Para além do
óbvio
Roberto Amaral*
É grave a saúde da República cujo povo não pode
confiar nos Poderes que deveriam protegê-lo
Os analistas do quadro internacional são
unânimes no registro do avanço político do conservadorismo, com seus
ingredientes clássicos, que incluem a xenofobia, o racismo e algumas formas de
nacionalismo. O processo não é novo, mas, por óbvias razões, só se tornou
preocupante a partir do Donald Trump presidente, visto pela grande imprensa
como um ‘populista de direita’. Até aqui o adjetivo populista, adotado de forma
depreciativa, era reservado pela mídia aos governos populares e de esquerda da
América Latina. Ou seja, era uma especificidade da periferia.
O fato objetivo é o registro, presente,
de algo como uma onda reacionária que percorre o mundo a partir da Europa,
relembrando a história da primeira metade do século passado. Naquele então,
quando os EUA rooseveltianos simbolizavam a democracia clássica, tivemos formas
variadas de ditaduras e nazismo dominando a Alemanha e suas adjacências, ao
lado do fascismo italiano, da ditadura japonesa (constituindo, os três, o
famoso Eixo militar que promoveu a II Guerra Mundial), o stalinismo, o
salazarismo e o franquismo, com suas repercussões entre nós, pois eram também
esses, no Brasil, os tempos do Estado Novo varguista.
A História registra o preço pago pela
humanidade.
As ditaduras e os Estados autoritários,
de fonte militar ou não, frequentemente se instalam na sucessão de reiterados
fracassos da política como instrumento eficaz para enfrentar os problemas
propostos para as crises econômicas e sociais consequentes.
Onda similar parece renovar-se, em
nossos dias, principalmente após o colapso da URSS em 1991, o desmantelamento
das repúblicas populares do Leste e o fim da polaridade político-militar.
Nos anos presentes assistimos à crise –
econômico-política da União Europeia, ameaçada de desagregação. O fracasso
rotundo do capitalismo, da globalização e do neoliberalismo, ao invés de abrir
espaços a seu antídoto, prepara o terreno para o fim das experiências
socialdemocratas.
No rasto do fracasso da política
clássica emerge a ameaça do chamado ‘populismo de direita’, com toda a sua
carga de reacionarismo, anunciando um retrocesso político-ideológico cujo
desenvolvimento deve ser temido pelas forças populares e democráticas de todo o
mundo.
A ascensão de Donald Trump,
representando a emergência do pensamento xenófobo e reacionário da maior
potência econômica e militar de nosso tempo, não é um fenômeno irrelevante e
suas consequências são ainda imprevisíveis.
A derrota de GeertWilders, na Holanda,
pode ser lida como um tranco no nacionalismo xenófobo. Mas não é tudo.
Vencedor, o partido do conservador Mark Rutte sofreu drástica redução de sua
bancada e o grande derrotado foi o Partido Trabalhista, de centro-esquerda, que
de 38 cadeiras no Parlamento caiu para nove.
Marine de Le Pen (seguida de dois
concorrentes de direita) lidera o pleito numa França que, no século XVIII,
ofereceu aos povos de todo o mundo as esperanças de liberté, igualité, fraternité!
As sondagens de opinião sequer se referem ao candidato socialista. O Brexit
inglês é apenas o indicador de um nacionalismo redivivo, em conflito com as
expectativas de convívio entre os povos. FraukePetry, na Alemanha (à direita de
Angela Merkel e empurrando para trás a socialdemocracia), é outro exemplo
paradigmático da tragédia político-ideológica representada pelo avanço do
pensamento de direita.
Ao lado desses poucos exemplos do atraso
também caminham a Áustria, a Polônia e, significativamente, todas as antigas
repúblicas do Leste europeu.
Não são acasos o Congresso brasileiro,
majoritariamente conservador e cassador de direitos nem o governo Temer. Muito
menos é acaso, fruto do nada e sem significado e consequências a emergência, em
nosso cenário, de um Bolsonaro.
Nas chamadas democracias ocidentais não
há substituto para a política, e sua desmoralização é a porta aberta por onde
chegam os salvadores da pátria e as ditaduras. Assim foi no passado e assim
está sendo no presente. De outra parte, em democracias representativas, e
pretendemos ser uma, não há alternativa à representação popular, fonte única do
direito e da legitimidade do poder.
Esse fenômeno não nos é estranho,
calcada que é nossa História por crises políticas e, delas derivados, por
golpes de Estado e aventuras autoritárias. É que nas oportunidades da crise a
classe dominante brasileira investe maciçamente na desmoralização da política,
na sua desqualificação e na desqualificação de seus agentes, o vestibular dos
golpes institucionais. É também nesses momentos que surgem e são aclamados ‘os
salvadores da Pátria’, e muitos os tivemos e muitos devem estar sendo gestados
ainda hoje, prontos para saltar do ovo da serpente para, em nome da democracia,
assaltar a democracia e os interesses do povo.
Esses personagens, na sua emergência,
encantam a classe dominante e sua mídia, pois fazem sempre o discurso da
austeridade, da restrição de direitos trabalhistas e populares, pintam-se como
anti-populistas.
Jânio Quadros, incensado pela plutocracia
paulista, pelos partidos conservadores e pela unanimidade da grande imprensa,
foi um desses salvadores da Pátria, fenômeno grotesco que se repetiria, quase
quarenta anos passados, com a eleição de Fernando Collor, o enfant gâté da
família Marinho. Ambos fizeram do moralismo tacanho suas bandeiras, o primeiro
empunhando uma vassoura com a qual limparia a ‘sujeira que emporcalhava o
Brasil’, o outro, sua versão decaída, se auto-apresentando como ‘caçador de
marajás’. Todos nos recordamos dos epílogos (e suas dramáticas consequências)
dessas duas aventuras.
Essas reflexões me chegam trazidas pela
análise do comportamento geral da imprensa a propósito das revelações da
Operação Lava-Jato e, mais recentemente, do alcance da festejada lista nº2 do
Procurador Geral da República, pedindo a abertura de inquérito para mais de uma
centena de políticos de todos os matizes partidários, e atingindo em cheio o
núcleo mais fechado e íntimo do poder, do ainda presidente Michel Temer, pois
atinge seus ministros, palacianos ou não, os presidentes das duas Casas
legislativas e seus líderes. Eis o que foi revelado de uma lista posta sob
sigilo seletivo, e o mais pode ser imaginado.
As generalizações, tão fáceis nessas
oportunidades, confundem a todos e tornam todos iguais, construindo a ideologia
da antipolítica, pois a política torna-se sinônimo de corrupção e a corrupção é
a mãe de todas as mazelas de que padecemos.
Desta feita, porém, as apurações não
perseguem, apenas, os chamados corruptos passivos, mas, tanto quanto, os
corruptores, o que enseja e justifica número tão elevado de empresas e
empresários entre os acusados, simplesmente revelando a essência moral do
capitalismo, aqui, na Coreia do Sul e em toda parte. Este aspecto do fenômeno,
nada irrelevante, não interessa à grande imprensa e seus áulicos.
Mas esta não é a revelação única.
A sequência das listas (a última diz
respeito exclusivamente às delações da Odebrecht, a maior das empresas acusadas
como agente de suborno, mas ainda assim apenas uma das muitas que optaram pela
delação premiada), termina por revelar o comprometimento do governo – por seus
personagens e sua índole – no esquema de corrupção, e revelam o comprometimento
do Congresso Nacional, de particular da maioria parlamentar que votou pelo
impeachment e hoje assegura maioria à súcia instalada no Planalto.
São esses os ingredientes fundamentais
da crise política que, tendo como pano de fundo a crise econômica – uma
recessão, a maior nos últimos 40 anos– se agrava em face da ilegitimidade da
presidência da República, ilegitimidade que salta do Executivo para sentar-se
nas cadeiras dos presidentes da Câmara e do Senado.
Doutra parte, mas não menos nocivamente,
o Poder Judiciário – desde juízes de piso aos tribunais superiores –
transforma-se em instrumento de insegurança jurídica ao julgar contra a
Constituição, o que faz com alarmante frequência. O STF extrapola de sua
competência para invadir atribuições privativas do Executivo e do Legislativo.
Este é um dos indicadores da transição
da crise político-econômica para a crise institucional.
O atual presidente do TSE, ministro
Gilmar Mendes – que não esconde sua vinculação partidária, antes a alardeia –
trabalha para impedir o julgamento da impugnação da chapa Dilma-Temer, que
levaria à cassação o espúrio mandato do presidente em exercício. Trabalha
ostensivamente na tentativa de decepar a chapa (evidentemente una) para dela
excluir o vice, seu cupincha, e assim poupá-lo da condenação; trabalha para
alterar a composição do pleno do TSE; trabalha, enfim, para levar o julgamento
para depois de 2018 – quando a ação perde objeto, com o fim do atual mandato
presidencial. Empurrando com a barriga o julgamento, Gilmar Mendes conta ainda
com o fato de que, dos sete membros do TSE, um sai logo em abril e outro em
maio. Temer nomeará seus sucessores.
E, finalmente, saindo de convescote
palaciano com Temer, Rodrigo Maia, Moreira Franco e outros acusados que irá
julgar no TSE e no STF, Gilmar Mendes passa a defender que a Justiça Eleitoral,
no caso, deve votar ‘pensando na estabilidade politica’ e deita falações sobre
reforma política. Se, por hipótese, nada der certo, o ministro Mendes – ou
qualquer preposto seu –certamente lançará mão do expediente de pedir vistas e
sentar-se em cima do processo, como fez, no STF, no julgamento da ação da OAB
contra o financiamento empresarial das eleições.
Até o reino animal sabe que a ação
impugnatória não será julgada antes do término do mandato presidencial, e,
assim, será extinta.
É grave a saúde da República cujo povo
não pode confiar nos Poderes que deveriam protegê-lo.
Que fazer?
A resposta está nas manifestações de
quarta-feira 15, em todo o país, escondidas pela ação concertada dos meios de comunicação.
Elas apontaram o caminho.
* Jornalista, professor e ex-ministro de
Ciência e Tecnologia
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