segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Nordeste, a sede da resistência a Bolsonaro

Política

Pos-eleição

Nordeste, a sede da resistência a Bolsonaro

por Murilo Matias — publicado 04/11/2018 02h00, última modificação 01/11/2018 13h29
Região é a única a garantir vantagem a Fernando Haddad na disputa presidencial e desponta na vanguarda do progressismo nacional
Ricardo Stuckert
Salvador
Ato em salvador de apoio a Haddad durante o segundo turno da disputa
Os maranhenses não tem medo do comunismo, os paraibanos reafirmaram sua confiança no socialismo, os baianos não afundaram na onda antipetista que tragou parte dos eleitores brasileiros.
No início da noite de 28 de outubro os nordestinos aguardavam a definição da disputa no Rio Grande do Norte entre asenadora Fátima Bezerra (PT) e o ex-prefeito de Natal, Carlos Eduardo Alves (PDT), ambos candidatos ao executivo, para a conformação de um cenário histórico.
O resultado transcendia os limites do estado e interessava a todos os progressistas do país, aliviados com a simbólica eleição da única mulher governadora brasileira que ratificava a posição do Nordeste na linha de frente de uma consciente resistência popular feita, nesse caso, pelas maiorias diante da eleição de Jair Bolsonaro (PSL).
"Essa não foi a eleição de um partido ou de um político, foi a eleição do preconceito contra negros, mulheres, homossexuais. Me entristece que o vencedor não tenha políticas públicas voltadas para os mais carentes. Nesse momento precisamos nos articular e unir diante da opressão, não vamos ficar parados, nem baixar a cabeça na busca pelos nossos direitos. Somos herdeiros da resistência, a luta continua", ensina Genilda Maria Silva, líder do Quilombo Carrasco, localizado em Arapiraca no interior alagoano, território onde viveu Zumbi dos Palmares.
Contrastando com a disputa presidencial e a exemplo da decisão tomada pelos potiguares, os sergipanos também escolheram o projeto identificado com a esquerda liderado por Belivaldo Chagas (PSD) e Eliane Aquino (PT), reeleitos em segundo turno.
Apoiadores de Fernando Haddad (PT), os candidatos enfrentaram pesada campanha de notícias falsas associando-os a políticos corruptos e anunciando futuros secretários que comporiam a gestão, mas sabem da urgência de dialogar com os diversos atores envolvidos no processo para trazer emendas e projetos ao estado.  
“Vou buscar o apoio do deputado que estiver pensando em Sergipe, independente de ser da oposição ou da situação. Quando se ganha uma eleição com um resultado como esse a gente tem obrigação de já a partir desse momento descer do palanque”, disse Belivaldo após confirmar o triunfo com 64% da preferência local.
No plano regional, a impressionante média de 67,7% concedida pelo Nordeste a Haddad, variando de 60% em Alagoas a 77% no Piauí - na cidade de Guaribas o percentual atingiu 98% - foi assegurada com o aumento real da votação do primeiro turno, apesar da violência política crescente e das tentativas de intimidação registradas contra militantes da esquerda.
Os minutos iniciais que projetavam a corrida do segundo turno entre os presidenciáveis trouxeram a notícia do assassinato no centro de Salvador do mestre Moa do Katendê por haver defendido o PT em discussão com o autor do crime, eleitor do candidato do PSL.
A poucas horas da abertura das urnas, no último domingo, Charlione Lessa Albuquerque defendia a candidatura petista quando foi morto a tiros durante carreata no Ceará. No dia da votação, um cidadão botou fogo na urna em que deveria votar numa alegoria sobre os rumos da democracia no Brasil, em Fortaleza.
Esses e outros episódios não acarretaram no recuo do eleitorado responsável regionalmente pelos índices que contrastaram com as outras quatro regiões do país, entusiastas em massa da proposta da extrema-direita. A tão esperada virada nacional que não veio aconteceu em importantes capitais nordestinas, as quais haviam inicialmente dado mais votos a Bolsonaro. A reversão teve lugar em Recife e Aracaju, única capital brasileira gerida pelo PCdoB. Em Fortaleza, onde Ciro havia sido o mais votado, Haddad liderou no segundo turno.
No maior estado da região, governado pelos petistas há mais tempo, a mudança de posição do pastor, militar Sargento Isidório (Avante) , deputado federal mais votado pelos baianos, demonstrava o efetivo trabalho desenvolvido no convencimento de indecisos e até mesmo de adversários. "Foi o governo do PT que mais se aproximou dos pretos e brancos pobres sofridos. O Brasil era para todos, não vamos prejudicar nossa nação por conta dos erros de alguns petistas", declarou. 
Na Bahia, aliás, onde Rui Costa (PT) obteve reeleição com 75% dos votos, dentre as 417 cidades, Haddad só perdeu em quatro. A multidão vermelha tomando o Farol da Barra em Salvador no mais emblemático ato de rua de toda a eleição certamente seria a imagem que falaria por mil palavras sobre a frustrada reviravolta, esperada também por vizinhos do Norte.
Colados no Nordeste, Pará e Tocantins foram os únicos entes federativos a discordarem da maioria do eleitorado ao conceder vantagem ao petista, mesmo escolhendo governadores do segmento conservador, Mauro Carlesse (PHS) pelos tocantinenses e Helder Barbalho(MDB), do poderoso clã Barbalho pela vez dos paraenses.
"A cabanagem foi a única das revoluções brasileiras que teve experiência de governo. Até hoje esse imaginário é forte nas comunidades que acumulam memória. Além disso, a presença do Luz para Todos, Bolsa Família, Prouni estão vinculadas a Lula. Na Amazônia os projetos sociais fomentam a resistência", contextualiza o deputado federal mais votado do Pará, Edmilson Rodrigues (Psol), companheiro de partido da paraibana Luiza Erundina, que fez sentir o sangue nordestino na gigante São Paulo com sua reeleição para a Câmara.
O que está ruim e pode piorar
Os nove governadores vitoriosos do Nordeste estão entre os perdedores da eleição nacional, derrota que pode significar bem mais do que um simples revés nas urnas. Parte considerável dos atuais gestores reclama da interlocução com os representantes de Michel Temer (MDB) e sabem que a situação pode se agravar diante das sinalizações do novo presidente ao, dentre outras afirmações, afirmar a necessidade de acabar com o "coitadismo" do Nordeste, em alusão às políticas sociais de distribuição de renda fundamentais para tirar contingentes enormes da população da faixa de miséria. 
Defendendo o legado das administrações petistas e a popularidade do ex-presidente Lula, lideranças estaduais abriram seus palanques a Haddad, diferentemente do que se viu em outros locais em que o candidato não contou com alianças, especialmente durante o segundo turno.
"Vi pessoas que saíram daqui no pau de arara e voltarem de avião para visitar a família ou viver novamente em suas terras natais, essa historia é comum a milhares e explicam nossa gratidão por quem olhou para nosso povo com conhecimento de causa", conta Evangelista Mauro, em áudio gravado pelo whatsapp, desde Goianinha, no Rio Grande do Norte.
A postura de parte da classe política e da maioria da cidadania rememora, de maneira distinta, situações de contestação lideradas por coletivos que tornaram-se rivais do poder central ao longo de períodos de exceção, restrição de direitos e imposição de agendas retrógradas.
Foi assim na época de Zumbi dos Palmares, radicado em Alagoas na organização dos quilombos, na Guerra de Canudos, quando a comunidade de Antonio Conselheiro acabou dizimada pelas forças oficiais no interior da Bahia ou na tentativa de formação da guerrilha na cidade de Catolé do Rocha na Paraíba na ditadura militar.
Participante da operação, Edmilson de Azevedo atualmente enfrenta quadro similar ao que provou na década de 1960 e 1970 quando estudava. Professor de Filosofia na Universidade Federal da Paraíba (UFPB) critica a investida contra a liberdade e autonomia das universidade e o contraste com o período em que Haddad chefiou o Ministério da Educação empreendendo a maior expansão do ensino superior brasileiro com as ações afirmativas das cotas, o aumento do investimento e das bolsas estudantis.
"A universidade foi muito proativa em relação às minorias, acarretando a ira do poder vigente com o que eles taxam de ideologia marxista. A ameaça às instituições são um ensaio do projeto que visa quebrar a oposição ao regime fascista que tenta instalar-se no país. A história se repete. O Nordeste foi muito visado e penalizado pela ditadura pela existência de movimentos campesinos como o de Julião, em Pernambuco e pela presença do Partido Comunista, originado aqui. A região foi muito combativa, essa marca permaneceu e terá que ser revivida através da coesão dos governos e do povo para enfrentar o revanchismo federal, até por que muitos eleitores de Bolsonaro tem uma mentalidade de preconceito com os nordestinos, que precisarão cuidar de si mesmos", avalia.  
Sede de resistência
O descaso sintomático com a região tem na redução drástica do orçamento para o combate à seca um dos marcos desde o golpe ante a presidenta Dilma Rousseff (PT). O atraso em repasses provenientes da União afetou a construção de cisternas, obras como o canal de Açu na Paraíba, assumido pela gestão estadual, e a finalização em vários trechos da transposição do Rio São Francisco, evidenciando a postura dos governos de direita com o tema desde o mandato de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), época em que para acabar com a fome realizava chamamentos à sociedade civil para arrecadar alimentos e enviá-los ao Nordeste.
O programa Fome Zero lançada por Lula e o gradual desenvolvimento da região corrigiu parte da herança deixada, abrindo ainda espaço de diálogo com movimentos sociais que têm papel destacado na melhora da qualidade de vida de muitas localidades.
Embora ainda carente de uma ampla reforma agrária, os investimentos junto a acampamentos e assentamentos do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) faz com que vários estados contem com numerosas famílias ligadas à luta campesina, preocupadas diante da intenção de Bolsonaro em classificar os atos do MST como terroristas. Na noite do dia 30 o acampamento Comuna Irma Dorothy , que reúne 150 famílias localizadas em Tamboril, foi incendiado por quatro homens, de acordo com testemunhas.
"O pior é a legitimação da violência pelo presidente ao invés de propor um pacto de paz, ainda que apresente sua agenda conservadora. Não se sabe quais consequências disso, mas já passamos por muitas dificuldades na década de 1980 quando surgimos acossados pela União Democrática Ruralista (UDR) e durante a presidência de Collor e FHC, alinhados ao agronegócio e ao latifúndio. Vamos sobreviver e continuar a ocupar para que a constituição seja cumprida, toda terra improdutiva é passível de desapropriação para a reforma. Seguiremos organizando o povo e pressionando mesmo com a ameaça das milícias armadas que já existem nas grandes fazendas. A tendência é de que infelizmente a repressão e a violência aumentem", observa Jaime de Amorim, membro da coordenação nacional do MST e morador do assentamento Normandia, em Caruaru.
A imprensa também está entre os alvos, sobretudo os veículos independentes e alternativos, a apreensão de jornais do Brasil de Fato insere-se nesse contexto. Se até corporações poderosas da ordem da Folha de São Paulo sofrem a investida da nova elite nacional, o panorama para as mídias menores deve se acirrar no interior e periferias cujos temas são ignorados pelos grandes meios de comunicação. Os processos contra jornalistas e as agressões a profissionais compõem o temido quadro de perseguição a opositores.
No campo religioso, a ideia da primeira dama de pregar o evangelho mostra que a ameaça pode vir de todos os lados, utilizando uma vez mais a manipulação pela fé. "Quero fazer a diferença, fazer missões no sertão. Meu sonho é chegar no sertão, tenho muita vontade que essas pessoas melhorem de vida", afirmou Michelle Bolsonaro em entrevista à Record.
Diante da arrogância dos eleitos e do poder que concentrarão os próximos quatro anos devem exigir dos nordestinos um largo período de provações. Para a sorte dos conterrâneos as referências na história e no presente são fartas para comprovar as palavras do potiguar Rafael Duarte, "o Nordeste não é região, é resistência".

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