quarta-feira, 9 de novembro de 2016

As sequelas da tortura em debate

08/11/2016 12:41 - Copyleft

As sequelas da tortura em debate

Franceses veem filme de Polanski e descobrem a história de Tito de Alencar


Leneide Duarte-Plon, de Paris*
reprodução
O filme se passa no Chile, no fim da ditadura, em uma única noite. Uma mulher casada com um advogado muito conceituado, convidado a dirigir os trabalhos da futura Comissão da Verdade, revê em sua própria casa um de seus torturadores. O homem, que tivera um encontro ocasional com o marido, se apresenta como médico. 
 
O casal havia pertencido a uma organização de esquerda, cujos militantes, à exceção do marido, foram presos e torturados pela ditadura. Ela vive como um animal acuado, num estado de alerta permanente, cicatriz invisível da tortura. 
 
O médico tinha sido o acompanhante de seus interrogatórios e um dos estupradores.
 
Apesar de ser dos filmes menos conhecidos de Roman Polanski, « La jeune fille et la mort » tem a marca do cineasta. O filme foi parte do programa de novembro do ciclo « Ciné-Histoire », que consta de um filme seguido de debate. O ciclo foi criado pela médica Nicole Dorra para discutir acontecimentos históricos através do cinema. 





 
A impossível reconstrução de Tito 
 
No debate de 5 de novembro, num cinema de Montparnasse, o público francês tomou conhecimento da história do dominicano Tito de Alencar, que se suicidou aos 28 anos perto de Villefranche-sur-Saône, a poucos quilômetros do convento Sainte-Marie de la Tourette.
 
Como autora da biografia de frei Tito de Alencar, « Um homem torturado » co-escrita com Clarisse Meireles, falei do frade e de seu engajamento na luta contra a ditadura. Como outros dominicanos do convento das Perdizes, em São Paulo, Tito participou da resistência, junto à organização de Carlos Marighella, Ação Libertadora Nacional (ALN), protegendo militantes perseguidos pela polícia, conseguindo tratamento para feridos e ajudando pessoas procuradas a passar a fronteira Sul do Brasil.
 
O frade dominicano Paul Blanquart, que conviveu com ele por dois anos em Paris, foi convidado por mim para falar do período em que Tito tentou retomar seus estudos de teologia no Convento e de Sociologia, na Sorbonne. 
 
Blanquart conheceu um jovem atormentado pela sombra dos seus torturadores, incapaz de interiorizar a paz e a confiança que seus confrades tentavam lhe transmitir.
 
« A voz e as ameaças de Sérgio Fleury, um de seus torturadores, ficaram impressas nele, perseguiram-no durante todo o exílio », contou Blanquart.
 
Delírios e alucinações
 
Antes do debate, os espectadores receberam um vasto material preparado por Nicole Dorra, com o contexto histórico da ditadura no Brasil e algumas informações sobre o esquadrão da morte, que no Brasil era comandado por Sérgio Fleury. Tito e seus confrades presos viram detentos desaparecer nas mãos dos membros do esquadrão, depois de retirados de noite de suas celas. 
 
Um texto da psicosocióloga Sibel Agrali, uma das fundadoras do Centre Primo Levi, de Paris, tratava das sequelas da tortura, com casos de pessoas tratadas no Centro.
 
Desde o dia em que deixou as salas de interrogatório, Tito viveu entre delírios e alucinações, esmagado pelo sofrimento. Foi a contragosto que saiu do país, em janeiro de 1971, trocado pelo embaixador suíço, sequestrado por revolucionários no mês de dezembro. 
 
Hóstia sagrada
 
Banido por lei que o expulsava do território nacional, ele se sentia como um excluído, tanto no convento Saint-Jacques, em Paris, como no Sainte-Marie de la Tourette, perto de Lyon, apesar da acolhida fraternal dos dominicanos.
 
« Tito morreu nas salas de tortura », afirma o psiquiatra Jean-Claude Rolland, que tratou dele no último ano num hospital de Lyon e nos deu entrevistas para o livro. « Ele havia perdido o controle de seu destino e a esperança no gênero humano. Vivia aterrorizado, como se fosse ser morto a qualquer momento. Foi o que sentiu durante todo o período do cárcere e nas sessões de tortura. Vivia como um condenado à morte. De certa forma, pode-se dizer que Fleury foi o autor de um assassinato. Foi ele quem matou Tito ».
 
Num dia quente de agosto de 1974, um camponês que passava viu seu corpo pendurado em uma árvore, perto de um lixão. 
 
Jean-Claude Rolland explica que os torturadores haviam convencido Tito de que ele era indigno da igreja porque traíra Jesus ao colaborar com comunistas. 
 
Ao praticar choques elétricos na boca, dados como a « hóstia sagrada », além de outras violências físicas acompanhadas de assertivas que visavam destruir sua personalidade, os torturadores o quebraram por dentro.
 
Quando se pendurou numa árvore, Tito de Alencar terminava a tarefa dos seus algozes. 
 
O dominicano foi um dos jovens militantes que não conseguiram se reconstruir depois de libertados. Como ele, Maria Auxiliadora Lara Barcellos, a Dora, e Gustavo Buarque Schiller - libertados no grupo de 70 presos políticos trocados pelo embaixador suíço -  buscaram na morte a paz que não encontraram fora das grades.
 
 * Leneide Duarte-Plon é autora de « A tortura como arma de guerra-Da Argélia ao Brasil : Como os militares franceses exportaram os esquadrões da morte e o terrorismo de Estado » (Editora Civilização Brasileira, 2016)».




Créditos da foto: reprodução

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