O professor
emérito da USP, Dalmo Dallari, voltou a reafirmar que os argumentos
apresentados para embasar o impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff não
têm base legal. Ele enfatiza que, diferentemente do que a mídia diz, as
chamadas pedaladas “não significam apropriar-se de dinheiro público em
benefício próprio ou entregá-los ilegalmente a alguém”, mas artifícios
contábeis de “transferência de recursos financeiros de um fundo público para
outro fundo público”.
Confira
o artigo:
Por vários motivos, incluindo
inconformismo pela derrota nas eleições em que mais de cinquenta e quatro
milhões de cidadãos e cidadãs brasileiros elegeram Dilma Rousseff para a
Presidência da República, e mais o despreparo para a cidadania e desrespeito
aos princípios éticos e jurídicos que embasam a Constituição brasileira,
incapacidade de aceitar as mudanças sociais decorrentes da efetivação das
normas constitucionais referentes aos direitos econômicos, sociais e culturais
e de aguardar as novas eleições presidenciais para tentar fazer prevalecer, por
via democrática, as suas preferências, essas falhas somadas à ignorância dos
princípios e das normas jurídicas evidenciadas por alguns que se pressupunha
tivessem um bom preparo jurídico, tudo isso compõe o quadro dos que desejam,
obsessivamente, o impeachment da presidente Dilma, mesmo sem ter fundamento
jurídico par tal pretensão.
Alguns fatos diretamente relacionados
com as pretensões de impedir a presidente da República de exercer o mandato que
lhe foi conferido pelo povo em eleições democráticas e, paralelamente, de impor
sérias restrições ao exercício de seus direitos ao ex-presidente Lula, cidadão
brasileiro no pleno gozo de seus direitos civis e políticos, têm deixado
evidente a influência dos fatores acima enumerados. Ressalte-se, desde logo, a
surpreendente e absurda informação da Ordem dos Advogados do Brasil-OAB, por
sua secção nacional, de protocolar pedido de impeachment da presidenta Dilma,
indicando como fundamentos da proposta “a intenção da presidente de beneficiar
o ex-presidente Lula, alvo de investigação judicial, atribuindo-lhe as
prerrogativas de ministro de Estado”. Como advogado, inscrito na OAB há mais de
quarenta anos, fiquei surpreso e revoltado ao tomar conhecimento desse absurdo
jurídico, pois não existe no direito brasileiro ou de qualquer sistema jurídico
democrático a punição baseada somente em intenção, desligada de algum ato
concreto que a lei defina como crime. Como é óbvio, a intenção é um elemento
abstrato que não pode ser comprovado, mas, além disso, a Constituição exige,
expressamente, que o presidente da República tenha praticado um “ato” que se
enquadre entre os crimes de responsabilidade. Esses crimes estão especificados
no artigo 4º da Lei nº 1079, de 1950, não havendo ali, como é óbvio, nada
parecido com o “crime de intenção”.
Além desse absurdo jurídico, que
compromete a imagem da OAB por deixar em dúvida o preparo jurídico de seus
dirigentes, foi informado também que serão tomadas por base para seu pedido as
medidas contábeis popularmente designadas como “pedaladas fiscais”. Ora, o que
a lei prevê como crime de responsabilidade à prática de atos contra a lei
orçamentária, ou seja, realizar despesa não autorizada pelo orçamento ou
contrariando as regras orçamentárias, assim como praticar atos contrários à
guarda e o emprego legal dos dinheiros públicos. Ora, as chamadas pedaladas,
que foram amplamente utilizadas pelo então presidente Fernando Henrique
Cardoso, não significam apropriar-se de dinheiropúblico em benefício próprio ou
entregá-lo ilegalmente a alguém. Elas são artifícios contábeis relacionados com
a época de transferência de recursos financeiros de um fundo público para outro
fundo público. Assim, pois, não existe aí fundamento jurídico para a imposição
do impeachment, que, mesmo quando juridicamente cabível, traz consequências
muito negativas para o interesse público.
Cabe aqui outra observação sobre as
“mancadas” ligadas ao impeachment. Rebatendo a alegação de que o impeachment
seria um golpe, alguns, especialmente personalidades da área jurídica,
argumentam em sentido contrário, lembrando que o impeachment está previsto na
Constituição, mas esquecendo-se de que a própria Constituição estabelece
condições precisas para sua aplicação. Com efeito, os artigos 85 e 86 da
Constituição estabelecem a possibilidade de cassação do mandato do presidente
da República, mas, precisamente pela gravidade de uma decisão como essa, a
Constituição estabelece, expressa e claramente, as circunstâncias em que isso
pode ocorrer, exigindo, como condição necessária, que o presidente tenha
praticado ato que configure um crime de responsabilidade. Ora, o que tem
acontecido até agora é que nenhum dos proponentes ou defensores do impeachment
indicou um fundamento jurídico válido para aplicação desses preceitos
constitucionais. E não existindo fundamento jurídico-constitucional o
impeachment seria efetivamente um golpe contra o sistema político-jurídico
democrático consagrado na Constituição feita pelo povo em 1988. Assim, pois,
dizendo que o impeachment não seria um golpe simplesmente porque está previsto
na Constituição os que assim procedem cometem também uma “mancada”, pois
ignoram ou esquecem as exigências constitucionais para sua aplicação legítima e
democrática.
Por todos esses motivos, é necessário, e
de interesse público, que as manifestações contrárias ao governo não sejam
manifestações contrárias à ordem constitucional. O povo tem o direito de se
manifestar livremente e de expressar seu descontentamento com o governo no seu
todo ou em relação a pontos determinados, mas isso deve ser externado por via
pacífica e institucional, respeitando os que têm opinião divergente e propondo
objetivamente nova orientação e novas medidas, que poderão ser aplicadas já
neste governo ou no que, democraticamente, for eleito para o mandato seguinte.
Nenhum comentário:
Postar um comentário