sexta-feira, 26 de maio de 2017

GOVERNAR É ATIRAR E DEMOLIR

Governar é atirar e demolir
Wladimir Safatle
A quarta-feira passada (24) entrará para a história do Brasil, entre outras coisas, por dois fatos. Dia 24 de maio de 2017 foi o primeiro dia, desde o fim da ditadura militar, em que o governo ordenou à polícia abrir fogo contra manifestantes em Brasília. Um manifestante foi encaminhado a um hospital por ferimento a bala.
Por coincidência, isto ocorreu no mesmo dia em que a Prefeitura de São Paulo, em uma reedição de políticas higienistas do século 19, ordenava a demolição de um prédio na Cracolândia para a "revitalização da área" e a valorização imobiliária da região. O detalhe macabro é que a demolição ocorreu com moradores dentro do prédio, com o resultado final de três feridos.
Esses são dois exemplos do que significa "governar" em um país como o Brasil.
"Governar" é gerir uma guerra civil na qual se mobilizam afetos de uma parte da população contra outra, isto a fim de que a elite que nos governa possa passar incólume e se perpetuar em suas práticas de pilhagem e uso privado do Estado. Governar é criar inimigos internos, como os "drogados" ou os "baderneiros", e insuflar uma parte da população contra eles.
Tomemos, por exemplo, o que vimos em Brasília.
Na última semana, o Brasil descobriu a estatura moral e criminal do senhor que ocupa atualmente a Presidência da República. Pego em flagrante de prevaricação, lobby, cumplicidade com organização criminosa, ele fez tudo o que criminosos de alta estirpe fazem: desqualificação das provas graças a "peritos" de plantão, chantagem ("sem mim, não haverá reformas") e, o mais clássico, a criação do caos como imagem da insegurança. Um caos cuja função é atemorizar setores da população que acabarão por aceitar a perpetuação desse governo contra a "baderna" que prometeria se instaurar.
Desde que começou a queda de Temer, a imprensa tem nos informado de suas reuniões periódicas com as Forças Armadas.
Para um governo acuado, nada melhor do que o medo e sua força de paralisia social, com um chamamento às Forças Armadas ao final. Mas faltava um fato, um atentado, um ataque terrorista, um ministério pegando fogo, um Plano Cohen, um Reichstag. E, vejam só, um ministério pegando fogo apareceu depois de a polícia praticar seu manual completo de barbarismos e provocações.
Mas e se um dia descobrirmos infiltração da "inteligência militar" nos atos de depredação na última quarta?
Pois não seria certamente a primeira vez que nossa polícia utilizaria suas já clássicas técnicas de infiltração e produção da desordem como tática para paralisar manifestações.
O dado novo é a presença cada vez mais ostensiva das Forças Armadas na vida nacional. Nenhum país joga as Forças Armadas para o centro dos embates sociais impunemente.
Mas uma casta política em decomposição é capaz de tudo.
Contudo o mais impressionante neste momento da história brasileira é como discursos normativos mostram rapidamente seu caráter farsesco.
Nos últimos anos ouvimos vários setores da população a clamar por moralidade na política. Agora, muitos deles usam de argumentos do tipo: "Mas a queda de Temer provocará instabilidade no grande programa de retomada do crescimento". No que eles demonstram que, no Brasil, você pode fazer toda forma de crime e degradação, desde que defenda os interesses econômicos hegemônicos.
Ou seja, muitos agem a partir da lógica: "Ele é um corrupto, mas é nosso corrupto". Como se o governo lutasse pelos interesses nacionais na economia enquanto enfia o pé na lama na política.
Haveria, no entanto, de se perguntar em que universo paralelo vivem os analistas econômicos que assim entendem. Ou melhor: há de se perguntar sobre quem eles esperam enganar. Pois, mesmo se alguma forma de crescimento houver depois das reformas anunciadas, ele será um crescimento em um horizonte de concentração medieval de renda, queda dos salários, intensificação dos regimes de trabalho, brutalização social e desigualdade.
Nenhum país precisa de um crescimento desses.
Na verdade, tal crescimento é outro nome para espoliação e exploração.
Esse é um crescimento que só repetirá o que vemos hoje: 3,6 milhões de pessoas voltando à pobreza enquanto o banco Itaú Unibanco tem lucro líquido de mais de R$ 6 bilhões só no primeiro trimestre de 2017.
Que tal então começarmos a nos perguntar: quem ganha com a permanência do que Temer representa?

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