Eduardo Fagnani*
As conquistas do movimento
social das décadas de 1970 e 1980 contrariaram os interesses dos detentores da
riqueza. Em grande medida, isso se devia ao fato de que mais de 10% do gasto
público federal em relação ao PIB passou a ser vinculado constitucionalmente à
Seguridade Social.
Desde a Assembleia Nacional
Constituinte até os dias atuais, esses setores desenvolvem ativa campanha
difamatória e ideológica orientada para “demonizar” a Seguridade Social e,
especialmente, o seu segmento da Previdência Social, cujo gasto equivale a 8%
do PIB.
Nesta campanha prepondera o
vale-tudo para recapturar esses recursos. Em flagrante confronto com a
Constituição da República, especialistas esforçam-se para “comprovar” a
inviabilidade financeira da Previdência, para justificar nova etapa de
retrocesso nesses direitos.
O objetivo deste artigo é
assinalar que não existe déficit na Previdência, caso seja considerado o que a
Constituição da República Federativa do Brasil manda fazer e o modo como
determina que sejam executados os procedimentos.
O modelo tripartite de financiamento da Seguridade
A Seguridade Social é ao
mesmo tempo o mais importante mecanismo de proteção social do País e um
poderoso instrumento do desenvolvimento.
Além de transferências
monetárias para a Previdência Social (Rural e Urbana), contempla a oferta de
serviços universais proporcionados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), pelo
Sistema Único de Assistência Social (SUAS), pelo Sistema Único de Segurança
Alimentar e Nutricional (Susan) e pelo Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT),
com destaque para o programa seguro-desemprego.
Para financiar a Seguridade
Social (artigo 194 da Constituição Federal), os constituintes de 1988 criaram o
Orçamento da Seguridade Social (artigo 195), um conjunto de fontes próprias,
exclusivas e dotadas de uma pluralidade de incidência.
As contribuições sociais
pagas pelas empresas sobre a folha de salários, o faturamento e lucro, e as
contribuições pagas pelos trabalhadores sobre seus rendimentos do trabalho
integram esse rol exclusivo de fontes do Orçamento da Seguridade Social, com
destaque para:
1.
– Receitas da
Contribuição previdenciária para o Regime Geral da Previdência Social (RGPS)
pagas pelos empregados e pelas empresas;
2.
Contribuição
Social sobre o Lucro Líquido das Empresas (CSLL);
3.
Contribuição
Social Para o Financiamento da Seguridade Social, cobrada sobre o faturamento
das empresas (Cofins);
4.
Contribuição para
o PIS/Pasep para financiar o Programa do Seguro-Desemprego e para financiar os
programas de desenvolvimento do BNDES, igualmente cobrada sobre o faturamento
das empresas;
5.
Receitas das
contribuições sobre concurso de prognósticos e as receitas próprias de todos os
órgãos e entidades que participam desse Orçamento.
Destaque-se que a
Contribuição Social sobre o Lucro Líquido das Empresas (CSLL) e a Contribuição
Social Para o Financiamento da Seguridade Social, cobrada sobre o faturamento
das empresas (Cofins) foram criadas pelos constituintes para financiar os
benefícios típicos da Seguridade Social (Previdência Rural, Benefício de
Prestação Continuada e SUS, público, gratuito e universal). Essas contribuições
estavam previstas no documento “Esperança e mudança: uma proposta de governo
para o Brasil” (PMDB, 1982).
Com o Orçamento da Seguridade
Social, os constituintes estabeleceram o mecanismo de financiamento tripartite
clássico (trabalhador, empresa e governo, através de impostos) dos regimes de
WelfareState (Estado de bem-estar).
Estudos realizados pelo IPEA
(2006) demonstram que para um conjunto de 15 países da OCDE, em média, os
gastos com a Seguridade representam 27,3% do PIB e são financiados por 38% da
contribuição dos empregadores; 22% pela contribuição dos empregados; e 36% da
contribuição do governo (por meio de impostos gerais pagos por toda a
sociedade). Em cinco países (Dinamarca, Irlanda, Luxemburgo, Reino Unido e
Suécia), a participação do governo é relativamente mais elevada.
No Brasil, a contribuição estatal
que deve integrar essas contas é muito pequena. Em 2012, de um total de R$ 317
bilhões utilizados para pagar benefícios previdenciários, as contribuições
exclusivamente previdenciárias (empresas e trabalhadores) somaram R$ 279
bilhões (88% do total). A parcela estatal propriamente dita seria de apenas
12%, um montante muito inferior à terça parte (33%) que caberia numa conta
tripartite.
Se nessa conta fossem
consideradas as renúncias fiscais, outros R$ 22 bilhões comporiam as receitas
previdenciárias, cabendo ao Tesouro tão somente complementar 5% do total das
despesas previdenciárias. Uma conta insignificante, de R$ 16 bilhões, 0,33% do
PIB (ANFIP, 2013).
Portanto, os constituintes de
1988 seguiram a experiência internacional clássica e ratificaram o sistema
tripartite introduzido por Getúlio Vargas na década de 1930 e seguido desde
então, inclusive pela ditadura civil e militar.
Os reformadores de 1988
vincularam constitucionalmente recursos do Orçamento da Seguridade Social, para
evitar uma prática corrente na Ditadura Militar: a captura, pela área
econômica, de fontes de financiamento do gasto social.
Naquela época, em vez de a
política econômica financiar a política social, a política social financiava a
política econômica. Aquela lógica invertida assim continuou (invertida) pelos
governos democráticos a partir de 1990.
“Déficit” e contribuição do governo
Desde 1989 nunca se cumpriu
rigorosamente o que reza a Constituição, no que diz respeito aos princípios da
Organização, Financiamento e Controle Social da Seguridade Social.
Como mencionado, o artigo 194
da Constituição Federal declara que a Previdência Social é parte integrante da
Seguridade Social e conta com recursos do Orçamento da Seguridade Social
(artigo 195).
Contrariamente ao que
determina a Constituição, os Poderes Executivo e Legislativo não consideram a
Previdência como parte da Seguridade Social.
Desde 1989, o Ministério da
Previdência e Assistência Social (MPAS) adota critério contábil segundo o qual
a sustentação financeira da Previdência depende exclusivamente das receitas
próprias do setor (empregados e empregadores).
A parcela que cabe ao governo
no sistema tripartite não é considerada. Essa lacuna leva, inexoravelmente ao
“déficit” do Regime Geral de Previdência Social (Urbano e Rural).
Essa prática contábil só
serve, unicamente, para criar, alardear um falso déficit e justificar mais
‘reformas’ com corte de direitos. São invencionices, pois desconsideram os
artigos 165, 194, 195 e 239 da Constituição.
A Seguridade Social é superavitária
O governo jamais organizou a
Seguridade Social e apresentou o Orçamento da Seguridade como ordenam os
dispositivos constitucionais mencionados.
Alguns especialistas e
instituições têm desenvolvido esforço metodológico nesse sentido. Esses estudos
revelam que o Orçamento da Seguridade Social sempre foi superavitário: como
segue: 2006 - R$ 60 bilhões, 2007 - R$ 73 bilhões, 2008 - R$ 64 bilhões, 2009 -
R$ 33 bilhões, 2010 - R$ 54 bilhões, 2011 - R$ 76 bilhões, 2012 - R$ 83
bilhões, 2013 - R$ 76 bilhões, 2014 – R$ 54 bilhões, 2015 – R$ 11 bilhões.
Portanto, à luz da
Constituição, não há como se falar em “déficit” na Previdência Social. Na
verdade, sobram recursos que são utilizados em finalidades não previstas na
lei. Assim, como ocorria na ditadura, a Seguridade Social continua a financiar
a política econômica.
Captura de recursos da Seguridade Social
O Orçamento da Seguridade
Social tem-se mantido superavitário, mesmo com a instituição da atual
Desvinculação das Receitas da União (DRU), em 1994, que captura 20% dessas
receitas para serem aplicadas livremente pela área econômica.
Com subtração de recursos e
com muitas manobras que inflavam artificialmente as despesas, fizeram da
Seguridade uma importante fonte para o ajuste fiscal do período. Só em 2012, a
DRU retirou da Seguridade Social R$ 52,6 bilhões. O acumulado, só para o
período 2005-2012, totaliza mais de R$ 286 bilhões (ANFIP, 2013).
Da mesma forma, o Orçamento
da Seguridade Social tem-se mantido superavitário mesmo com o aprofundamento da
política de concessão de isenções fiscais para setores econômicos selecionados
iniciado nos anos de 1990, quando, por exemplo, o setor do agronegócio foi
isentado de contribuir para a Previdência Rural.
Essa política foi aprofundada
a partir de meados da década passada. Em 2012, as isenções tributárias
concedidas sobre as fontes da Seguridade Social (CSLL, PIS/Pasep, Cofins e
Folha de Pagamento) totalizaram R$ 77 bilhões (1,7% do PIB).
Assim como a Desvinculação de
Receitas da União (DRU), esse processo também deprime o superávit da Seguridade
Social e poderá comprometer sua sustentação financeira no futuro.
A Previdência é parte da Seguridade Social
Em 1988, a sociedade
concordou em assegurar proteção à velhice para milhões de trabalhadores rurais
que começaram a trabalhar nas décadas de 1940, sem registro na carteira e em
condições de semiescravidão. Houve naquele momento um pacto social para resgatar
uma injustiça histórica cometida contra esse segmento.
Por outro lado, a Carta de
1988 fixou uma contribuição com base muito limitada para financiar o estoque de
trabalhadores rurais e o fluxo de novos beneficiários. Essa base de
contribuição é ainda mais restringida pelas isenções fiscais dadas ao
agronegócio exportador (Emenda Constitucional 33/1997).
Entretanto a Cofins e a CSLL,
criadas em 1988, suprem o financiamento deste benefício típico da seguridade.
Essas contribuições foram instituídas para que o Estado cumpra sua parte no
sistema tripartite.
Em suma, à luz da
Constituição da República, não se pode considerar a Previdência Social apartada
da Seguridade Social. Mais especificamente, não se pode excluir o financiamento
da Previdência Social (Rural e Urbana) do conjunto de fontes que integram o
Orçamento da Seguridade Social que sempre foi superavitário.
Nas contas dos resultados
financeiros do regime geral da Previdência Social apresentados pelo Ministério
do Planejamento, além da devida e pronta compensação das renúncias, é
necessário acrescer a contribuição do Estado, para complementar a base de
financiamento tripartite do modelo. Se as contas da Previdência Social fossem
assim apresentadas, o mito do déficit estaria desmascarado.
Portanto, não há como se
falar em “déficit” na Previdência Social.
* Professor de Economia da
UNICAMP
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