Ciro quer esconder responsabilidade na derrota
A informação mais relevante da entrevista de Ciro Gomes a Folha de S. Paulo, a primeira depois da eleição de Jair Bolsonaro, envolve seu papel no país que a partir de 1 de janeiro de 2019 estará diante do primeiro governo de extrema-direita desde os tempos de Emílio Médici, na ditadura militar.
"Não posso me afastar agora da luta," diz Ciro Gomes, assumindo ar responsável no primeiro pronunciamento depois de uma omissão de três semanas entre Lisboa e Paris. "O país ficou órfão", prossegue, apresentando-se como candidato à pai adotivo depois de manter um silêncio obsequioso a 8.725 km de distância, incapaz de qualquer gesto efetivo para ajudar a evitar uma catástrofe e impedir uma guerra de extermínio.
Capaz de partir para o descanso no exterior quando a sobrevivência de um país de 207 milhões de habitantes foi objetivamente colocada em perigo por Bolsonaro & Cia, a indiferença de Ciro pelos destinos dos brasileiros e brasileiras envergonhou uma imensa parcela de eleitores e e calou aliados. Também provocou uma interpelação irrespondível por parte do artista plástico Nuno Ramos, um dos mais conceituados do país. Engajado como tantos brasileiro na luta pela virada a favor de Fernando Haddad, em artigo intitulado "Gente Froxa", onde analisa a omissão de vários homens públicos que preferiam manter-se quietos na reta final da campanha em vez de jogar fundo na luta democrática, Nuno refere-se ao comportamento de Ciro nos seguintes termos: "Estará magoado? Quem sabe um terapeuta? Uma xícara de chá, para iniciar a lenta dança de aproximação para as eleições de 2022, que provavelmente nunca chegarão? "
Quando o repórter da Folha Gustavo Uribe perguntou a Ciro se não teme "ser visto como traidor pelos eleitores de esquerda", este alegou que "a gente trai quando dá a palavra e faz o oposto. Quem tiver prestado a atenção no que falei, está muito clara a minha posição de que com o PT eu não iria".
O problema da postura de Ciro era e é outro. Antes de sua partida repentina do país, com uma mala onde carregava 13% dos votos, contra 25% de Fernando Haddad, ele sempre deu a entender, em particular no último debate do primeiro turno, que estaria aberto para um acordo na segunda fase. Haddad tinha certeza de que o apoio viria, com todas as armas e bagagens. A verdade não era bem essa, contudo. Ele movia-se em outro horizonte, de acabar coroado como uma imaginária terceira via da campanha, que Fernando Henrique Cardoso procurou e não encontrou quando a disputa se polarizou entre Haddad e Bolsonaro.
Iludido com a encenação, ao cair na realidade Ciro estrelou um enredo de quem só é capaz de seguir na disputa quando está combinado que seria o único vencedor. Ao verificar que estava fora, resolveu nada fazer por ninguém, como se não fosse possível reconhecer o óbvio: os bons homens públicos têm como prioridade o respeito pelas necessidades da maioria da população, e não vantagens pessoais. Também deve saber a prioridade de cada hora.
No Brasil de 2018, até as crianças descobriram que a prioridade era impedir a vitória de Jair Bolsonaro, por razões bem conhecidas, que não é preciso explicar aqui.
Por essa razão os últimos dias produziram uma mobilização democrática muito maior que Haddad, Lula e o PT, envolvendo lideranças populares e intelectuais, sindicalistas e artistas, donas de casa e estudantes. Irmanados pela compreensão de que havia uma tarefa essencial a cumprir, milhões foram às ruas para disputar votos. Ninguém estava atrás de um cargo para ocupar nem favores para receber.
Era uma luta patriótica, democrática. Conheci um motorista de ônibus que distribuía ótimos panfletos nos quais se explicava as 13 razões para não votar em Bolsonaro. Encontrei uma trabalhadora baiana que encarou um cidadão de classe média alta para explicar que foi Lula ("o que não tem um dedo") quem instalou água e luz na casa de seu pai, morador no Recôncavo. Numa calçada da avenida Paulista, ali estava o grande ator Hérson Capri, paciente e empenhado na discussão com eleitores querendo conversar sobre o sentido de seu voto.
Num fase da campanha onde a transferência de votos é essencial para criar um clima de virada, Ciro Gomes não apareceu. Não mandou um vídeo, um aceno. No aeroporto de Fortaleza, quando retornou ao país, abriu a boca para dizer "Ele não" quando esta expressão fora capturada pela campanha de Bolsonaro, que passara a recomendar votos nulos e brancos para impedir o crescimento de votos válidos a favor de Haddad, os únicos que poderiam ter virado a eleição.
Numa disputa que teria mudado de vencedor caso Haddad tivesse conquistado de 7.7 milhões a mais de votos -- ou 5% do eleitorado -- Ciro Gomes fez questão de cruzar os braços e não ajudar em nada. Este foi seu lamentável papel em 2018.
O resto são palavras de quem tenta fugir da própria responsabilidade. Numa curva grave do país, finge que não tem nada a ver com isso. Incapaz de confrontar Bolsonaro com o vigor de sua retórica, agora dá porrada em Lula, diz que Leonardo Boff é um bosta.
Há outro ponto. Em 15 de outubro, em Fortaleza, o irmão Cid Gomes, recém- eleito senador, transformou a inauguração de um Comitê Eleitoral num ritual de ataques e provocações a Fernando Haddad e ao PT. Cid anunciou a derrota na campanha presidencial. Quando um grupo de militantes puxou um coro em saudação a Lula, Cid Gomes rebateu: "Lula está preso seu babaca".
Parecia uma cena incompreensível, inexplicável. Agora está tudo claro no comportamento de Cid e de Ciro.
Alguma dúvida?
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