quarta-feira, 9 de novembro de 2016

A chance da esquerda nos Estados Unidos

08/11/2016 17:36 - Copyleft

A chance da esquerda nos Estados Unidos

A esquerda radical e a social-democrata fomentam mudanças, e apesar das diferenças, as previsões dos analistas dizem que podem alcançar bons resultados


Eduardo Febbro, para o Página/12, direto de Washington
reprodução
Há algo além das eleições presidenciais norte-americanas: seja Hillary Clinton ou Donald Trump quem ganhe nas urnas, os analistas estadunidenses apostam por uma reconstrução de um bloco composto pela social-democracia progressista, a esquerda moderada dispersada e a esquerda radical, forças que protagonizaram as mobilizações sociais de 2011. Se o Partido Democrata conta com a mobilização dos latinos e dos afro-estadunidenses para se impor numa eleição cujo resultado se tornou incerto nos últimos dias, o apoio dos movimentos populares da esquerda do Partido Democrata e da esquerda radical não é menos substancial. Descendentes da agitação da cidadania representada pelo Occupy Wall Street em setembro de 2011, vários grupos da esquerda radical tiveram um papel preponderante durante a campanha eleitoral. Os chamados grassroots (as bases sociais) estão unidos por uma mesma vontade de mudanças e de impugnação do sistema, mas também se encontram disseminados em movimentos que não são convergentes: a justiça racial (Black Lives Matter), os direitos dos trabalhadores imigrantes, o salário mínimo de 15 dólares por hora, a tragédia climática, os questionamentos sobre a polícia, a regulação do mercado financeiro… todas estas são bandeiras que estão dispersas.
 
A surpreendente candidatura do senador Bernie Sanders durante as primárias, impulsando o movimento Feel the Bern, com um discurso centrado numa “revolução política e social” capaz de derrubar as elites, mudou as relações e o impacto eleitoral destes grupos. Sanders reuniu em torno de si a maior coalizão de esquerda da história recente dos Estados Unidos. O desafio agora é fazer com que essa entidade siga viva depois das eleições. Para isso, e apesar das dificuldades estruturais próprias do sistema político norte-americano, os simpatizantes desses movimentos esperam o fim das presidenciais para romper o viciado bipartidarismo e se constituir numa espécie de “poder político independente”, segundo a definição de Cindy Wiesner, coordenadora nacional da Grassroots Global Justice Alliance (“Aliança Global por Justiça para as bases sociais”), uma entidade que agrupa cerca de 60 organizações progressistas presentes em 20 estados.
 
Embora seja verdade que a esquerda radical estadunidense desconfia do progressismo moderado e disfarçado de Hillary Clinton, a construção de uma proposta eleitoral distinta a partir destas eleições é uma realidade cada vez mais tangível. Durante a campanha, quando foi cobrada por Sanders sobre suas propostas, a candidata democrata defendeu posturas progressistas que não figuravam em sua plataforma inicial. Porém, o essencial está no futuro, no que Harold Meyerson chama de “a nova esquerda” – ele é colunista do diário The Washington Post e vice-presidente do Comité Político Nacional do Movimento de Socialistas Democratas dos Estados Unidos. Segundo ele, há inclusive duas novas esquerdas no país: a que surgiu com força dentro do Partido Democrata, junto com Sanders, e a esquerda radical, que se expressa através dos os movimentos de cidadãos, herdeiros do Occupy Wall Street. Ambas as forças têm uma característica em comum: são eleitores jovens, com idades oscilando entre 18 e 30 anos. Sobre isto, Harold Meyerson analisa que “durante os últimos cinco anos, podemos perceber que há cada vez mais adesão a ideias de esquerda entre os democratas e os jovens”. Estas duas esquerdas se sentem investidas de duas missões: resgatar a dinâmica de 2011, que renasceu durante estas presidenciais para apoiar Sanders, e processar uma resposta à grosseria política e o racismo de Donad Trump. Cindy Wiesner destaca que embora o eleitorado de Trump esteja aumentando através do uso do discurso do medo “também se deve deplorar o fato de que Trump defenda ideias que normalizam o racismo e a discriminação. A partir disso, se superou uma fronteira do que estava ou não permitido expressar politicamente até então”. Ainda que o cenário eleitoral hoje seja fértil para uma grande mobilização popular, ninguém oculta o fato de que, ganhando ou perdendo as eleições, Donald Trump e seu discurso já têm uma vitória.
 
Não obstante, a violência da campanha, o uso da xenofobia como discurso eleitoral e os disparates acumulados pelo republicano criaram outro fenômeno: o reconhecimento, por parte da ala esquerda do Partido Democrata, de todos os movimentos sociais radicais que não eram aceitos antes como uma esquerda normal. Pode ser que, no futuro, esta convergência se amplie, segundo comentário de Harold Meyerson: “a maioria das condições prévias para a conversão ao socialismo, ou para fazer com que as pessoas simpatizem com o mesmo, não parecem existir nos Estados Unidos de hoje, não existe nenhuma organização socialista democrática que ande por aí recrutando gente em grande número”. Contudo, o progressismo norte-americano se revitalizou nos últimos anos e, e apesar de ter tardado em se constituir numa opção madura, seu crescimento é inegável. Cito novamente o artigo de Meyerson: “que a esquerda tenha precisados de mais tempo que a direita para encontrar o seu espaço é explicado pelo fato de que a maioria dos democratas e liberais acreditaram inicialmente que a presidência de Obama proporcionaria um remédio adequado para os males da economia. Somente quando ficou claro que esses males eram bastante mais graves e exigiam uma cirurgia bastante mais radical que a oferecida pela política convencional, começou a surgir uma esquerda revitalizada”.




 
A esquerda radical e a social-democrata apresentam a proposta de uma mudança drástica. Não entraram em acordos sobre a urgência de votar por Clinton para impedir a ascensão de Trump – mais da metade da esquerda radical se nega a fazê-lo –, mas os analistas convergem quando vaticinam que haverá um pacto mínimo. Bruce Miroff, professor de ciências políticas da Universidade de Albany, está convencido de que o Partido Democrata adotará uma se orientação à esquerda, principalmente pela necessidade dos votos das minorias. “A postura de Hilary Clinton em 2016 está muito mais à esquerda que a assumida nos Anos 90, ou a que tinha o seu marido quando foi presidente”, afirma Miroff. As divisões são, desde já, persistentes e polimorfas: a ala esquerda do Partido Democrata repudia Hillary Clinton, enquanto a esquerda radical tapa o nariz diante de sua figura. O lema “todo menos Trump” não funciona com igual eficácia em todos os espectros da esquerda norte-americana. Uma pesquisa do instituto Genforward, divulgada em agosto, mostrou que somente a metade dos simpatizantes de Bernie Sanders votaria por Clinton. A dúvida continua aberta: para que lado irão as esquerdas estadunidenses depois das eleições? E as respostas são variadas, oscilam entre “a construção de um poder político independente” e a “aposta por uma duradoura transformação do Partido Democrata”. A verdade é que existe hoje nos Estados Unidos uma opção impensada há alguns anos atrás: se pode dizer “socialismo” sem parecer delirante, e inclusive já existe formalmente uma ultra esquerda com rosto e legitimidade. Assim como há uma “direita descomplexada” que assumiu a retórica da ultradireita, existe também uma esquerda radical perfeitamente assumida. O sucesso crescente da revista Jacobin prova que há lugar para debater sobre as ideias marxistas ou socialistas. Seu editor é Bhaskar Sunkara, um dos mais ferventes partidários de uma “esquerda política independente como alternativa ao Partido Democrata”. A base destas esquerdas em gestação é, segundo Sunkara, “a pujança dos movimentos sociais, os únicos capazes de instaurar uma relação de forças com o poder do dinheiro”. A campanha eleitoral de 2016 criou um monstro patético (Donald Trump), mas ao mesmo tempo desenhou no horizonte a figura de uma esquerda que vai, lentamente, configurando sua identidade, a partir do Franklin Roosevelt qualificou, em 1936, como “os príncipes privilegiados das novas dinastias econômicas”.
 
Tradução: Victor Farinelli


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