segunda-feira, 15 de outubro de 2018

O ''perigo'' de Bolsonaro: a culpa não é de quem parece


O ''perigo'' de Bolsonaro: a culpa não é de quem parece

O fenômeno de Jair Bolsonaro no Brasil gerou um mar de dúvidas e perguntas sobre as razões do seu resultado e o futuro da região caso ele se consolide no segundo turno. Os vínculos entre esse provável desfecho da eleição brasileira, a realidade argentina, e as diferentes formas de analisar o que acontecerá até o dia 28 de outubro

 
15/10/2018 16:10
 
 
No dia 7 de outubro, o Brasil, maior e mais poderoso país da nossa América, teve seu primeiro turno eleitoral, cujos resultados indicam que haverá um desempate onde se enfrentarão Jair Messias Bolsonaro, um militar da reserva e atualmente deputado, candidato do conservador Partido Social Liberal (PSL), e Fernando Haddad, ex-ministro de Educação de Lula da Silva e Dilma Rousseff, também ex-prefeito de São Paulo e candidato pelo progressista Partido dos Trabalhadores (PT), que assumiu a candidatura presidencial devido à impugnação de Lula, que está preso e impedido de concorrer.

A importância destas eleições motiva o interesse por saber como se chegou a esta situação. Entre as causas a destacar se encontram: a atual crise que o país atravessa, as fragilidades do progressismo do PT e os generalizados problemas em matéria de corrupção e insegurança, utilizados pela propaganda do sistema. Tampouco devemos nos esquecer das perspectivas do Brasil e sua influência sobre a realidade argentina. Para terminar, deve-se observar as distintas óticas para abordar e analisar este segundo turno e suas possibilidades.

Os antecedentes desta situação
Há dois conceitos que definem a importância que o Brasil tem, e que estão instalados há várias décadas. Henry Kissinger, o legendário chefe da diplomacia norte-americana, tem a ver com ambos. Disse, tempos atrás, que: “para onde o Brasil se inclinar, a América Latina o seguirá”. Dessa forma, reivindicava o peso desse país na região e exalta os habitantes desse país, onde está fortemente arraigado aquele sentimento de que o Brasil é “o maior do mundo”.

Mas junto com esse conceito, aparece outro, também realista, mas menos elogioso, que define o Brasil como o “satélite privilegiado” das políticas norte-americanas para estes territórios.

O Brasil não esquivou a onda de governos militares nesta zona. Nesse país, tal período foi longo (1964-1985) e com algumas diferenças a respeito do resto da região. Os governos da ditadura brasileira foram desenvolvimentistas e conservadores, e levaram o país a crescer e se industrializar, embora isso ocorresse em meio a uma gigantesca exclusão e desigualdade social. Houve uma resistência guerrilheira, embora de menor atuação que as de outros países – como Argentina, Chile e Uruguai. Nesse marco, o desprestigio dos militares foi inferior ao que aconteceu nesses outros países.

O mais notável que aconteceu no Brasil foi o vigoroso avanço do movimento operário. A Central Única dos Trabalhadores (CUT) se constituiu no eixo da construção do Partido dos Trabalhadores (PT). Seu fundador e principal dirigente, o operário metalúrgico Luiz Inácio “Lula” da Silva, formou uma aliança com outros setores, particularmente camponeses e grupos vinculados à Igreja Católica, como as comunidades eclesiásticas de base, o que o levou à Presidência em janeiro de 2003. O PT governou durante 13 anos.

Governos do PT: acertos e erros que permitiram a restauração conservadora
Entre os efeitos mais importantes gerados pelas políticas do PT está a redistribuição de renda, que embora não tenha diminuído tanto a brecha entre o setor mais rico e os mais pobres do país ao menos tirou mais de 20 milhões de brasileiros da pobreza, e outros tantos da miséria extrema. Essa política, filha de um progressismo desenvolvimentista e assistencialista, deixou incólumes as bases econômicas do sistema empresarial, que seguiu dominando o horizonte do poder brasileiro, arraigado nos latifundiários e na poderosa Federação das Indústrias do Estado de São Pablo (FIESP), com a qual o poder político tinha que negociar.

Um exemplo disso é o caso do economista Henrique Meirelles, oriundo do setor financeiro e amigo da FIESP. Ele foi presidente mundial do Bank Of Boston, e Lula da Silva o manteve durante 8 anos como presidente do Banco Central brasileiro em sua gestão. Não é diferente o caso de Joaquim Levy, ministro da Fazenda de Dilma Rousseff, um economista neoliberal Escola de Chicago.

Mas isso que aconteceu no Brasil não é muito diferente do que vem ocorrendo com outros governos progressistas, e serve como advertência aos que se reconhecem como parte dos movimentos populares.

Quem procedeu assim se esqueceu da necessidade de produzir mudanças profundas em seus países, até que esse frágil interesse por mudanças estruturais, o acosso das multinacionais e as conveniências estratégicas da política norte-americana na região terminaram por devorá-los. O Brasil é a prova mais evidente do modo como as vacilações dos governos progressistas dos últimos anos abriram as portas para uma restauração das políticas conservadoras, a consolidação da hegemonia dos setores financeiros e a renovada presença dos interesses estadunidenses em vários países.

A falta de respostas estruturais e de participação popular fez com que “o consumismo substituísse a necessária formação ideológica e a construção de um poder nas mãos do povo organizado”, como explica o teólogo brasileiro Frei Betto. O fraco protagonismo e mobilização da CUT e do PT nos últimos acontecimentos confirmam essa situação. Por outro lado, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), organizado com certa autonomia com relação ao Estado e ao governo, conseguiu crescer e tem disso o principal defensor dos avanços do PT, da luta pela liberdade de Lula e da candidatura de Fernando Haddad.

Corrupção e insegurança: realidade e uso propagandístico
Os temas da corrupção e da segurança estão no centro das questões planteadas através da imprensa, e têm muita influência nas decisões dos eleitores na hora de votar. Ambos os problemas são reais, mas os meios os apresentam de forma a semear o medo e favorecer as políticas repressivas. Também servem ao objetivo de despolitizar a sociedade e implantar a ideia de que somente o poder econômico pode governar e impor seus critérios, obviamente a serviço dos seus interesses.

No que diz respeito ao tema da corrupção, é preciso entender que ela inclui pelo menos três ingredientes:

a) Os recursos necessários para o financiamento de um sistema político que deixa de fora aqueles que não tenham muito dinheiro; b) seu aproveitamento por parte do sistema imperial de dominação que, dessa forma, evita ter que adotar outras formas de intervenção que o deixariam exposto; c) a circulação de um dinheiro ilegal cria as condições para a questão social e política mais grave: o enriquecimento dos políticos que administram esses recursos.

Os movimentos populares sempre reivindicaram o valor da ética no manejo da coisa pública, mas esse valor foi se perdendo quando tiveram que ser governo. Não resta dúvidas de que isso foi visto como um ato de traição aos interesses que disseram defender e ao sentido das mudanças que – em seus discursos – prometeram realizar.

Com respeito ao tema da segurança, a questão forma parte de uma das chaves das políticas de domínio dos poderosos. Basta ver como 4 de cada 5 notícias dos canais de televisão vinculados ao poder tem a ver com assuntos policiais. Isso ajuda a instalar vários objetivos complementares: a estigmatização dos pobres, o fortalecimento das políticas repressivas e a multiplicação da desconfiança e da descrença num sistema político institucional que, por méritos próprios, é cada vez mais decrépito, levando a crítica ao mesmo por caminhos improdutivos, que não o da sua correção.

O combate a estes dois elementos: corrupção e falta de segurança, são “vendidos” – usando um termo comum do sistema – como o objetivo destes governos conservadores, filhos do poder mais imoral, reacionário e criminoso dos últimos tempos.

O Brasil que virá e suas repercussões na Argentina
Se imaginarmos que Haddad conseguirá virar o jogo no segundo turno, teríamos um Brasil seguindo um caminho semelhante ao que teve nos tempos de Lula da Silva e Dilma Rousseff, mas com características particulares. Esse governo, terá muito menos poder e estará submetido ao constante acosso desta nova liderança, de um conservadorismo militante e reacionário.

Também deve-se incluir nesse hipotético cenário a presença ameaçadora de uma estrutura militar fortemente comprometida com essa nova liderança direitista, a tal ponto que não faltam os que consideram que a candidatura de Bolsonaro surgiu das entranhas da inteligência militar. Todos esses antecedentes darão um forte clima de instabilidade institucional a um eventual governo do PT.

No caso de se confirmar a tendência do primeiro turno, a situação será muito diferente, embora talvez mais imprevisível. Paulo Guedes, o economista ultraliberal apresentado como o próximo ministro da Economia de Bolsonaro, está sendo questionado por casos de corrução. Guedes também é formado na Escola de Chicago. Sua política pode chocar com certo “nacionalismo” de Bolsonaro e de alguns núcleos de setores militares.

Entre os observadores internacionais prima a ideia de que se trata de um governo da chamada Bancada BBB (boi, bíblia e bala). O primeiro B (boi) é pela força que teriam os tradicionais latifundiários e donos do campo. O segundo B (bíblia) é pela presença decisiva dos setores evangélicos, especialmente da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) – a qual foi expulsa, em 1992, da “Aliança Evangélica de Igrejas”, por suas atividades “não santas”. O terceiro e último B (bala) corresponde aos setores militares e defensores da desregulação da legislação sobre o porte e a compra de armas, além do carácter repressivo ligado à própria figura de Bolsonaro.  

Sabe-se que a Argentina tem no Brasil o seu principal sócio comercial. Essa situação pode mudar ou sofrer mudanças drásticas, caso esse eventual governo decidir dinamitar ou aprofundar a decadência do Mercosul.

No caso de que Bolsonaro se imponha no segundo turno, devido às afinidades ideológicas entre ele e Mauricio Macri, é possível esperar que o povo brasileiro, assim como o argentino, deverá se preparar para essas tristes perspectivas.

Como contrapartida da hipótese anterior, os povos de ambos os países e as organizações populares que os expressam terão a responsabilidade de assumir a resistência aos mesmos e à construção de alternativas capazes de superar as limitações anteriores.

Em tal caso, a possibilidade de compartilhar essas tarefas tem uma vigência, e uma perspectiva que não se deu em outros momentos históricos. Não é o momento de chorar sobre o leite derramado, e sim de construir forças que permitam terminar com esta onda reacionária e criar condições para ir além dos frustrados processos progressistas que abriram as portas do inferno que hoje nos devora.

Diferentes visões a possibilidades para o segundo turno
Diante deste cenário e dos desafios a serem enfrentados neste desempate eleitoral, há duas formas de se posicionar.

Se analisamos a partir da visão dos partidos, suas plataformas eleitorais e das declarações de seus dirigentes, surge a ideia de que Haddad teria boas possibilidades de reverter o resultado do primeiro turno. Em efeito, embora sejam poucos os apoios concretos à sua candidatura no segundo turno, a maioria dos outros setores democráticos – para não dizer quase todos – ao menos manifestaram publicamente sua oposição a Bolsonaro. Esse seria o cenário racional e “politicamente correto” de analisar a realidade, na qual Haddad poderia emergir como novo Presidente.

Mas há outra forma de ver as coisas. Se trata de uma consideração onde o eixo se coloca mais nos aspectos emocionais. Este é campo para o qual Bolsonaro levou sua campanha. Algumas de suas peças publicitárias são mostra disso.

Num desses spots, bastante difundido, se diz que “o mito chegou e o Brasil acordou”, enquanto um colosso de pedra se levanta e estica os braços diante de uma população emocionada, que observa o fenômeno e escuta o lema “ordem e progresso (consigna incorporada à bandeira brasileira), eu quero para o mi país”. Ao fundo, se vê uma legenda que diz “o gigante não está mais adormecido”.

Contra essa campanha emotiva e em um ambiente muito crítico aos partidos mais conhecidos, é – infelizmente – pouco provável que o racionalismo partidário que Haddad possa reunir possa se impor, e descontar os 18 milhões de votos que os separaram no primeiro turno.

Juan Guahán é analista político e dirigente social argentino, associado ao Centro Latino-Americano de Análise Estratégica (CLAE)

*Publicado em estrategia.la | Tradução de Victor Farinelli

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