sexta-feira, 21 de julho de 2017

Um tributo a Marco Aurélio de Almeida Garcia

Memória

Um tributo a Marco Aurélio de Almeida Garcia

por Roberto Amaral — publicado 21/07/2017 09h45
A política externa brasileira ativa e altiva, que tanto orgulho nos rendia, tinha o seu dedo, sua palavra, seu texto e sua clarividência
Marcelo Camargo/Agência Brasil/Fotos Públicas
Marco Aurélio Garcia
Simpático, afável, mas duro quando necessário; cultivava a ironia fina como estilo
Eu e Marco Aurélio Garcia éramos amigos desde 1961, quando, mal saídos da adolescência, fomos eleitos para a diretoria da União Nacional dos Estudantes, e onde atuamos juntos por mais de um ano.
Desde o primeiro momento se revelaram suas qualidades políticas e intelectuais. Nos debates, nos conflitos ideológicos, admirava sua capacidade de promover encontros e formular sínteses. Um orador seguro, expositor de primeiríssima qualidade. Simpático, afável, mas duro quando necessário; cultivava a ironia fina como estilo.
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Na UNE, logo se tornou um dos ideólogos do Centro Popular de Cultura, onde encontraria Oduvaldo Vianna Filho (grande ator, autor e animador) e Carlos Estevão (nosso formulador). Com Clemente Rosas, como nós, também vice-presidente da UNE, integramos a Seção Juvenil do PCB, onde brigávamos com a burocratizada direção partidária.
Sob o comando de Aldo Arantes, presidente da UNE em nossa gestão, organizamos a resistência estudantil à tentativa de golpe de agosto de 1961, quando os militares tentaram impedir a posse de Jango.
Rodamos o país inteiro na caravana da UNE-Volante, o primeiro grande esforço visando ao diálogo politizado com as bases estudantis, preparando-as para uma grande greve nacional em defesa da Reforma Universitária.
Aldo Arantes, Clemente Rosas, Marco Aurélio e eu fizemos nossa primeira viagem ao “mundo socialista”. No Brasil, a expectativa de construção de uma sociedade justa nos colocou frente à uma Ditadura Militar que passamos a combater até nos perdermos nos anos de chumbo.
Marco, no exílio (Chile e França); Aldo, na clandestinidade e a caminho da guerrilha; eu, jogando de esconde-esconde com a repressão.
Muitos e muitos anos passados, muita vida percorrida, nos reencontramos, para surpresa nossa, em seminário sobre Gramsci no curso de pós-graduação em Ciência Política na USP.
Marco Aurélio, já professor na Unicamp e eu na PUC-Rio, sempre priorizando a militância política. Antes, pensávamos estar contribuindo para a construção socialista; nos últimos anos da ditadura, nos concentraríamos na reconstrução democrática, ele participando da fundação do PT; eu, tentando a reorganização do Partido Socialista.
Caminhávamos por margens distintas do mesmo rio, fiéis àqueles ideais que haviam nutrido nossas juventudes. Acompanhei-o na construção do Foro São Paulo e, com Aldo Arantes, nas campanhas presidenciais de Lula e Dilma.
Juntos, integramos o primeiro ministério do governo Lula, do qual foi ele um dos principais ideólogos, como inteligente e corajoso assessor internacional, ao lado de Celso Amorim e Samuel Pinheiro Guimarães, outros dois grandes brasileiros.
política externa do presidente Lula, um dos pontos altos de nosso governo, que tanto orgulho nos rendia, tem o seu dedo, sua palavra, seu texto, sua clarividência.
Marco Aurélio entendia a necessidade de contraposição à hegemonia estadunidense; sabia que era chegada a hora da multipolaridade em benefício de todos, não apenas do Brasil; percebia a necessidade de sepultar a perigosa e perversa quimera da unipolaridade.
E tinha como evidente que a parte brasileira só faria sentido caminhando com nossos vizinhos da América do Sul e da África. Daí seu empenho no fortalecimento do Mercosul, da Unasul e do Conselho Sul-americano de Defesa; daí sua atenção à presença brasileira no continente africano.
A integração sul-americana e a aproximação com os africanos de língua portuguesa seriam os pontos de partida para o grande projeto Sul-Sul.
Paralelamente, caberia dar sentido aos entendimentos do BRICS e estabelecer diálogos políticos em áreas ainda não navegadas pela diplomacia brasileira. O porte e as perspectivas de nossa economia demandavam aproximação com a Ásia, destacadamente com a China.
Marco Aurélio foi um dos arquitetos dessa política ativa e altiva (no feliz resumo de Celso Amorim), que elegeu como azimute a prioridade dos interesses nacionais, a busca de seu próprio caminho, rompendo com o trajeto de submissão automática às grandes potências. Sua herança é o exemplo da politica externa mais bem sucedida desde a Independência.
A grandeza dessa política, revogada, se sobressai independentemente da mediocridade atual, que retira o país do proscênio e o relega, retroagindo aos governos Collor e FHC, à mais abjeta subserviência à potência hegemônica.
À visão estratégica da política externa de Lula, tivemos, como consequência do golpe que depôs Dilma Rousseff, a retomada da mediocridade, da sabujice, da renúncia a qualquer papel de relevância. De ator mundial, regredimos ao papel de figurantes .
Estivemos juntos, pela última vez, há cerca de dois meses. Marco Aurélio, alegre, nos apresentou seu novo apartamento paulistano, da qual destacava, como salões nobres, sua cozinha-copa-sala de estar “montada como um bistrô”, dizia ele, e o espaço reservado para sua imensa e rica biblioteca que ainda não conseguira pôr em ordem.
Eu lá estava, na companhia da cineasta e produtora Cláudia Furiati que desejava seus conselhos para um filme (que ainda pretende rodar) sobre a esquerda latino-americana.
A visita começou com um belíssimo jantar, elaborado por ele enquanto degustávamos um majestoso vinho sacado de sua adega. A noite não tinha pressa. Terminamos esse encontro, que eu jamais pensei ser o último, ouvindo-o dissertar sobre o plano de seu livro de memórias.
O infarto traiçoeiro nos proibiu dispor de uma peça literária de grande porte, e de um depoimento crucial sobre a política brasileira de nossos dias.

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