sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Ato Institucional número 5 (AI-5):Cinquenta anos do Terror de Estado

Memória

Ato Institucional número 5 (AI-5):Cinquenta anos do Terror de Estado

No dia 13 de dezembro de 2018, apenas três dias após os 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, nada temos a comemorar. Ao contrário, temos muito a lamentar pelo passado de dor e sofrimento e pelo presente de medo que anuncia um futuro de incerteza

 
14/12/2018 11:02
 
 
No dia 13 de dezembro de 1968, há cinquenta anos atrás, o então ministro da Justiça, Gama e Silva, anunciou em cadeia nacional de rádio e televisão, a edição do Ato Institucional número 5 (AI-5), aprofundando a natureza ditatorial do regime instalado em 1964 e dando início ao que foi chamado por muitos de “anos de chumbo”. 

Pouco mais de quatro anos antes, na madrugada de 31 de março para 1 de abril de 1964, o presidente João Goulart (Jango) era derrubado por um violento golpe de Estado. A ruptura da ordem democrática teve início com o deslocamento de tropas militares para o Rio de Janeiro, sob o comando do general Olympio Mourão Filho, instaurando uma ditadura que durou vinte e um anos. A ditadura militar brasileira inaugurou o ciclo autoritário que tomou conta dos países do Cone Sul da América do Sul nas duas décadas seguintes. 

A edição do AI-5 no final de 1968 foi precedida de outros atos institucionais que deram ao regime o formato legal autoritário que foi tomando corpo nos anos seguintes a sua instalação.

Os Atos Institucionais (AI) foram diplomas legais editados, com o respaldo do Conselho de Segurança Nacional, pelos Comandantes-em-Chefe das Forças Armadas ou pelo Presidente da República, durante a ditadura militar no Brasil, instituindo uma legalidade autoritária com normas que se colocavam acima do próprio ordenamento jurídico constitucional. Serviram como mecanismos de legitimação e legalização das ações políticas dos militares, estabelecendo diversos poderes extra-constitucionais.

No dia 9 de abril de 1964, a junta militar publicou o seu primeiro ato institucional (AI-1) dando ao governo militar poderes para cassar mandatos parlamentares, suspender direitos políticos, alterar a Constituição, demitir e aposentar compulsoriamente qualquer pessoa que fosse considerada uma ameaça à segurança nacional. No ano seguinte, em 1965, outro ato institucional (AI-2) aprofundou a natureza autoritária do regime ao instituir as eleições indiretas para presidência da República, extinguir os partidos políticos e aprimorar o processo de perseguição aos opositores do regime, estabelecendo que o general-presidente poderia decretar Estado de Sítio sem consultar o Congresso Nacional. 

Após quatro anos de regime autoritário, em 1968, as forças democráticas retomaram uma certa iniciativa política através de manifestações exigindo o fim da ditadura. O auge se deu com a chamada passeata dos 100 mil no Rio de Janeiro. A repressão foi extremamente violenta com a prisão de estudantes, intelectuais, lideranças sindicais. 

O ano de 1968 se tornou o símbolo de um período histórico de grandes experimentações transformadoras em todo o mundo. Anos de “rebeldia coletiva”, de lutas políticas, manifestações de contracultura, das mobilizações contra a guerra do Vietnam, das “barricadas do desejo” e do “novo assalto aos céus” de Paris 68, Primavera de Praga, da “nouvelle vague”, do cinema novo no Brasil, do movimento hippie, da revolução sexual, das imensas manifestações políticas em Paris, Berkeley, Berlim, México etc. Foi um momento da história que podemos identificar como de “rebeldia coletiva” em todos os campos da existência, na política, na cultura e nas artes. O ano mais “orgasmico” do século XX. No Brasil, os ventos da rebeldia sopraram sob uma ditadura. 

Em setembro de 1968, o deputado federal Márcio Moreira Alves fez um pronunciamento na Câmara protestando contra a invasão da Universidade de Brasília (UnB) pela Polícia Militar. O tom do seu discurso levou o poder militar a exigir, através do Supremo Tribunal Federal, a cassação do mandato do parlamentar. Em sessão realizada no dia 11 de dezembro de 1968, a Câmara dos Deputados não aceitou a exigência militar, criando o pretexto para a edição do AI-5 dois dias depois. 

A edição do AI-5 encerrou a primeira fase da ditadura militar, dando início à fase mais dura, os “anos de chumbo” do Estado de Terror. Editado pelo então presidente, Marechal Arthur da Costa e Silva, deu ao regime poderes excepcionais contra todas as formas de oposição ou críticas ao poder militar. 

Na mesma noite, após a divulgação pelo ministro da Justiça das novas medidas, foi fechado o Congresso Nacional, o ex-Presidente Juscelino Kubitschek foi preso ao sair do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. No dia seguinte foi preso o ex-Governador do antigo Estado da Guanabara, Carlos Lacerda.

A censura imposta obrigou o Jornal do Brasil a improvisar para garantir a informação aos seus leitores sobre que se passava no país. 

"Previsão do tempo:
Tempo negro.
Temperatura sufocante.
O ar está irrespirável.
O país está sendo varrido por fortes ventos.
Máx.: 38º, em Brasília .Mín.:5º, nas Laranjeiras.
(Publicado no Jornal do Brasil, em 14 de dezembro de 1968, no dia seguinte à decretação do AI-5).
Na véspera do Ano Novo, no dia 30 de dezembro, foi divulgada a primeira lista de cassações, encabeçada pelo deputado federal Márcio Moreira Alves. Cassado pelo AI-5, o deputado deixou clandestinamente o país, só retornando com a anistia política em 1979. 

No mês de janeiro de 1969, novas listas de cassação incluíram 37 parlamentares (senadores e deputados federais), três ministros do Supremo Tribunal Federal – Hermes Lima, Vítor Nunes Leal e Evandro Lins e Silva, e um ministro do Superior Tribunal Militar, Peri Constant Bevilacqua. Somente no ano de 1969 foram cassados 333 políticos. 

https://www1.folha.uol.com.br/folha/treinamento/hotsites/ai5/ai5/index.html 

O AI-5 deu ao regime ditatorial uma série de poderes que ampliou o já existente estado de exceção: fechar o Congresso Nacional e as Casas Legislativas estaduais e municipais, intervir nos Estados e Municípios, suspender o habeas corpus para crimes políticos, cassar mandatos eletivos, suspender por dez anos os direitos políticos de qualquer cidadão, decretar o confisco de bens e prender quaisquer suspeitos de subversão por 60 dias, com a incomunicabilidade dos presos por dez dias. A incomunicabilidade deixava o preso sem proteção judicial, absolutamente à mercê do arbítrio dos agentes da repressão. Era o período de tempo em que não se tinha notícia sobre o preso, o seu paradeiro, a sua integridade física e a própria sua vida. O AI-5 incluiu a proibição de qualquer tipo de manifestação de natureza política. 

Logo após o AI-5, sessenta e seis professores foram expulsos da universidade, como Florestan Fernandes, Caio Prado Junior, Fernando Henrique Cardoso. 

A censura à imprensa e aos meios de comunicação, que já vigorava desde 1964, se acirrou com a ocupação permanente de censores em suas redações. Os espetáculos e manifestações culturais também passaram a sofrer uma intensa censura por parte dos agentes da ditadura. Artistas como Caetano Veloso e Gilberto Gil foram presos e depois partiram para o exílio; Chico Buarque e Marieta Severo também buscaram o exílio. 

A repressão, a censura e as perseguições já existiam desde o início da ditadura, em 1964. Como prenúncio do que se tornaria regra geral após o AI-5, o espetáculo teatral Roda Viva, de Chico Buarque, foi atacado violentamente. Depois da sua estreia no Rio de Janeiro, a peça era apresentada em São Paulo quando, na noite do dia 17 de junho de 1968, um grupo do CCC (Comando de Caça aos Comunistas) invadiu o Teatro Galpão, destruiu os cenários e espancou os atores. Em Porto Alegre, no dia 3 de outubro, após a estreia da peça, a repressão da ditadura invadiu o hotel onde se hospedava o grupo Oficina e sequestraram dois atores.

Desde 1964 políticos foram cassados, militantes presos, se torturava no DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), as greves eram proibidas, o censura era exercida. No entanto, a partir da edição do AI-5 foi instalado um verdadeiro Estado terrorista, ampliando a prática da tortura, as mortes, as execuções e o desparecimento político.

Outro capítulo importante, portanto, é sobre a reformulação do aparato repressivo a partir do AI-5, com a criação do Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), órgão subordinado ao Exército, de inteligência e repressão. A repressão política passava diretamente para a esfera das forças armadas e era apoiada e financiada por empresas privadas, revelando a natureza civil-empresarial do regime, ou seja, tratando-se de uma ditadura civil-empresarial-militar. O Estado de terror fundamentado no AI-5 articulou os órgãos de inteligência e informação oficiais, sob controle direto das forças armadas, com uma rede “informal” de extermínio de oposicionistas, através das chamadas “Casas da Morte”, locais clandestinos de tortura e execução de presos políticos. 

Entre 1964 e 1967, a ditadura usava como estrutura de controle e repressão os Departamentos de Ordem Política e Social (DOPS), órgãos da Polícia Civil de cada estado da federação. Em 1967 foi criado o Centro de Informações do Exército (CIE), em 1970 o Centro de Informações da Aeronáutica (CISA), juntando-se ao já existente Centro de Informações da Marinha (CENIMAR). 

Já sob a ordem do AI-5, a partir de 1969, todo o sistema de informações e repressão foi aprimorado com a criação, em São Paulo, da Operação Bandeirantes (OBAN), composta por oficiais das três forças militares e por policiais civis e militares. A OBAN era financiada por grandes empresários. A partir do seu funcionamento foram criados os Destacamentos de Operação Interna (DOI) e Centros de Operação e Defesa Interna (CODI). 

https://www.ufmg.br/brasildoc/temas/2-orgaos-de-informacao-e-repressao-da-ditadura/ 

O Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade (CNV) apresentou a forma de atuação dos órgãos de repressão no período e a responsabilidade dos agentes do estado pelas graves violações de direitos humanos ocorridas. 

Por fim, cabe lembrar que o AI-5 foi seguido de outros atos institucionais que endureceram ainda mais o caráter ditatorial do governo, como a institucionalização do banimento ou expulsão do Brasil de qualquer cidadão nacional que fosse considerado nocivo ao regime (AI-13) e a previsão de fuzilamento em 30 dias para os condenados à pena de morte, caso não houvesse por parte do presidente da República a comutação da pena em prisão perpétua (AI-15). 

No dia 13 de dezembro de 2018, apenas três dias após os 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, nada temos a comemorar. Ao contrário, temos muito a lamentar pelo passado de dor e sofrimento e pelo presente de medo que anuncia um futuro de incerteza. 

João Ricardo Wanderley Dornelles, Doutor em Serviço Social (Universidade Federal do Rio de Janeiro); Mestre em Ciências Jurídicas (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro); Graduado em Direito (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro); Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio); Coordenador-Geral do Núcleo de Direitos Humanos do Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro; Coordenador brasileiro do Convênio entre a PUC-Rio e o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal; Membro do Instituto Joaquín Herrera Flores – América Latina; Membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD); Membro Fundador da ANDHEP (Associação Nacional de Direitos Humanos - Pesquisa e Pós-graduação); Membro da Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro (2013-2017); Pesquisador da Cátedra Unesco/PUC-Rio "Direitos Humanos e Violência: Governo e Governança".

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