segunda-feira, 17 de abril de 2017

Construção

17/04/2017 15:56 - Copyleft

Construção

Atividades da construção refletem deformações setoriais, como a ambição de construir a maior hidroelétrica do mundo ou uma estrada que liga o nada ao nada


Ladislau Dowbor
Acervo Histórico IPT
O Setor de construção, em termos de organização e planejamento, apresenta a particularidade de constituir uma dimensão de outros setores: constroem-se hidroelétricas para o setor energético, escolas para a educação, hospitais para a saúde,  residências para a habitação e assim por diante. As atividades da construção vão assim refletir as eventuais deformações setoriais, como a ambição de construir a maior hidroelétrica do mundo em Itaipu, ou de se realizar uma estrada do nada para o nada como a Transamazônica.
 
A existência de subsistemas profundamente diferenciados é claramente aparente no setor da construção. Particularmente significativo é o universo das grandes empreiteiras como Andrade Gutierrez, Camargo Correa, Mendes Júnior, OAS, Odebrecht e outras, especializadas em grandes obras de infraestruturas. Como este tipo de obras é em geral financiado por recursos públicos, já que se trata de mega-investimentos com retornos difusos e de longo prazo, estas empresas desenvolvem um sistema de apropriação dos mecanismos políticos de decisão, visando obter acesso privilegiado aos contratos. Não se trata aqui de uma particularidade do Brasil.  Estimativas relativas ao México, por exemplo, avaliam em algo como um bilhão de dólares o que as empreiteiras transferem anualmente para os bolsos dos políticos. No caso brasileiro, foi amplamente documentada a “folha de pagamentos” das empreiteiras, sustentando funcionários públicos, deputados e senadores, gerando na realidade um sistema paralelo de poder. Como as empresas estão estreitamente articuladas entre sí, praticando o rodízio de acesso a  contratos, com regras do jogo bem definidas, as diversas proteções tradicionais como os mecanismos de licitação tornam-se inúteis. Os resultados práticos são obras cujos custos são onerados não por 10 ou 12% de dinheiro de propinas como acontece frequentemente nos próprios países desenvolvidos, mas por valores que frequentemente ultrapassam em 300 ou 400% o custo real da obra.[1]
 
Os custos são absolutamente gigantescos. Para dar um exemplo, duas operações da Andrade Gutierrez com a Companhia de Energia do Estado de São Paulo, Cesp, resultaram numa dívida de US$11 bilhões: “Por trás de cada dólar que compõe essa dívida é possível encontrar histórias de relações incestuosas entre governantes, banqueiros e empreiteiros de obras públicas, pontuadas por suspeitas de corrupção, superfaturamento e privilégios negociais...Canoas é uma das obras públicas mais caras feitas no País. Cada um dos 154 megawatts projetados já custou US$3.032, 40% além do previsto e praticamente o dobro do gasto em hidrelétricas de médio porte”.[2] Exemplos como estes abundam nas diversas áreas, levando ao desvio de dezenas de bilhões de dólares. Os fantásticos recursos levantados permitem alavancar a nomeação de testas-de-ferro das próprias empreiteiras nos diversos departamentos do Estado, e a eleição de candidatos com campanhas milionárias, gerando um círculo vicioso extremamente difícil de se romper. E tratando-se, como neste exemplo, de uma  empresa Estatal, buscar-se-á a sua quebra e ulterior privatização, gerando novos lucros.
 
É importante notar que o que aqui enfrentamos não constitui uma “lamentável exceção”, mas uma deformação sistêmica. Trata-se da articulação duradoura do monopólio estatal de decisão com um cartel de empresas de grande porte – as empresas pequenas são por definição excluidas deste tipo de empreendimento – e que ocorre em muitíssimos países. Constatamos assim que esta área essencial do desenvolvimento econômico não pode ser regulada pela “mão invisível”, através de fictícias licitações e de aparências externas de concorrência. Pelo contrário, torna-se necessário um sistema particular de regulação que deve envolver auditorias externas, acesso público à contabilidade dos projetos e conselhos inter-institucionais com forte participação da sociedade civíl  para avaliação política das opções. Considerando os custos que este setor representa para o país, tanto o custo das obras, como o impacto estrutural negativo de obras mal concebidas – veja-se Angra dos Reis – e a deformação das práticas políticas originada pelo sistema, a criação de um sistema de regulação diferenciado para as grandes obras é indispensável.
 
Abaixo deste setor de ponta, ficam milhares de pequenas e médias construtoras com atividades centradas em geral no âmbito municipal, realizando tanto pequenas infraestruturas como programas de habitação. De forma geral, empresas deste tipo tanto podem reproduzir ao nível local o sistema de corrupção praticado pelas grandes empreiteiras, como podem gerar um clima de concorrência efetiva e contribuir fortemente para a economia local. De toda forma, o corporativismo que existe na área da construção sugere que se aplique aqui o conceito de “managed market”, ou mercado administrado, com um sistema específico de regulação baseado na transparência das informações e na participação de segmentos diferenciados da sociedade civil no controle.
 
No caso da construção de habitações, é particularmente interessante organizar um contrapeso ao poder das empreiteiras através de grupos organizados de consumidores. Em São Paulo, por exemplo, 14 familias de professores se juntaram para comprar um terreno, deram o terreno de garantia para um banco que financiou a construção: a construtora executou apenas a obra, sob controle e segundo especificações dos maiores interessados em preço e qualidade que eram os futuros proprietários. A obra, sem os costumeiros atravessadores, administradores e outros penduricalhos, custou a metade do preço de mercado. Na Polônia se utilizam sistemas semelhantes em grande escala, sempre na visão de maior poder de organização dos próprios consumidores, quer as empresas de construção sejam privadas ou estatais. 
 
O setor informal de construção representa um gigantesco potencial. Se a construção de edifícios modernos apresenta problemas técnicos complexos, o mesmo não é o caso da residência térrea, que constitui no caso brasileiro mais de tres quartos das habitações. Há um gigantesco potencial de motivação em torno da casa própria, o que torna perfeitamente possível as pessoas construirem as suas próprias casas, com um pouco de ajuda técnica, e a preços incomparavelmente mais baratos do que os das construtoras. Ainda há algum tempo olhados com certo desprezo pelos economistas e pelos arquitetos, os sistemas baseados em lotes urbanizados, auto-ajuda, mutirões, crédito comunitário e outras formas de acesso dos pobres à habitação tornaram-se técnicamente excelentes e economicamente superiores às soluções tradicionais. Parcerias e apoio organizado das prefeituras, incorporando às áreas de habitação as infraestruturas de lazer, escolas, pequeno comércio e espaço para oficinas e micro-empresa, podem levar a resultados nítidamente superiores aos absurdos mega projetos de milhares de casas identicas e distantes das necessidades cotididianas das populações que se vêm em torno das grandes cidades, com as inevitáveis placas do político interessado.
 
Finalmente, é preciso mencionar o amplo sistema ilegal de ocupação de solo e construção que se constata em tantos municípios do país. Ocupando encostas sujeitas a deslizamentos, áreas de mananciais, áreas sujeitas a indundações ou zonas de preservação ambiental, os pobres buscam simplesmente zonas mais baratas, já que as áreas mais adequadas para a habitação são mais caras ou se encontram nas mãos de grandes empresas de “engorda” do valor dos terrenos. Aqui melhor do que em outras áreas se constata a que ponto a atividade ilegal pode se articular com grupos de deputados, partidos políticos, empresas. Deixar aqui agir o “mercado” e esperar que resulte outra coisa do que um desastre social e ambiental é pura ingenuidade. Mas também mostram-se pouco operantes os esquemas baseados em leis e fiscais, se não forem apoiados em sólidas organizações da sociedade civil.  Aqui ainda, a alternativa não é setor privado ou Estado, mas um sistema mais democrático e participativo de gestão pela própria comunidade organizada.
 
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[1]  - Para dados sobre o México, ver Business Week, 13 de maio de 1996; as “folhas de pagamentos” e cerceamento de concorrência utilizados por empreiteiras no Brasil foram amplamente documentadas em numerosos artigos da imprensa, particularmente Folha de São Paulo.
 
[2]  - José Casado, Arquivos mostram corrupção na Cesp, O Estado de São Paulo, 12 de maio de 1996







Créditos da foto: Acervo Histórico IPT

Fonte: Carta Maior

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