quarta-feira, 10 de agosto de 2016

O Estado de bem-estar morto? Uma crítica a Yanis Varoufakis


09/08/2016 10:49 - Copyleft

O Estado de bem-estar morto? Uma crítica a Yanis Varoufakis

Os países que conseguiram alcançar os níveis mais baixos de desigualdade na União Europeia são aqueles que utilizaram medidas redistributivas para tal fim.


Vicenç Navarro *, para o site Público.es
reprodução
Sempre leio com grande interesse os artigos de Yanis Varoufakis, e frequentemente coloco links a eles em meu blog, também de suas entrevistas ou vídeos de conferências que me mostram, tanto aquelas com as que concordo com o que ele expõe quanto as que não concordo. Naturalmente, estou de acordo com suas críticas à troica e ao comportamento do Eurogrupo (os ministros de Economia e de Fazenda dos países da Zona Euro), e mais ainda quando ele usa o exemplo do caso grego. Também vejo com bons olhos o nascimento de um movimento europeu fundado e agora também liderado por ele, cujo objetivo é a democratização da governança europeia. Governança essa que hoje se encontra carente das mais mínimas regras de convivência democrática, mas aqui tenho eu algumas diferenças com ele.
 
Tais diferenças alcançam seu máximo nível quando, numa palestra recente, ele afirma que os Estados de bem-estar nos países capitalistas desenvolvidos já estão mortos, junto com os partidos social-democratas que os estabeleceram, propondo em seu lugar a luta por uma Renda Básica Universal (RBU), ideia que tem nele um dos promotores mais importantes. Não há dúvida de que a social-democracia está em declínio na Europa, mas assumir que o Estado del bem-estar está também ferido de morte me parece um grande erro. Em ambas as “mortes”, Varoufakis atribui a situação ao fato de que os Estados-nação perderam completamente toda soberania, e aqui está a raiz da nossa discordância.
 
Os Estados-nação morreram?
 
Creio que uma das raízes deste desacordo é sua visão dos Estados-nação, que ele considera carentes de poder e de capacidade de decisão, especialmente aqueles que formam parte da Zona Euro. Assim, Varoufakis, afirma que os Estados-nação perderam toda sua soberania, e foram assim transformados em parte do problema, em vez de ser a solução. Assim, segundo ele, os governos hoje “transmitem aos parlamentos o que fica decidido dentro do Eurogrupo (ou da Câmara Europeia, ou do Conselho Europeu) e os parlamentos só existem para confirmar o que foi ordenado nessas instâncias, quase como numa cartilha sobre o que devem fazer”.





 
Não quer dizer que, por exemplo, o fato da Espanha participar do Eurogrupo estabeleça limitações graves ao que o Estado espanhol pode fazer ou deixar de fazer. A posição de Varoufakis, neste caso, é um tanto extrema – embora compreensível, devido à experiência no caso da Grécia –, pois os Estados-nação continuam tendo um papel determinante. O Estado alemão, para mostrar outo exemplo, tem um rol dominante entre os Estados-nação da Zona Euro. As relações interestados também têm muita importância. A docilidade do governo espanhol de Mariano Rajoy diante dos alemães se expressa em sua interdependência com as políticas realizadas por tais Estados.
 
O que parece se esquecer com excessiva frequência é que os Estados continuam reproduzindo as relações de poder existentes num país, incluindo as relações de poder de classe social. É importante recuperar as categorias analíticas que desapareceram em grande parte dos estudos sobre o que está ocorrendo na Zona Euro. As classes sociais e o conflito entre elas, dentro de cada Estado, são essenciais para entender o comportamento de tais Estados. As ausências destas variáveis nas análises de Varoufakis limitam sua compreensão da suposta perda de soberania dos Estados. É preciso criar, nos países do sul da Europa, a consciência de que a burguesia, em cada um deles, tem mais coisas em comum com outras burguesias – como a burguesia alemã – em quanto aos seus interesses do que com as classes populares. Por isso, os Estados instrumentalizados pela burguesia, como é o caso da Espanha, estão aplicando políticas autenticamente reacionárias, sob o argumento de que não têm liberdade para tomar outras medidas, como Varoufakis também parece crer, mas é óbvio que há sim políticas alternativas que podem ser adotadas. Seguindo com a Espanha como exemplo, o presidente socialista José Luis Zapatero congelou as aposentadorias para conseguir 1,2 bilhões de euros, tentando corrigir o deficit do Estado, quando poderia ter conseguido muitos mais revertendo a política tributária, evitando a queda na alíquota do imposto sobre heranças e mantendo o imposto sobre o patrimônio. O presidente conservador Rajoy poderia ter evitado cortar 6 bilhões de euros da saúde pública revertendo a queda de alíquota dos imposto sobre os lucros das empresas que faturam mais de 150 milhões de euros por ano, e que representam somente 0,12% de todas as empresas do país. O Estado sempre aplica políticas de classe, e o tema fundamental é que classe social se beneficia com isso. Não é verdade, portanto, que o Estado-nação não pode fazer nada. Dizer que os Estados-nação não podem fazer nada é dar razão a Zapatero ou a Rajoy, quando dizem que não há outras políticas públicas possíveis. Sim, há alternativas às políticas de austeridade! O grande problema da Grécia é que era um Estado pequeno e falido, situação que deixou o país enormemente vulnerável às pressões do Estado alemão. Além de ser um Estado muito frágil, estava sozinho. Mas hoje, há um número crescente de Estados com maior peso, que podem desafiar essas políticas. Parte da solução seria apostar na construção de alianças entre Estados contra as políticas de austeridade, o que não ocorrerá, a não ser que as relações de poder dentro de cada Estado sejam diferentes das que vemos hoje.
 
A externalização de responsabilidades como justificação das políticas impopulares
 
Outro ponto de desacordo que tenho com Varoufakis está um pouco relacionado com o tema anterior. Ignorar a importância do Estado-nação leva a abandonar uma luta interna nesse mesmo Estado-nação, criando um vazio que vem sendo aproveitado pelos movimentos nacionalistas de ultradireita, alguns de claro carácter fascista e/ou nazista. Hoje, como o mesmo Varoufakis acentua em seu discurso, um doa maiores perigos existentes na União Europeia é a eclosão de movimentos nacionalistas de ultradireita, em cada um dos países. Uma das causas disso é precisamente a desatenção das esquerdas a alguns dos temas mais mobilizadores entre as classes populares, as que antes eram a base eleitoral progressista. Não só os partidos conservadores e liberais, mas também os partidos social-democratas justificam as políticas de austeridade e as reformas reacionárias das leis do trabalho, com o argumento de que são as únicas possíveis, pois outras são de impossível aplicação devido à globalização, ou à integração europeia, ou a qualquer fator externo. A externalização das responsabilidades é a desculpa mais comum utilizada pelos governos de sensibilidade liberal ou sócio-liberal (que são a maioria). Admitem que suas políticas são impopulares, mas dizem que são as que Bruxelas ou Frankfurt exigem. Não é estranho, portanto, que vejamos redutos eleitorais do Partido Comunista votando na ultradireita. Os cinturões vermelhos das grandes cidades francesas eram fieis ao PCF (Partido Comunista Francês) no passado, e agora votam pela ultranacionalista Marine Le Pen.
 
Mas isso não ocorre somente na França. Uma das causas desta situação é precisamente o auge do nacionalismo em muitos países da União Europeia, o incremento do sentido identitário nacional contra o establishment político-midiático que governa a Zona Euro, que é percebido como o responsável pela perda de identidade e de poder de decisão – conhecidas como soberania nacional –, cedidas pelas classes dominantes de cada país, que conseguem assim o desmantelamento do Estado de bem-estar e a queda do poder dos salários através do establishment europeu, o que não podiam conseguir através da ação soberana dos Estados.
 
A suposta morte da social-democracia e do Estado de bem-estar
 
Desta percepção do Estado-nação como carente de capacidade de decisão, Varoufakis conclui que a social-democracia e o Estado de bem-estar estão mortos e não têm mais capacidade de reação. Em seu último discurso sobre este tema, ele começa fazendo observações que, tanto em seu tom como em seu conteúdo, podem se considerar provocadoras (o que parece ser do seu agrado, e por ele usa esse subterfúgio com frequência). A primeira foi afirmar que as políticas públicas que caracterizam a social-democracia ocidental (ou o New Deal nos Estados Unidos) estão fora de moda e não têm mais futuro, pois seriam insustentáveis hoje em dia. Ele acredita que “a social-democracia está morta”. A segunda provocação foi a afirmação de que “o Estado de bem-estar também está morto”, já que os investimentos em distribuição de renda e os serviços públicos do Estado de bem-estar não são mais financiáveis, e não podem mais ser mantidos, pois ao serem bancados a partir do arrecadado com o trabalho (ou seja, com um percentual social derivado do salário), e portanto estar na dependência da existência de postos de trabalho, se tornam insustentáveis à medida que um número significativo de tais postos de trabalho desaparece (como resultado da revolução digital, incluindo intervenções tecnológicas, como a robótica, que está causando a destruição massiva de empregos. Segundo Varoufakis, essa destruição dos geradores de fundos com os quais sustentar a distribuição de riquezas e os serviços públicos é a causa de que o Estado de bem-estar não tenha futuro, pois não pode ser financiado, e por isso a necessidade de responder à enorme crise social que vem se desenvolvendo nestes anos de recessão (que alcança níveis de depressão nos países do sul da Europa, como Espanha, Grécia e Portugal) através da Renda Básica Universal, que é a distribuição de uma renda básica por parte do Estado a todos os cidadãos e residentes de um país.
 
As consequências da financeirização da economia
 
Outra razão que Varoufakis utiliza para justificar a RBU é a financeirização da economia no capitalismo atual. Durante estes anos, vemos como a expansão do setor financeiro em detrimento da economia produtiva complica ainda mais a sustentabilidade do Estado de bem-estar, pois ao diminuir a economia produtiva, se diminui também a força de trabalho, que é a que financia o Estado de bem-estar. Para Varoufakis, a atividade financeira está substituindo a produção de bens e o consumo, sujeitos da economia real ou produtiva, e com isso vai devorando os postos de trabalho e os trabalhadores, dificultando ainda mais o financiamento do Estado de bem-estar. Nos Estados Unidos, essa transformação do capitalismo aparece no traslado do centro de poder de Chicago (centro manufatureiro) a Wall Street (centro financeiro). Esta financeirização da economia determina que ao diminuir o trabalho disponível, também se diminui a demanda, causa do decrescimento econômico que conhecemos hoje como a Grande Recessão.
 
A solução a esta grande crise social e econômica é – novamente segundo Varoufakis – taxar as grandes fortunas (derivadas, em grande parte, da grande expansão do setor financeiro), distribuindo os recursos públicos arrecadados a partir dessa medida a todos os cidadãos e residentes, entregando a cada pessoa a mesma quantidade, uma renda mínima básica, que permita à pessoa viver com dignidade. A aplicação desta medida, segundo a própria ideia de Varoufakis, teria várias consequências. Uma delas seria a eliminação da pobreza e a redução das desigualdades sociais. Outra das consequências seria o incentivo à demanda. Afinal, as classes populares consomem mais do que economizam, devido à grande quantidade de necessidades insatisfeitas, enquanto as classes mais endinheiradas poupam mais do que consomem. E uma terceira consequência, de grande importância também, seria o empoderamento da população trabalhadora, pois a RBU tornaria os trabalhadores mais resistentes diante das demandas dos empresários, já que suas necessidades mínimas estariam supridas. Este é, portanto, o resumo de sua argumentação a favor da RBU.
 
Quais são os problemas dessa argumentação?
 
Antes de começar a crítica, devo destacar que há elementos da análise, como a crescente financeirização da economia, com os quais estou totalmente de acordo. Mas não com outros pontos. Um deles são as observações sobre porque ele considera impossível desenvolver, na atualidade, políticas social-democratas ou de expansão do Estado de bem-estar, nos dois lados do Atlântico Norte. Esta tese é baseada, em parte, na perda da soberania dos Estados, e em seu critério (que considero errôneo) para definir a social-democracia e Estado de bem-estar. Se faz necessário destacar, para explicar minha discrepância, que o grande fracasso dos partidos social-democratas (que, recordemos, estavam enraizados no mundo do trabalho e em seu objetivo de estabelecer o socialismo) não se deve à social-democracia em si, mas sim no contrário, em seu abandono. Esta é uma realidade bem documentada: a partir dos anos de Tony Blair e companhia – embora alguns poderão dizer que começou já com François Mitterrand – houve um claro abandono do projeto social-democrata. O socialismo era, e continua sendo, o projeto de estabelecer uma sociedade cujo objetivo é distribuir os recursos segundo as necessidades dos cidadãos, financiados segundo a habilidade e capacidade de cada cidadão, sendo necessidade, habilidade e capacidade definidas democraticamente. Este objetivo ainda está vigente e é aplicável atualmente. Quase 78% da cidadania dos países da União Europeia está de acordo com o princípio de “entregar a cada um segundo suas necessidades, e tirar de cada um segundo suas habilidades e capacidades”. Estamos vendo, nos dois lados do Atlântico Norte, a aparição de movimentos políticos e sociais – como o representado pelo ex-candidato Bernie Sanders nos Estados Unidos, e novos partidos europeus, como o espanhol Podemos –, que estão adquirindo grande importância, e que estão claramente comprometidos com o princípio socialista de avançar através da via democrática, propondo políticas públicas que costumam se identificar com a social-democracia.
 
O Estado de bem-estar que descreve Varoufakis é o modelo democrata-cristão, não o socialista
 
Varoufakis parece desconhecer que há vários tipos de Estados de bem-estar. E o que ele descreve não é o Estado de bem-estar enraizado na tradição social-democrata. Bismarck foi o fundador do Estado de Bem-estar que Varoufakis descreve e define erroneamente como “o Estado de bem-estar”. Na versão de Bismarck, o financiamento é fruto do arrecadado a partir de porcentagens dos salários, estando portanto sujeitas à saúde do mercado de trabalho. Nesse Estado de bem-estar cuja sustentabilidade depende da oferta de emprego, uma crise nesse aspecto cria um problema bastante grave, como estamos vendo hoje na Espanha.
 
Mas nos países escandinavos, de tradição social-democrata, onde o mundo do trabalho é historicamente bem forte, o financiamento da maioria dos serviços públicos do não vem dos salários e sim dos fundos criados pelo Estado. Portanto, da vontade popular. Dependendo do grau de influência que os diferentes setores da sociedade (entre os quais, os mais determinantes são o mundo do capital e o mundo do trabalho) têm sobre o Estado, encontramos Estados de bem-estar bem desenvolvidos e outros pouco financiados. Em geral, quanto maior a influência do mundo do capital, menores é a arrecadação do Estado, e consequentemente será menor a eficácia do Estado de bem-estar, que será menos desenvolvido, como ocorre no sul da Europa. É fácil de entender como o nível de taxação às rentas do capital é uma variável política, ou seja, depende das relações de poder em cada país. Em todos os países do sul da Europa, o bem-estar está subfinanciado, com o Estado dedicando muito menos recursos aos temas sociais do que deveria e poderia gastar. Na verdade, todos esses países têm arrecadação suficiente para financiar melhor seus serviços público, mas não tem vontade de levar esse conceito adiante. Este é um dos pontos de desacordo que tenho com Varoufakis. Ele assume que os Estados-nação carecem de alternativas às políticas neoliberais impostas a eles, e eu acredito que elas sim existem, e que dependem mais ou menos dos cenários políticos de cada país. Assumir, como faz Varoufakis, que os Estados-nação não têm poder de decisão, após terem perdido toda a soberania, é dar a razão aos governos que impõem políticas de austeridade altamente impopulares com a justificativa de que não têm outras alternativas.
 
Que soluções existem?
 
Qualquer solução para a atual crise passa por um aumento da arrecadação do Estado, o que requer uma mudança de protagonistas na política, trocar os agentes que configuram as políticas públicas de tais Estados. Não creio que haja muito desacordo neste ponto, já que não nos desencontramos tanto a respeito das receitas, mas sim das despesas. Segundo Varoufakis, o dinheiro deve ser distribuído a cada cidadão ou residente, transferindo a mesma quantidade a cada pessoa, seja cidadão ou estrangeiro residente. Mas, por que a mesma quantidade? Se o objetivo da RBU é reduzir a pobreza, é fácil mostrar que os países que foram mais bem sucedidos no combate à pobreza são os escandinavos, que seguiram precisamente as políticas de tradição social-democrata de transferências e serviços públicos, o que implica também em garantir renda básica a todos os cidadãos, permitindo a eles uma vida digna, além do acesso a serviços públicos que representam uma quantidade de recursos superior à que receberão mediante a RBU.
 
Um tanto igual ocorre em quanto à redução das desigualdades. Os países que conseguiram alcançar os níveis mais baixos de desigualdade na União Europeia e na América do Norte são aqueles que utilizaram as medidas redistributivas e as políticas trabalhistas e sociais para alcançar tal fim. Quando se quer reduzir a pobreza e as desigualdades, não faz sentido dar a mesma quantidade de recursos aos pobres e a todos os demais. A população mais carente precisa de mais recursos. Por outra parte, o custo da RBU seria considerável: muito provavelmente uma porcentagem importante do PIB. Deve-se incluir também o fato de que o deficit social dos países do sul da Europa é enorme. Seria a RBU o fator de correção deste enorme deficit social? Defender a implementação dessa medida hoje como prioritária, nos países onde a crise é mais aguda, pode significar falta de cobertura ao enorme deficit social que eles têm. Podemos considerar que a RBU teria sentido uma vez que os elementos básicos do Estado de bem-estar sejam satisfatórios. Mas no sul da Europa isso está muito distante de ser verdade. Será que Varoufakis não crê que é muito mais urgente resolver este enorme deficit social nesses países do que implementar a RBU? Gostaria que estivéssemos de acordo nesse ponto.
 
* Vicenç Navarro é professo de Economia Aplicada da Universidade de Barcelona e de Ciências Políticas e Sociais da Universidade Pompeu Fabra. Também foi professor de Políticas Públicas da Universidade Johns Hopkins, dos Estados Unidos.
 
Tradução: Victor Farinelli


Créditos da foto: reprodução

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