Roberto Amaral*
A identificação de Lula como alvo da reação não é
gratuita. Se dá pelo que ele simboliza
Sem surpresa, o País recebeu
a anunciada condenação de Lula, sentença que já estava pronta antes mesmo da
mal articulada denúncia do Ministério Público Federal, antes mesmo do
julgamento na ‘República de Curitiba’, pois, antes de tudo, estava lavrada pelas
classes dominantes – os rentistas da Avenida Paulista, as “elites” alienadas, a
burguesia preconceituosa, um empresariado sem vínculos com os destinos do povo
e de seu país. Uma “elite” movida pelo ódio e pela inveja que alimenta a
vendeta.
Denúncia, julgamento,
condenação constituem uma só operação política, cujo objetivo é avançar mais um
passo na consolidação do golpe em progresso iniciado com a deposição da
presidenta Dilma Rousseff.
Tomado de assalto o poder,
cumpriria agora destruir eleitoralmente a esquerda, numa ofensiva que lembra a
ditadura instalada em 1964.
Para destruir a esquerda é
preciso destruir seu principal símbolo, assim como para destruir o trabalhismo
caberia destruir o melhor legado de Getúlio Vargas. Não por mera coincidência,
o senhor Sérgio Moro decidiu dar à luz a sentença a ele encomendada no dia
seguinte em que o Senado Federal violentava a Consolidação das Leis do
Trabalho.
Desinformando e formando
opinião, exaltando seus apaniguados e difamando aqueles que considera seus inimigos,
inimigos de classe, a grande imprensa brasileira promove o cerco político, e
tece as base da ofensiva ideológica unilateral, porque produto de um monólogo.
Essa imprensa – um oligopólio
empresarial, um monopólio político-partidário-ideológico e na verdade o
principal partido da direita – que exigiu e obteve a condenação de Lula (e
presentemente tenta justificá-la, embora carente de argumentos) recebeu com
rojões juninos a sentença encomendada, mas logo se enfureceu, porque Lula
recusou o cadafalso político e anunciou sua candidatura à presidência.
Ora, dizem os editoriais, os
articulistas, os colaboradores, dizem os “cientistas” políticos do sistema,
Lula não pode ser candidato, o que revela a motivação da sentença. Já há
“cientistas” exigindo que o TRF-4, em Porto Alegre, confirme sem tardança a
condenação, e “filósofos” anunciando que a candidatura Lula é um desserviço à
democracia (ela que lidera todas as pesquisas de intenção de voto) porque
“polarizaria” o debate e as eleições. Doria, não. Bolsonaro, não. Caiado, não.
Alckmin tampouco polariza. Mas Lula, sim; por isso precisa ser defenestrado.
A “vênus de prata” já começou
a campanha visando à condenação de Lula na segunda instância, e o Estadão
(edição de 14 último) anuncia que o “Supremo deve manter condenação de Lula”.
Somos testemunhas da
tentativa de revanche da direita brasileira. Impedir a candidatura Lula é a
defesa prévia ante a ameaça de a população demolir o golpe com as eleições de
2018.
O fato de o libelo (e jamais
sentença) de Moro ser obra conhecida, segredo de polichinelo, não releva seu
caráter mesquinho e iníquo, ademais de sua inépcia jurídica, desnudada.
Do ponto de vista do direito,
a “sentença” é um mostrengo e se fundamenta em ilações, presunções, talvez
“convicções”, artifícios de raciocínio em conflito com a lógica.
Contrariando o direito, que
só conhece propriedade e posse, o juiz inventa a figura do “proprietário de
fato”. A propriedade, segundo nosso Código Civil, se prova mediante o registro
em Cartório, mas para acusar Lula se aceita que uma simples delação do
proprietário real seja recebida como transferência, e como esse proprietário
supostamente doador, empreiteiro respondendo a processos, é usufrutuário de
falcatruas, conclui o juiz açodado que o apartamento deve ter sido dado em
retribuição a alguma facilidade propiciada pelo ex-presidente, trata-se,
portanto, de uma propina. E se é propina, Lula é agente passivo de corrupção.
E por tais caminhos sinuosos,
mediante tal exercício de lógica pedestre, condena à cadeia o ex-presidente,
para puni-lo, evidentemente, mas para punir antes de tudo com a decretação de
sua inelegibilidade.
É disto que se trata.
Não cabe, pois, discutir a
gramática processualística, simples apoio formal de uma decisão eminentemente política,
e, do ponto de vista político, um golpe preventivo em face das eleições de
2018, das quais previamente e precatadamente se elimina o candidato que lidera
as pesquisas de intenção de voto.
É preciso abater esse
candidato, pelo que ele simboliza.
E assim, e só assim, as
eleições poderão realizar-se, disputada a presidência entre Francisco e Chico.
Como temos insistido, às
forças do atraso não bastava o impeachment de Dilma Rousseff, pois, o projeto
em andamento é a implantação de um regime de exceção jurídica voltado para a
desmontagem de um projeto de Estado social, mal enunciado. E um regime com tais
características e com tais propósitos jamais alçaria voo dependendo do apoio
popular.
Daí o golpe.
À sua execução se entregou o
Congresso, sem ouvidos para as vozes das ruas, surdo em face dos interesses do
País e de seu povo, desapartado da representação popular, a serviço do mercado,
como tonitrua, sem pejo, o atual presidente da Câmara.
A eliminação de Lula é, pois,
a conditio sine qua non do novo
sistema para manter o calendário eleitoral, pois as eleições, para serem
realizadas, não poderão importar em risco. De uma forma ou de outra, trata-se
de um golpe, afastando-se uma vez mais do povo o direito de escolher seus
dirigentes.
A identificação de Lula como
alvo da reação não é gratuita, nem fato isolado. Lula de há muito transcendeu
os limites de eventual projeto pessoal, é mais do que um ex-presidente da
República, e é muito mais que fundador e presidente do PT.
Independentemente de sua
vontade e da vontade de seus inimigos, é, para além de sua popularidade, o mais destacado ícone
da esquerda e das forças populares brasileiras.
Lula é, hoje, e em que pesem
suas contradições, um símbolo, um símbolo da capacidade de nosso povo fazer-se agente
de sua História. É um símbolo das possibilidades de o ser humano vencer suas
circunstâncias, romper com as contingências e fazer-se ator. Simboliza a
potência do povão, do povo-massa, dos “de baixo”, dos filhos da Senzala como
sujeitos históricos. Simboliza a possibilidade de o homem comum, um operário,
romper com as amarras da sociedade de classes, racista e preconceituosa, e
liderá-la num projeto de construção de uma sociedade em busca de menos
desigualdade social.
Por isso é amado e odiado.
Símbolos assim constituem
instrumentos de importância capital nos confrontos políticos por sua capacidade
de emocionar e mobilizar multidões. Símbolos deste tipo não surgem como frutos
do acaso nem se multiplicam facilmente, nem se constroem da noite para o dia.
Emergem em circunstâncias especiais, atendendo a demandas concretas da
sociedade. São construídos ao longo de certo tempo de provação, de testes
dolorosos, como ocorre com os heróis clássicos, percebidos pela comunidade como
portadores de virtudes.
O símbolo Lula não é produto
do acaso, nem consequência de um projeto individual. Trata-se do fruto
histórico resultante do encontro do movimento sindical com as lutas populares,
construindo a primeira liderança política brasileira que emergiu do proletariado,
do chão de fábrica, para a Presidência da República. Um feito de dificílima
repetição, neste país aferrado ao autoritarismo conservador.
É contra esse instrumento da
luta política de massa que se arma a prepotência das classes dominantes
brasileiras, filhas do escravismo, incuravelmente reacionárias, incuravelmente
atrasadas, presas à ideologia da Casa Grande, desapartadas dos interesses do
povo e da nação, descomprometidas com o futuro do país.
Ao abater Lula, pretende a
direita brasileira dizer que o povo – no caso um ex-imigrante do Nordeste
profundo, sobrevivente da fome, um ex-metalúrgico, um brasileiro homem-comum,
um dos nossos –, não pode ter acesso ao Olimpo reservado aos donos do poder. É
um “chega prá-lá”, um “conheça o seu lugar”, um “não se atreva”, um “veja com
quem está falando”.
A condenação de Lula tem o
objetivo de barrar a emergência das massas, barrar os interesses da nação,
barrar o avanço social, barrar o ideal de um Brasil desenvolvido e justo. Visa
a barrar não o lulismo, mas todo o movimento popular brasileiro. Quer deter não
apenas o PT, mas todas as organizações políticas do espectro popular (que não
se enganem a esse respeito aqueles que sonham em crescer nos eventuais
escombros do lulopetismo).
A defesa de Lula, a partir de
agora, não é uma tarefa, apenas, de seu partido e dos seus seguidores. Ela
representa, hoje, a defesa da democracia. É só a primeira batalha, pois muitas
nos aguardam até 2018.
* Jornalista, cientista
político, ex-ministro de Ciência e Tecnologia.
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