Promiscuidade e suspeição
Independentemente do desfecho da crise política, ficará a
fratura da crise de legitimidade que corrói os poderes da República e ameaça a
democracia.
Evandro Lins e Silva, homem raro, ministro que honrou um
Supremo Tribunal Federal (STF) honrado e por isso mesmo dilacerado pela
ditadura de 1964 (que lhe impôs cassações e desfiguradora ampliação de
membros), profligava a promiscuidade representada pelo convívio, em Brasília,
de juízes e ministros com jornalistas, políticos e advogados, estes muitas
vezes patronos de causas em demanda.
Essa convivência promíscua se dava (e se dá agora mais do que
nunca) não apenas nos gabinetes dos três poderes, mas, igualmente, em bares e
restaurantes da moda, em lobbies pouco afamados de hotéis famosos, e, assim, a
inevitável discussão sobre interesses, observava o velho juiz, estabelecia
laços de compadrio, incompatíveis com o decoro e o recato que a toga exige de
qualquer magistrado, mas exige principalmente daquele que é alçado à mais alta
Corte de justiça do país.
Evandro vinha de um tempo – daí seu espanto e sua indignação
— em que os juízes, comedidos em seus atos e costumes, sóbrios por excelência,
‘falavam nos autos’ e tão só nos autos, isto é, no processo que julgavam.
Soava-lhe de extremo mau-gosto a frequência com que magistrados deitavam
falação à imprensa.
Nos tempos da ditadura implantada em 1964, havia o ministro
Cordeiro Guerra, que combinava destempero verbal e ignorância jurídica. Mas
havia também um Ribeiro da Costa, que sintetizava as virtudes do bom juiz:
coragem, cultura, recato, simplicidade. Este, o exemplo que ensinava às novas
gerações.
Esse decoro e esse recato entram em choque com a intimidade
que hoje alguns julgadores cedem a repórteres, no afã de conquistar espaços de
evidência, numa mídia tanto poderosa quanto inescrupulosa, ela própria produto
das traficâncias do poder – das quais, aliás, nascem muitas nomeações
dependentes do crivo do Senado Federal, como as de ministro do STF, membros do
Tribunal de Contas e, entre outros, do Procurador Geral da República.
Não bastasse a algaravia partidária do ministro Gilmar
Mendes, conhecido como ‘líder da oposição no STF’ (e também cognominado ‘aquele
que não disfarça’), uma penca de ministros colegas seus, embora mais cultos e
mais comedidos, no esforço por granjear espaço na imprensa oposicionista, fica
a dizer que o impeachment não é golpe de Estado, por que está previsto pela
Constituição. Ora, até o reino mineral sabe que o impeachment é instituto
previsto pela Constituição e dizer apenas isso é dizer a verdade pela metade, o
que aumenta a mentira.
Mentira, diga-se, tanto mais grave quanto pode parecer à
sociedade leiga que se trata de uma prévia aprovação pela Suprema Corte de um
evidente estupro legal, violência inominável contra a soberania do voto
popular.
O golpismo está não no instituto, constitucional, jamais
contestado, mas na flagrante ilegalidade de seu apelo, por não haver a
presidente incorrido em nenhuma das hipóteses de crime de responsabilidade
previstas no art. 85º da Constituição, justificadoras, e apenas elas, do
impeachment.
Só uma escandalosa má-fé (posto que não devemos considerar
jejuno em direito constitucional um ministro do STF), pode fazer coro à
cantilena golpista, juridicamente esfarrapada.
O caráter eminentemente político do apelo ficou patente nas
recentes escaramuças na Câmara dos Deputados, quando a indescritível bancada do
inqualificável PMDB – em ato de felonia que simboliza seu suicídio moral –
invadiu o plenário daquela Casa aos berros de ‘Temer presidente’ pondo de
manifesto o caráter objetivo do golpe, sim, do golpe de Estado que não precisou
do apelo às armas.
Golpe que é, mediante a cassação do mandato legítimo (ditado
por mais de 54 milhões de eleitores) da honrada presidente Dilma, a tomada do
poder por um vice sem voto, e de honradez na melhor das hipóteses discutível,
enquanto é indiscutível a fragilidade moral do deputado Eduardo Cunha, que
comanda na Câmara os ritos da cassação da presidente com o mesmo empenho com
que, com ostensivo abuso de poder que nem o Ministério Público nem o STF veem,
inviabiliza sua própria cassação.
Assim, na República macunaímica estamos correndo o risco de
ver um vice sem voto assumir o cargo de uma presidente reeleita com maioria
absoluta de votos!
O incidente, porém, eviscera as entranhas do impasse político
atual, revelando à luz do dia os componentes estruturais de uma crise maior.
Independentemente daquele que venha a ser o desfecho imediato
da crise política, permanecerá intocada a fratura exposta da crise de
legitimidade que corrói os poderes da República, e ameaça a democracia
representativa, qual a praticamos.
O caso do lamentável presidente do Conselho Federal da OAB
(por sinal, em seu gesto canhestro, esnobado pelo correntista suíço que ainda
preside a Câmara dos Deputados) associa oportunismo e má-fé, indicativos também
da crise de uma corporação que, quando presidida por Raymundo Faoro, lutou pela
democracia e pela legalidade. Aliás, remontando às suas origens, essa havia
sido a fonte do PMDB.
A busca de notoriedade a qualquer custo, porém, cobra preço
altíssimo à dignidade requerida por algumas funções republicanas.
Essas considerações me ocorrem ao conhecer o relato de
reunião de pauta do Jornal Nacional, da Rede Globo descrita pelo jornalista
Clóvis Barros Filho (da USP) no livro Devaneios
sobre a atualidade do Capital, de sua autoria e de Gustavo Fernandes
Dainezi (Editora CDG, Porto Alegre, 2014, p. 22). Relato agora amplamente
divulgado (ainda está no ar) pelo site Diário do Centro do Mundo. Lê-se ali:
“(…) vou dar um exemplo [de promiscuidade] que me chocou: fui
a uma reunião de pauta do Jornal Nacional. Wiliam Bonner [editor e
apresentador] liga para o Gilmar Mendes [ministro do STF], no celular, e
pergunta: “Vai decidir alguma coisa de importante hoje? Mando ou não mando o
repórter?”[Responde o ministro:]”Depende, se você mandar o repórter, eu decido
alguma coisa importante”.
Até aqui não há registro de qualquer reação do ministro, nem tampouco
o diálogo escabroso foi desmentido pelo repórter da todo-poderosa Rede Globo.
O ministro Mendes – conhecido por abastardar o plenário do
STF com seus frequentes comícios –aliás, foi há pouco fotografado em
restaurante brasiliense conversando com destacados próceres do PSDB momentos
antes de, em decisão monocrática, atendendo a pedido do PSDB, suspender a posse
de Lula na Casa Civil da Presidência da República e devolver as investigações
sobre o ex-presidente para Curitiba.
É sabido, aliás, esse mesmo famoso ministro, valendo-se do
direito de vista, impediu, durante cerca de dois anos, que o STF concluísse,
quando a votação estava 6 a 2, portanto decidida, pois o quórum é de 11 votos,
o julgamento de ADI que pleiteava a proibição de financiamento de campanhas
eleitorais – fundamental para o processo democrático.
Imediatamente após o convescote e após participar de programa
de televisão do candidato do PSDB à Prefeitura de São Paulo ejuncar de
obstáculos a posse de Lula na Casa Civil, e não por mero acaso, o ministro
viajou a Lisboa onde um seu Instituto promove, financiado por não sei quem,
seminário com políticos que lideram no Brasil a tentativa de decretar o
impeachment da presidente Dilma, processo que, levado a termo, será presidido
pelo presidente do STF, que, aliás, poderá ser chamado a falar sobre o seu
mérito.
Entre seus colegas de vilegiatura, encontram-se o candidato
Aécio Neves e o senador José Serra (também seu comensal), o qual, aliás, assim
como o ministro Tóffoli, seu escudeiro, foi recebido no evento com estrondosa
vaia ofertada por professores e universitários portugueses, que não perderam a
memória sobre o autoritarismo e o fascismo e o papel crucial que nos regimes de
exceção cumpre o Poder Judiciário.
Porque as instituições não têm história própria. Sua história
é escrita por seus juízes e esses escrevem suas próprias biografias com seus
votos e suas sentenças, ditadas pela coragem e a covardia de cada um.
Para cada Evandro e para cada Ribeiro da Costa quantos Mendes
teremos de aturar? Para cada Ulisses Guimarães (ou, mais atrás, Adauto Lúcio
Cardoso) quantos Eduardo Cunha e quantos Temer? Para cada Raymundo Faoro e para
cada Marcelo Lavénère quantos, como é mesmo o nome do atual presidente do
Conselho Federal da OAB? E que dizer da gloriosa ABI, que, depois de presidida
por Barbosa Lima Sobrinho, é comandada hoje por um anônimo servidor do
monopólio da informação?
Fonte: Blog do Roberto Amaral
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