sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

Opinião: Mário Soares, um Ebert português


Opinião: Mário Soares, um Ebert português


Soares foi o 'animal político' que soube sempre articular os lampejos inspirados de outros e transformá-los numa campanha por uma democracia musculada ao serviço da burguesia
Entre os louvores póstumos que a direita dedica a Mário Soares conta-se, principalmente, o de ter sabido recusar o destino de um “Kerensky português”. É verdade: Soares teve a habilidade, e também a sorte, de escapar a esse destino. Se se pode comparar a alguém, é a Friedrich Ebert, coveiro da revolução alemã.
Como todas, também essa comparação histórica tem os seus limites. Ebert era um típico rebento da aristocracia operária, dirigente do maior partido socialdemocrata do mundo. Com todo o aparelho do partido, apoiara o militarismo prussiano durante a guerra e tornara-se, na sua fase final, parte integrante do governo.
Não era fácil estar no poder e, de repente, ter de disfarçar-se de revolucionário, quando, em Novembro de 1918, a revolução irrompeu vitoriosa e derrubou esse poder. Ebert ainda vociferou contra o seu camarada Scheidemann, quando este fez coro com o povo insurrecto para proclamar o fim da monarquia. Depois se habituou à ideia da república e foi o seu primeiro presidente.
Em todo o caso, esta promoção de um operário socialdemocrata e monárquico a supremo magistrado da república burguesa não era principalmente um produto da agilidade vira-casacas de Ebert, limitada como vimos, mas sobretudo de uma burguesia alemã muito mais sólida que a russa, mais hábil, mais rápida em convocar eleições constituintes. Havia, além disso, uma conjuntura em certo sentido mais favorável do que na Rússia: a Alemanha estava derrotada e já não era precisa uma segunda revolução para acabar com a guerra.
Ebert e Soares
Diferente de Ebert em vários aspectos importantes, Mário Soares não era um aristocrata operário, e sim um burguês de robusta formação republicana (com um breve devaneio juvenil stalinista). Não encabeçava partido algum, nem grande nem pequeno: a sua influência limitava-se inicialmente a algumas tertúlias de profissionais liberais, muito pouco decididos a formalizarem a criação de um partido, para não se exporem a uma maior repressão. Ganhou prestígio como advogado de presos políticos, rompeu a frente eleitoral da oposição em 1969 e demarcou-se do PCP para abrir caminho à legalização de um partido socialdemocrata. Mas todo esse cálculo falhou, porque a “primavera marcelista” não continha em si qualquer perspectiva bipartidária. Ela era, afinal, o outono da ditadura – duro, repressivo, intratável e unipartidário como sempre.
Agência Efe

Mário Soares, morto 
no último sábado (07/01), durante um evento de campanha em fevereiro de 1986; ele viria a vencer as eleições presidenciais naquele ano
Bem longe da superpotência socialdemocrata alemã, a corrente de Soares não teve ministros no governo final da ditadura, e nem sequer conseguiu ser legalizada. O Congresso de fundação do PS, realizado em 1973, em Bad Münstereifel, simbolicamente sob a asa protetora da Fundação Friedrich Ebert, cabia em três ou quatro táxis. Quando caiu a ditadura, o PS fundado de fresco compensou a sua fraqueza com uma inflamada retórica de esquerda: começou logo com o discurso de Mário Soares no 1º de Maio, enfeitou-se um pouco mais com o recrutamento de um Palma Inácio, culminou num congresso cheio de discurso autogestionário. Mas o discurso eram palavras e a política verdadeira devia ficar nas mãos da direita socialdemocrata: o mesmo congresso que falava em autogestão liquidava a ala esquerda de Manuel Serra.
Contrastando com a revolução russa, tanto a alemã de 1918 como a portuguesa de 1974 começaram com a guerra praticamente terminada: menos uma arma decisiva nas mãos da esquerda que quisesse levar mais longe a revolução, fazer na segunda aquilo que faltara na primeira.
Soares e o putschismo spinolista
Contrastando também com a revolução russa, tanto a burguesia alemã como a portuguesa se decidiram pela organização de eleições constituintes. Nisso, contudo, Ebert venceu os seus resquícios monárquicos rapidamente e foi mais expedito do que Soares: em Janeiro de 1919, dois meses depois de derrubada a monarquia, estavam feitas as eleições. Soares ainda começou por vacilar sobre a estratégia plebiscitária de Palma Carlos em Julho e teve um perfil apagado e ambíguo na resistência ao golpe spinolista de Setembro. 

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A ambiguidade debilitou-o politicamente e fê-lo duvidar da sua força para ser opor à reivindicação da unicidade sindical. Foi Salgado Zenha a impor-se e a trazer o PS para a rua contra a unicidade. O PS perdeu a batalha, mas começou a demarcar-se do PCP e a preparar o terreno para uma cerrada disputa do eleitorado.
Também perante o golpe spinolista de 11 de Março Soares voltou a ter uma atitude ambígua e mesmo suspeita. Quem tinha clareza estratégica, neste caso, não era ainda Soares, nem era já Salgado Zenha, mas o embaixador norte-americano, Frank Carlucci: ele, que sabia mais de golpes militares do que ninguém, percebeu que a receita pinochetista-spinolista não servia para a situação portuguesa de 1975. Cultivou as suas relações com o mesmo MFA que se tinha oposto à estratégia plebiscitária-golpista e conseguiu que este, em boa lógica, garantisse a realização das eleições.
Estas não se realizavam dois meses depois, e sim um ano depois de irromper a revolução. A burguesia portuguesa tinha perdido tempo e pagava o preço: o setor financeiro, a grande indústria e a grande propriedade agrária expropriados. Mas o importante era que o poder passasse para mãos fiáveis. A vitória do PS nas eleições surpreendeu o próprio Soares e confirmou a estratégia de Carlucci.
Soares e o trunfo eleitoral 
A partir daí, Soares tornou-se o grande paladino da Constituinte e sugou até ao tutano o capital político que ela lhe tinha fornecido. Juntou o método de Zenha, ao chamar à rua uma coligação de todas as direitas; e a bandeira de Carlucci, ao invocar a legitimidade eleitoral. Com estes dois ingredientes, assaltaram-se sedes partidárias de esquerda, fez-se do “República” e da Rádio Renascença temas internacionais, encheu-se a Alameda e derrubou-se o último governo gonçalvista.
Mesmo assim, quando chegou o 25 de Novembro, não era Soares quem tinha assimilado mais plenamente a orientação de Carlucci. Com boa parte da direção do PS, ele meteu-se a caminho do Porto, para preparar o assalto à “Comuna de Lisboa” – isto é, a guerra civil. Quem seguiu até ao fim a cartilha de Carlucci foram Costa Gomes e Melo Antunes, que permaneceram no seu posto e negociaram com o PCP uma saída quase sem sangue.
A vitória dos militares novembristas abriu a Soares o caminho do poder. Ao leme da barca do Estado, com a revolução derrotada, impôs uma violenta política de austeridade e um desmantelamento sistemático das conquistas do PREC. A demagogia pseudoesquerdista tornava-se, nesse novo contexto, supérflua. Mas Soares, com a sua inesgotável imaginação, ainda conseguia fazer-nos sorrir quando, ao alcançar esse outro grande desígnio da sua política – a adesão à CEE -, se justificava dizendo que não era possível “construir o socialismo num só país”. Mas também, para quê tanto empenhamento em criar um quadro internacional de viabilização do socialismo, se, no pós-25 de Novembro, este era afinal para meter na gaveta? 
Soares não foi, muitas vezes, o primeiro nem o mais brilhante inventor de inovações estratégicas. Foi a reboque de Spínola e Palma Carlos durante um tempo, depois seguiu Zenha, depois Carlucci, depois beneficiou do sangue frio de Costa Gomes e Melo Antunes. Mas foi o “animal político” que soube sempre articular os lampejos inspirados de outros e transformá-los numa campanha por uma democracia musculada ao serviço da burguesia.

Publicado originalmente no site do Movimento Alternativa Socialista.

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