sem defender Lula, não será
possível defender mais ninguém, e mais nada, do galope desembestado da ganância
no lombo da violência fardada e da cumplicidade togada.
Por ninguém, entenda-se o Brasil
assalariado e o dos mais humildes.
A imensa maioria da população.
Aquela que vive do trabalho, depende de
serviços públicos, tem seu destino atado ao do país, ao do pré-sal, ao da
reindustrialização, ao da democracia
social, carece de cidadania, respira salário mínimo e enxerga na previdência o
único amparo à velhice e ao infortúnio.
Lula é a espinha histórica das costelas
de resistência que precisam se unir para conter a demolição em marcha disso
tudo.
Desempenha essa função por uma razão
muito forte.
Essa que o milenarismo gauche parece ter
esquecido - ou hesita em saber que sabe - enquanto aguarda o juízo final de Moro para recomeçar do zero.
‘Recomeçar do zero’ é a profilaxia
recomendada pelos sábios do golpe em todas as frentes.
Desde a demolição dos direitos
trabalhistas, à revogação da soberania no pré-sal, passando pela Constituição
de 1988, o PROUNI, a previdência ...
Mas, principalmente: recomeçar do zero
esquecendo Lula.
Porque ele é - ainda é Lula - a inestimável
referência de justiça social na qual a imensa parcela dos brasileiros de hoje e de ontem se reconhecem.
É dele a voz que quando fala e é ouvida no campo e nas cidades.
Mais que simplesmente ouvida: respeitada
e compreendida.
A diferença dessa voz é que ela não
carrega só palavras.
Carrega experiência, luta, erros,
acertos, raiva, riso, derrotas, vitórias, cujo saldo são conquistas coletivas
encarnadas em holerite, comida, emprego, autoestima e esperança.
É
como se Getúlio Vargas falasse.
Ou Allende para os chilenos.
Ou Perón para os argentinos.
Ou Cárdenas para os mexicanos.
Com a vantagem avassaladora que tanto
incomoda a elite.
Lula está vivo.
Caçado, esfolado, picado e salgado.
Mas, vivo.
Mais que vivo: ele lidera todas as
pesquisas de intenção de voto com as quais seus algozes testam a eficácia da
chacina de reputação, a mais violenta desde Getúlio, que escandaliza a opinião
jurídica e democrática do mundo.
Lula é a espinha dorsal de cuja
destruição depende o êxito do torniquete implacável de interesses mobilizados
contra a construção de uma democracia social na oitava maior economia do mundo,
na principal referência da luta pelo desenvolvimento no espaço ocidental.
FHC disse em um debate no jornal O
Globo, há cerca de quinze dias:
‘Sem Lula o PT seria apenas um partido
médio; com ele torna-se um perigo nacional’.
No fundo quis dizer: ‘Sem Lula, o Brasil
se torna uma Nação média, humilde, bem comportada.
Com Lula, o Brasil se torna um gigante
de soberania, com capacidade de aglutinação popular e mundial em torno da
justiça social - de consequências perigosas’. É claro como água de fonte.
Lula representa esse diferencial
inestimável.
Ele fala com quem Malafaia gostaria de
falar sozinho.
Com o Brasil que os Marinhos gostariam
de monopolizar sem dissonâncias.
Por isso o milenarismo gauche que reage
à ofensiva conservadora aceitando a pauta do juízo final de Moro, flerta com a eutanásia.
‘Recomeçar do zero’ é tudo o que o
conservadorismo mais cobiça para quebrar o coração da resistência ao golpe.
O
coração da resistência ao golpe consiste em não aceitar o fuzilamento sumário
do legado de doze anos de luta por um desenvolvimento mais justo e
independente.
Ademais dos erros e equívocos cometidos
inclusive por Lula - que não podem ser subestimados e devem ser discutidos
amplamente - os acertos mostraram a viabilidade de se construir uma democracia
social no Brasil do século XXI.
Não, isso não é pouco.
Olhe o mundo ao redor: isso é muito.
E, principalmente, tem lastro popular.
A sociedade marcada por uma das mais
iníquas divisões de renda do planeta, referendou esse projeto por quatro
eleições presidenciais sucessivas.
Duas com Lula; outras duas com Dilma,
sendo Lula seu maior fiador e cabo eleitoral.
Sim, com erros, alguns grotescos.
Mas, o fato é que a elevada
probabilidade desse projeto ser revalidado em um quinto escrutínio
presidencial, em 2018 - agora modificado pelo esgotamento do ciclo de alta nos
preços das commodities, que lubrificou a resistência das elites aos avanços
anteriores - precipitou o golpe de 31 de
agosto.
O milenarismo gauche quase esquece tudo
isso enquanto aguarda o juízo final.
Nele, o juiz Moro e seus querubins darão cabo de Lula e propiciarão aos
sobreviventes o único destino que lhes
cabe: recomeçar do zero.
Ou até abaixo do zero.
Para quem sabe ter direito - um dia - a
mil anos de salvação individual e sobrenatural.
Milenaristas eram os pobres, os
miseráveis brasileiros de Canudos.
Aqueles que aguardaram com Antônio
Conselheiro a justiça divina sonegada pelo latifúndio e pela República que,
afinal, destinou-os à injustiça eterna.
É o que acontecerá de novo se o Brasil
progressista aceitar a ideia de Moro de faxinar a história de sua ‘nódoa
inaceitável’: Lula.
Se aceitar, o Brasil vai virar uma
imensa Canudos, depois do massacre.
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