Sangue,
vergonha e trevas
Tereza Cruvinel
Ninguém chegou ao dia 31 de dezembro
acreditando no “Feliz Ano Novo” dito sem convicção. Sabíamos todos que
começaria um ano tenebroso, de decrepitude política e infarto econômico, mas
ninguém esperava o banho de sangue e a vergonha que explodiu no Norte, mas é
produto da vida nacional. Já a pequenez, o despreparo e a velhacaria do governo
Temer diante de fatos tão graves só surpreenderam os que acreditaram na
feitiçaria do golpe parlamentar.
Algo porém vem sendo tão chocante quanto
as decapitações e esquartejamentos: a desenvoltura com que representantes da
direita no poder pregam a “higienização social” e a divisão dos brasileiros
entre os que têm direitos e os que devem ser tratados como animais.
Para a regressão absoluta, faltou apenas
a defesa de fornos crematórios nas prisões.
Quando se pensa que Temer esgotou sua
cota de titubeio, hesitação e tergiversação, ele se cala por três dias enquanto
o mundo se espanta com o naufrágio da civilização brasileira. Depois, joga com
as palavras, e define como mero “acidente pavoroso” um fato previsível e
previsto, decorrente da inépcia do Estado (vá lá que antiga e não apenas em seu
governo) na gestão do sistema prisional. Acidente é aquilo que acontece por
acaso, pelo qual ninguém tem responsabilidade.
Tentou em vão lavar as mãos, pois seu
governo foi avisado pelos gestores estaduais da situação nos presídios. Em
outubro, uma missão da ONU também deu cópia ao governo do relatório de sua
inspeção em alguns presídios, entre eles o de Manaus.
O ministro da Justiça também joga
desonestamente com as palavras. Primeiro lembra repasses do fundo penitenciário
aos estados na véspera dos confrontos sangrentos em Manaus, como se tivesse
havido tempo para a aplicação dos recursos. Nega os pedidos de socorro e é
desmentido cabalmente pela governadora de Roraima. E finalmente marca uma
reunião de secretários de segurança para o dia 17, como se a situação não fosse
desesperadora naquelas e em outras unidades da federação, com os governadores
pedindo o envio da Força Nacional de Segurança, porque não têm condições de
garantir a segurança nos campos de concentração, digo, nas prisões.
Mas isso é Temer e seu governo, e não
devia surpreender.
Já a pregação cínica da barbárie espanta,
porque não desperta as reações de há alguns anos atrás, quando a sociedade
brasileira era mais solidária e conhecida o sentido da palavra compaixão. Bruno
Júlio foi exonerado na sexta-feira do cargo de secretário de Políticas para a Juventude,
após louvar a chacina de Manaus e dizer que deveria haver uma por semana. As
aparências exigiram sua queda, mas o que
ele expressou foi a natureza essencial do governo Temer. Se um governo abriga
gente como ele, é porque se identifica com pensamentos como o dele. Não veio,
da sociedade, o devido rechaço. E depois vieram outros louvores à barbárie,
culminando com a fala de Bolsonaro, de que para os presos, o direito que existe
é “o de não ter direitos”. Onde está escrito isso? Onde a Constituição afirma
que uma condenação judicial (sem falar nos presos não sentenciados amontados
nos presídios) transforma um cidadão/cidadã em pária? Mas Bolsonaro sabe que
não prega no deserto e sim para a nova direita raivosa que, desde 2013, busca
um acerto de contas com o Brasil progressista, agora minoritário. Este
silêncio, ou esta omissão, diante de tão eloquente mensagem das trevas, informa
sobre aspectos da alma brasileira que o golpe vem revelando.
Temer deixou a crise para traz e
embarcou para Portugal, levando a tiracolo Gilmar Mendes, que o julgará no TSE.
Tudo natural. Em Lisboa, fará pose entre as autoridades europeias nos funerais
de Mario Soares, que receberá merecidas honras de Estado, mas não enganará os
portugueses. Em tempo real, sabem o que se passa no Brasil. Uma amiga
diplomata, Maria Helena Neves, que viveu muitos anos em Brasília e ama
sinceramente o Brasil, me liga no Natal e diz: “O que daqui percebemos é que
deve estar sendo muito triste viver no Brasil atual. “Digo-lhe que sim, triste
e difícil, mas há de passar.
Entretanto, a primeira semana do ano
mostrou que o país continua piorando e entrou definitivamente na espiral do
caos e das trevas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário