Os povos da Ex URSS
Os povos da Ex URSS
O desaparecimento da União Soviética – URSS foi uma tragédia para a Humanidade. Foi acelerada pela traição de Gorbatchov e pela guerra não declarada do imperialismo norte-americano, mas numerosos outros fatores contribuíram para ela. Para a tentarmos entender, e também a para tentarmos entender a Rússia contemporânea é imprescindível, nomeadamente, um conhecimento mínimo da história dos povos que habitam o seu gigantesco território.
Miguel Urbano Rodrigues*
Não há precedente histórico para o Estado multinacional que foi criado na União Soviética após a Revolução Russa de Outubro de 1917.
Finda a guerra civil, povos de 126 nacionalidades conviveram durante muitas décadas, quase sempre pacificamente, no vastíssimo espaço eurasiático soviético. Esses povos falavam 180 idiomas diferentes, de quatro famílias linguísticas.
Como foi possível?
O gigantismo do país foi o desfecho de circunstâncias históricas que não eram previsíveis quando em Kiev, na Ucrânia, surgiu no século IX o principado de Rus, berço do futuro estado, criado – segundo a maioria dos historiadores – pelos varegos, escandinavos que ali chegaram descendo grandes rios.
A Rússia medieval teve como referência cultural e religiosa Bizâncio, a Roma do Oriente. Mas permaneceu um país atrasado no qual pequenos principados raramente se uniam para enfrentar os invasores estrangeiros. Estes vinham do oriente, nómadas asiáticos, e do ocidente, sobretudo a avançada para leste de povos germânicos.
No século XIII, os mongóis de Batu Khan destruíram as principais cidades, de Moscovo a Kiev, numa orgia de barbárie. Esse povo de nomades chegou para ficar.
Durante quase três séculos, os Kanatos dos príncipes gengiskanidas dominaram grande parte da Rússia, impondo pesados tributos às populações.
Não se fundiram com os russos. Na Ásia os mongóis e turcos da conquista diluíram-se, descaracterizaram-se no contacto com grandes civilizações. Na China sinizaram-se; na Pérsia tornaram-se muçulmanos. Na Rússia atrasada, a cultura e a religião ortodoxa não os atraíram; abraçaram o Islão.
Foi somente no século XVI que o czar Ivan IV, ao tomar Kazan, pôs fim ao senhorio da Horda de Ouro mongol.
Mas a herança genética dos invasores asiáticos foi profunda. Milhões de russos descendem de um prolongado processo de mestiçagem. Os avós paternos do próprio Lenin eram calmucos, um povo turco mongol.
Sem acesso ao Báltico e ao Mar Negro, acossada a Ocidente pela Ordem Teutónica, por polacos e lituanos, e mais tarde pelos suecos, a sul pela Turquia, a Rússia iniciou a sua expansão para leste.
A imensidão siberiana era um território praticamente despovoado. Na época em que os russos avançaram para além dos Urales, o total de habitantes da Sibéria, segundo os demógrafos, rondaria os 300 000. A maioria, de origem turca, nomadizava. Eram tribos remanescentes das grandes invasões que na Alta Idade Média tinham avançado para a Europa, sobretudo a partir do Altai.
Os pioneiros russos, deslocando-se a pé, a cavalo, de barco ou de trenó consoante a estação, atingiram rapidamente o Ártico e em 1640 fundavam Irkutsk, e uma década depois a galopada conquistadora desembocava no Pacifico.
Mas o imperialismo russo somente assumiu contornos de politica de estado um século depois, com Pedro I, cognominado o Grande. É no reinado desse czar que a Rússia expulsa os suecos de Riga e do golfo da Finlândia, onde funda São Petersburgo. As guerras com a Turquia abrem-lhe simultaneamente o acesso ao Mar de Azov e ao Mar Negro. A Ucrânia, que estava quase toda sob ocupação polaca, é incorporada na Rússia.
A partir de meados do século XVIII, na época da czarina Catarina, a politica imperial altera- se profundamente.
As conquistas no Cáucaso, apôs guerras contra a Turquia e a Pérsia, e posteriormente a ocupação do Cazaquistão em regime de protetorado, e a conquista dos emirados da Ásia Central, densamente povoados por turcos e iranianos, motivaram atitudes diferenciadas. Na Arménia e na Geórgia, nações cristãs, os russos foram recebidos como libertadores.
Outra foi a atitude das populações no Azerbaijão, em pequenos estados do Cáucaso e nos emirados do Turquestão onde o Islão estava enraizado há mais de um milénio.
A administração russa adotou aí políticas de recorte colonial típico. Os colonos russos não se misturaram com os autóctones; instalaram-se em bairros diferentes. Os governadores imperiais permitiram que as autoridades locais permanecessem em funções e para os muçulmanos foram mantidas as leis islâmicas. Os emirados mantiveram uma autonomia fictícia até à Revolução de Outubro, que depôs os príncipes gengiskanidas.
Na brutalidade da repressão o colonialismo russo na Ásia Central apresentou semelhanças com o dos ingleses, franceses e portugueses na África subsariana. A continuidade geográfica dos territórios anexados imprimiu-lhe porem características peculiares, diferentes do europeu, marcado pelo afastamento das colônias da metrópole europeia. Na Ásia Central não se registou, porem, até ao final da II Guerra, uma política de russificação.
A queda da autocracia czarista levantou uma vaga de esperança nas populações não russas do império. Mas, após a Revolução de Fevereiro, as mudanças foram mínimas com poucas exceções. Na Europa as áreas ocidentais estavam aliás parcialmente ocupadas pelos alemães.
O quadro somente mudou com a Revolução de Outubro.
O Decreto sobre a Paz, de 26 de Outubro de 17, condenou todas as anexações realizadas pelas grandes potências europeias. E dias depois, a 2 de novembro, o Decreto sobre as nacionalidades definiu os princípios que a jovem república pretendia impor nas relações com as populações não russas. Incluíam o direito à autodeterminação dos povos que optassem pela independência. Contrariando influentes membros do Comité Central, Lenin não se opôs à independência da Finlândia e à restauração da Polônia como estados soberanos.
Lenin via a URSS como uma união de republicas iguais na qual a Rússia teria os mesmos direitos que as outras. A sua preocupação com a questão nacional era tão grande que nos anos do exílio incumbiu Stalin de escrever um trabalho sobre o tema que foi posteriormente editado em livro*. Lenin elogiou o ensaio de Stalin, mas as ideias de ambos sobre a questão nacional não coincidiam.
Nos países bálticos a situação era muito complexa. Surgiram três tendências antagónicas. A maioritária pronunciou-se pela independência. Uma minoria revolucionária bateu-se pela integração na União Soviética, e um sector da burguesia agrária pela ligação à Alemanha. A intervenção da esquadra britânica contribuiu decisivamente para a vitória dos partidários da independência. Nos três países, dois séculos de administração russa não tinham abalado as superestruturas culturais. A Estónia, fino-ugria, e a Letónia e a Lituânia, indo-europeias, mantinham os seus idiomas e o alfabeto latino.
No Cáucaso e na Ásia Central a integração na Rússia revolucionária não foi imediata.
No Daguestão, na Chechénia, na Inguchia, terras muçulmanas, imperou o caos durante anos.
Em 1918, apos a derrota da Turquia, tropas britânicas ocuparam o Azerbaijão, a Geórgia e a Arménia e reprimiram as forças revolucionárias favoráveis à Revolução de Outubro. Sob a proteção das baionetas inglesas, os países da Transcaucásia proclamaram a independência. Mas, quando os britânicos se retiraram, os comunistas tomaram o poder no Azerbaijão e em 1920 o país optou pela integração na Rússia soviética. Na Geórgia a situação permaneceu tensa durante o breve governo social democrata que ali se instalou. Foi a intervenção do exército vermelho em 1921 que precedeu a adesão à República Russa.
Na Arménia, onde o sentimento nacional era muito forte, reforçado pelo genocídio dos arménios na Turquia, foi também a intervenção do exército vermelho em 1921 que permitiu a criação de uma república soviética, pondo termo a uma prolongada guerra civil.
Mas Lenin tornou público o seu desacordo da repressão no Cáucaso, criticando com severidade os métodos ali aplicados por Stalin.
Na Ásia Central as populações muçulmanas festejaram a queda da autocracia czarista, mas em l918 a república socialista soviética do Turquestão teve uma existência breve, tal como as repúblicas de Bukhara e do Korassão.
A guerra civil foi ali prolongada e o almirante Koltchak, líder da contrarrevolução, chegou a controlar parte da Ásia Central.
Durante quase quatro anos imperou o caos na Região.
Somente quando a União Soviética foi criada em Dezembro de 1922, as populações do antigo Turquestão voltaram a viver em paz.
O processo de integração da Ucrânia na Rússia soviética foi talvez o mais traumático. Os nacionalistas de Petliura defenderam a criação de um Estado independente contra a opinião da minoria russófona do leste do país.Com a ocupação alemã a confusão aumentou. A Ucrânia foi um dos principais cenários da guerra civil entre os brancos e as forças revolucionárias, mas os bolcheviques venceram.
O renascimento dos nacionalismos
Sucessivos governos da União Soviética afirmaram após 1945 que a questão nacional tinha sido definitivamente resolvida.
Simulavam ignorar a realidade.
Durante a guerra, os alemães foram bem recebidos por uma parcela importante das populações bálticas. O mesmo ocorreu inicialmente na Ucrânia. Mais de 100 000 ucranianos lutaram contra a URSS, muitos nas SS nazis. E os guardas de muitos campos de concentração alemães eram ucranianos colaboracionistas.
É um fato que na Europa e na Ásia foi pacífico durante décadas o convívio da maioria russa com as minorias nacionais. Mas a concepção de Lenin, incorporada na Constituição da URSS, sobre a igualdade de direitos dos povos da União nunca foi respeitada. O que prevaleceu foi, na prática, a concepção do federalismo internacionalista de Stalin, hegemonizado pela Rússia.
O homo soviéticus que deveria ser uma criação do socialismo não passou de aspiração.
No final da II guerra mundial, as feridas abertas por decisões de Stalin, incompatíveis com os princípios que regulamentavam a questão nacional, não estavam cicatrizadas.
A expulsão para a Ásia Central dos Tártaros da Crimeia, dos alemães do Volga e de alguns povos de origem turca, e a deportação para a Sibéria de milhares de bálticos deixou sequelas profundas nas minorias atingidas por essas medidas repressivas.
O renascimento do nacionalismo separatista no espaço soviético ficou transparente desde o início da perestroika. Contribuiu decisivamente para a desagregação da URSS.
Foi obviamente incentivado, e com frequência financiado pelos EUA no âmbito de uma estratégia cuja meta era a destruição da União Soviética e a transformação da Rússia numa sociedade capitalista.
Mas o êxito dessa política foi muito facilitado pela atmosfera anti russa que persistia, adormecida, nas populações de muitas repúblicas.
Os países bálticos, onde havia fortes minorias russas, foram os primeiros a romper, optando pela independência. Em visita à Lituânia e Letónia no verão de 1989 chocou-me a vaga de anticomunismo. Funcionários dos Partidos locais elogiavam como «heróis» os dirigentes de direita da Republica anterior à II Guerra Mundial. Em Vilnius, Alguis Tchecuolis, um lituano que havia dirigido a Agencia Novosti em Lisboa, disse-me sem rodeios que era «anti leninista». À porta das igrejas, jovens colavam nas paredes cartazes antissoviéticos.
Tive a oportunidade de registar um grande mal-estar no Cáucaso e no Cazaquistão em 1987 e 1989, quando o fracasso da perestroika já era identificável por visitantes comunistas como eu. Em Alma Ata,no Cazaquistão, onde meses antes manifestações anti russas tinham sido reprimidas pelas armas, um secretário do Partido minimizou em conversa comigo o significado dos protestos populares, atribuindo-os a hooligans, a marginais.
Em visitas ao Uzbequistão, impressionou-me a tenaz sobrevivência da cultura islâmica naquela república. E surpreendeu-me a ignorância de camaradas do Partido da história dos povos iranianos e turcos que ali tinham criado grandes civilizações cuja herança é identificável nas deslumbrantes mesquitas e medersas de Samarcanda, Khiva e Bukhara, património da humanidade. Alguns manuais de história soviéticos ignoravam mesmo o chamado renascimento timurida, o fascinante período de esplendor cultural na literatura, nas artes, na astronomia e na arquitetura, tornado possível pelos descendentes do conquistador turco Tamerlão.
Em jornadas inesquecíveis pelas províncias do Norte do Afeganistão e pelo Sul do Uzbequistão tive a oportunidade de verificar que a fronteira que ali separa dois estados iluminava uma realidade que me transportou a diferentes idades da Humanidade.
De ambos os lados daquela fronteira artificial, traçada no final do século XIX pelo Império Britânico e pelo Império Russo, vivem ainda povos irmãos que falam línguas turcas e iranianas. Mas enquanto no Uzbequistão me senti no século XX, nos povoados misérrimo da Báctria e no Bandaquistao afegãos movimentei-me por vezes entre gentes que me transportavam pela imaginação ao século X.
Na outra margem do Amu Daria, não obstante as políticas discriminatórias de Stalin na Ásia Central, a revolução soviética ergueu grandes cidades, indústrias modernas, universidades de prestígio, e com a água dos grandes rios que descem do Pamir irrigou desertos, criando neles uma agricultura florescente.
Mas bastava atravessar a ponte que separa a Termez uzbeque da Hairaton afegã para contemplar uma sociedade onde uma mulher valia menos do que um camelo.
Não houve, insisto, política permanente de russificação na Ásia Central soviética. Era uma impossibilidade. Mas, apesar da fidelidade à cultura e às tradições muçulmanas, as Republicas da Ásia Central foram as ultimas a proclamar a independência. A ruptura não foi aliás conflituosa, ao contrário das bálticas.
Nesses países, os dirigentes do Estado e do Partido exerciam o poder de uma forma autocrática, com punho de ferro, e temiam a transição para formas de governo de modelo ocidental. Muitos aliás sobreviveram à transição para o capitalismo, nomeadamente no Cazaquistão (Nursultan Nezarbayev continuou a governar o país) e no Turquemenistão.
Uma derrota da humanidade
Refletindo hoje sobre os acontecimentos da Ucrânia e a torrente de disparates venenosos que os media ocidentais divulgam sobre o que ali está a passar-se e os discursos anti russos de Obama e dos principais estadistas da União Europeia, sou levado à conclusão de que uma profunda ignorância da historia da Rússia e da URSS contribui para a aceitação pela maioria dos europeus e americanos das teses da propaganda anticomunista. Com poucas exceções, os sovietólogos ocidentais das grandes universidades continuam a apresentar a União Soviética como um estado monstruoso e o comunismo como uma aberração. Insistem em ver em Stalin um ditador sanguinário e em estabelecer paralelos com Hitler. Mas Lenin também é exorcizado.
A maioria dos Partidos Comunistas reagiu mal à desagregação da URSS e à instalação do capitalismo na Rússia. Traumatizados pela derrota do «modelo» que haviam defendido durante décadas, não demonstraram capacidade para dar uma resposta ideológica adequada à ofensiva dos inimigos da véspera. Muitos dirigentes dos PCs europeus e americanos (o dos EUA é hoje uma organização social-democrata) participaram inclusive das campanhas de descrédito da URSS. Afirmam ainda lutar pelo socialismo, mas não convencem. Retomam velhas teses de Kautsky, Bauer e Bernstein. Adotando um conceito perverso de democracia, vulgarizado pelos sacerdotes do capital, chegam à aberração de admitir que um dia a humanidade chegará ao socialismo pela via parlamentar, através de reformas realizadas no âmbito das instituições criadas pela burguesia para lhe servirem os objetivos.
Como comunista, não duvido de que a Revolução de Outubro foi um dos maiores acontecimentos da História, na continuidade da Revolução Francesa de 1789, assinalando o caminhar do nosso Planeta para um mundo que responda a aspirações eternas da humanidade.
Creio também que os historiadores do futuro, superado o frenesi irracional do antisovietismo, refletirão com serenidade sobre a intervenção de Stalin na História do século XX. A sua personalidade nunca me atraiu. Mas esse distanciamento do homem não me impede de qualificar de deturpadoras da História as posições antagónicas daqueles que o condenam sem apelo como inimigo da Humanidade e dos que, numa perspectiva oposta, vêem nele o genial estadista da Revolução que mudou o mundo.
Os crimes e erros de Stalin foram enormes e a URSS pagou por eles um preço altíssimo. Mas sendo inquestionável que lhe cabem pesadíssimas responsabilidades pelo rumo tomado pelo PCUS, e portanto pela derrota ali do socialismo, é também para mim evidente que Stalin foi um revolucionário que desempenhou um papel decisivo no esmagamento do III Reich nazi.
Para finalizar, reafirmo a convicção de que o desaparecimento da União Soviética foi uma tragédia para a Humanidade – acelerada pela traição de Gorbatchov e pela guerra não declarada do imperialismo norte-americano – e que, para tentarmos entender a Rússia contemporânea, é imprescindível um conhecimento mínimo da história dos povos que habitam o seu gigantesco território.
*Colaborador de Diálogos do Sul, de Vila Nova de Gaia e Serpa, março de 2014 e dezembro de 2016
*JVStalin, Obras, II Tomo, paginas 278 a 348, Editorial Vitória, Rio de Janeiro,1952. O Ensaio de Stalin, intitulado «O Marxismo e a Questão Nacional», analisa sobretudo o tema a partir de opiniões dos austro marxistas Springer e Otto Bauer, de teses do Bund judaico, e dos problemas das nacionalidades do Cáucaso. É confuso e mal estruturado.
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