sexta-feira, 21 de julho de 2017

Eddie Bernays, o gênio do vício

Psicanálise

Eddie Bernays, o gênio do vício

por Nirlando Beirão — publicado 21/07/2017 00h30, última modificação 20/07/2017 17h33
Trafegando entre a fraude e Freud, sobrinho do psicanalista e pioneiro do marketing ensinou a América a tragar
Ilustração: Pilar Velloso/Foto:Istockphoto
Eddie Bernays
Desde os anos 30 se desconfiava dos efeitos maléficos do tabaco. Bernays pagou para ocultar
A promiscuidade entre a indústria de cigarros, cientistas sob contrato e marqueteiros de aluguel – que o doutor Drauzio Varella abordou na edição passada de CartaCapital – não vem de hoje e, lá na remota América pré-Depressão, produziu um personagem extraordinário, ele próprio um case de propaganda e autopromoção. 

A criatura chamou-se Edward L. Bernays. A família poderia ter-lhe também atribuído no berço o sobrenome da mãe, Anna – Freud, o mesmo do ainda desconhecido irmão dela, o médico austríaco Sigmund Freud.
Assim como titio Freud criou uma doutrina, a psicanálise, ao sobrinho Eddie atribui-se a descoberta de uma traquinagem: as relações públicas. Ambas tentavam dar significado, pelo bem ou pelo mal, a atitudes humanas.

Sigmund Freud morreu de câncer na garganta, aos 83 anos. Costumava fumar entre 20 e 22 charutos bávaros do tipo mata-rato (só quando virou celebridade é que os amigos passaram a abastecê-lo com puros habanos). Sem cerimônia alguma, costumava defumar os pacientes deitados no depois consagrado divã. O próprio Freud apressou-se a driblar uma possível interpretação freudiana de sua obsessão. Mais de uma vez disse: “Às vezes, um charuto é só um charuto”.

Já Wilhelm Reich, o mais delirante dos seus discípulos, prenunciando a tendência contemporânea de atribuir males dramaticamente físicos, como o câncer, a comportamentos mentais do tipo depressão e resignação, defendeu que o mestre pagou o preço de ter engolido muito sapo, a fim de tornar a psicanálise palatável ao establishment científico da época, desconfortáveis os figurões do saber com a ênfase que a doutrina freudiana oferecia à sexualidade.
A indústria recrutou o charme de Sinatra, mas a grande cartada foi transformar o malefício já conhecido num benefício à saúde, com o aval de médicos de aluguel (Foto: Reprodução)
Edward (Eddie) Bernays foi o primeiro grande spin doctor da América. Seu portfólio é eclético. Em 1917, divulgava a turnê do tenor italiano Enrico Caruso pelo país; em 1953, orquestrava, com a United Fruit por trás do pano, uma campanha de difamação contra o governo democrático de Jacobo Árbenz Guzmán na Guatemala, finalmente derrubado com a assistência norte-americana. Bernays jogava leve ou pesado, de acordo com as circunstâncias. Manipulou, fraudou, inventou, criou. Ao longo de sete décadas, seu maior cliente foi uma indústria que produzia câncer.

Sem exagero, Eddie Bernays e o cigarro devem um ao outro, nos Estados Unidos, sua notoriedade. Pouco antes de morrer, mais que centenário, em 1995, mas se vangloriando de suas façanhas eróticas junto à jovem enfermeira que o acompanhava, o RP número 1 da América gravou um depoimento autobiográfico em que confessava: desde os anos 30, desconfiava dos efeitos mortíferos do fumo.
Escreveu uma carta a um executivo da área em que usava a palavra “carcinoma”. “Devemos estar preparados para o dia em que a opinião pública buscar um esclarecimento”, alertava, em 1933. Nem por isso se arrependeu. “Era parte do negócio”, resumiu. O homem que ensinou milhões de americanos e americanas a tragar admitiu, não sem uma ponta de cinismo: “Eu, por mim, sempre preferi chocolate”.

Ele e, a rigor, toda a América. Até a Primeira Guerra Mundial, fumar era um hábito masculino, privado e ritualístico. Cavalheiros de polainas e relógios de corrente de ouro saboreavam seus charutos após as refeições, na adequada parceria com o Bénédictine ou o Porto. De repente, havia uma guerra na Europa, a tensão dos combates, a solidão das trincheiras, e o cigarro, no molde em que é conhecido hoje, entrou na ração diária dos soldados americanos, juntamente com o amendoim e o corned-beef.

De volta para casa, os ex-combatentes disseminaram o vício, mas não suficientemente a ponto de agradar a George Washington Hill, o chairman da American Tobacco Company. O consumo de cigarros crescia nas camadas populares, mas Hill percebeu que, ainda assim, seu mercado parecia condenado, como os de ceroulas e de tacos de beisebol, a ficar circunscrito à metade do país. Para seduzir a outra metade – as mulheres –, ele contratou, em 1928, Eddie Bernays. O sobrinho de Freud iria revelar-se um gênio no marketing – e o gênio do vício.

Não que as mulheres não fumassem – apontaram, logo, logo, as pesquisas encomendadas por Bernays. Elas faziam do cigarrinho uma diversão doméstica íntima, com ares marotos de uma pequena transgressão. O desafio era, portanto, levar as fumantes para a rua – dar um jeito de transformar suas baforadas públicas num ato feminino de orgulho, de afirmação e de coragem, e não de culpa.
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Titio fumava 20 charutos por dia. Morreu de câncer. Eddie foi mais esperto (Foto: Reprodução)
A Parada da Páscoa, na Quinta Avenida, faz parte das festas de rua de Nova York do mesmo modo como a balbúrdia irlandesa do Dia de São Patrício ou a malemolência latina do Columbus Day. Trata-se de uma parada elegante, basicamente feminina, em que as senhoras se esmeram em seus chapéus, luvas, sombrinhas, rendas e fragrâncias (não por acaso, quando virou filme, Easter Parade veio a convocar a diva Judy Garland ao lado da presença chique e esvoaçante de um Fred Astaire). 

Bernays decidiu: a Parada da Páscoa de 1929 seria o Dia D do tabaco. Ele sabia como ninguém botar de pé um evento e, afinal de contas, precisava justificar aquele salário atordoante de 25 mil dólares ao ano (em dinheiro de hoje, 20 vezes mais). Começou a fazer aquilo que chamou de “cristalizar a opinião pública”. 

Espalhou a ideia de que cigarro era dietético. “Troque o doce por um cigarro”, dizia um anúncio da American Tobacco. Bernays pagou ao fotógrafo Nickolas Muray, o Steven Meisel da época, para que só clicasse suas tops magrelinhas com um cigarro na mão. Induziu o empresário da dança Arthur Murray a assinar uma carta, dizendo que a melhor coisa que suas bailarinas podiam fazer, para aplacar os rigores do regime severo, era se permitir um eventual cigarrinho. E foi aí que deu um passo em direção ao abismo ético: passou a contratar pareceres médicos.

De cara, foi logo buscar uma sumidade estrangeira: o doutor George F. Buchan, ex-chefe da Associação Inglesa de Médicos de Saúde Pública. “A melhor maneira de encerrar uma refeição é com uma fruta, café e um cigarro”, assinou resolutamente o doutor Buchan. “A fruta limpa os dentes. O café estimula o fluxo da saliva na boca e atua como um detergente bucal. Finalmente, o cigarro desinfeta a boca e acalma os nervos.”
Bernays distribuiu o dúbio paper entre os jornais amigos. E comprou espaço naqueles nem tanto. Bernays foi além. Tratou de encomendar novos atestados médicos. Tese: fumaça faz bem às cordas vocais. Foi ao Metropolitan e convenceu o primeiro time dos cantores de ópera a vender, em público, essa ideia. O cachê pagava a pena. 

Aproximava-se o grande dia: o domingo de Páscoa. Como o titio ilustre, Eddie Bernays parecia acreditar no inconsciente. E queria entender o oculto porquê da inibição das damas em pitarem à vista dos outros.
Consultou o doutor A. A. Brill, discípulo de Freud, o qual saiu-se com um interminável lero-lero: as mulheres tinham alcançado um grau de emancipação pessoal semelhante ao dos homens, mas lhes faltava um símbolo dessa emancipação. Cigarros poderiam vir a ser, para elas, as tochas da liberdade. Menção explícita a um dos símbolos mais queridos da América: a Estátua da Liberdade.

Sinos tocaram na cabeça do rapidíssimo Bernays. “Tochas da liberdade” – era o que lhe bastava. Cuidou pessoalmente do casting de modelos e acompanhantes – aqueles que iriam fazer o papel de casais da vida real. “Nada de atrizes conhecidas”, recomendou.
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Na Parada de Páscoa, modelos contratadas desfilaram o prazer de fumar (Foto: Reprodução)
Recrutou os mais notórios paparazzi da cidade. No dia seguinte ao desfile, em poses estudadas em que se destacavam os anéis fumegantes de suas baforadas, as damas de Nova York estampavam, com ou sem piteira, os novos emblemas de sua emancipação nas páginas dos jornais de costa a costa. De um dia para o outro, fumar em público passava a ser um sinal de distinção.

A relação com o tio distante – mas cada vez mais renomado – iria produzir um episódio desconcertante, se não caricato. Tio e sobrinho correspondiam-se com razoável assiduidade. Nas cartas, subjazia o desconforto de Freud em ver o sobrinho tão viciado na droga do consumismo. De repente, a sutil reposta de Eddie: convidar Herr Doktor a entrar no jogo. 

Freud refugiara-se em Londres quando o terror nazista começou a perseguir os judeus alemães e austríacos. Para reforçar o orçamento da família exilada, Eddie – que já agenciava o tio junto às editoras norte-americanas – inventou de pagar a Freud uma consultoria a respeito da correta cor da embalagem de um novo cigarro Lucky Strike. Freud, que estava longe de ser designer, apostou no verdinho-água. O palpite era um desastre – nunca foi adotado.

Em prol do fumo, Eddie Bernays, o mestre de cerimônias da grande farsa, ainda iria fazer uso, outras vezes, de suas ferramentas de dissuasão e de seus bem remunerados poderes de ilusionista. Mas, como notou seu biógrafo Larry Tye (The Father of Spin, Crown Publishers, NY, 1998, 306 páginas), Bernays, sempre agudo na hora de ressalvar seus verdadeiros interesses, chegou aos 104 anos invicto. Sem botar um único cigarro na boca.

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