MOMENTO AGROECOLÓGICO
'Minha Folha, Minha Cura' une ciência e vivência dos terreiros de matriz africana
No Maranhão, projeto pretende criar rede de hortas medicinais e divulgar conhecimento da medicina popular
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A diversidade das plantas que curam cultivadas pelos povos ancestrais indígenas e tradicionais dos quilombos é uma das riquezas da cultura popular que as comunidades dos terreiros de matriz africana no Maranhão vem passando de geração a geração.
Como forma de reconhecer e de preservar este conhecimento está sendo implantado o projeto “Minha Folha. Minha Cura”, que pretende criar uma rede de beneficiamento de hortas medicinais e litúrgicas nos terreiros do Maranhão, começando por oito terreiros da região metropolitana de São Luis.
O assessor de Comunidades Tradicionais de Matriz Africana da Secretaria Estadual da Igualdade Racial, Sebastião Cardoso Jr, observa que o projeto foi criado a partir do Plano Estadual de Desenvolvimento Sustentável de Comunidades de Matriz Africana, que destaca as práticas tradicionais de saúde, tão comuns aos povos de terreiro.
“A utilização das ervas é por meio de chás, tinturas, beberagens, lambedouros, mas também tem o uso ritual. O projeto é piloto nestes oito terreiros para que cada um seja polo e se multiplique. Em seguida a gente vai trabalhar a rota quilombola: Icatu, Serrano, Itapecuru e demais municípios”, resume Sebastião.
Na atual etapa do projeto estão sendo identificadas as plantas já cultivadas pelos terreiros e o que será necessário para a construção dos canteiros que irão receber as mudas de 20 espécies de plantas que compõem a “Farmácia Viva”, projeto estratégico presente no Maranhão e em outros estados, parceiro do “Minha Folha. Minha Cura” e coordenado pela médica Kaline Bezerra.
“Nós estamos nos terreiros em São Luís fazendo o plantio de plantas medicinais com comprovação científica, ou seja, nós fazemos a capacitação com a comunidade, profissionais de saúde e pais e mães de santo, onde eles vão entender como funcionam a plantas medicinais na forma de chá, pomada, xarope, tudo nos padrões das boas práticas de manipulação e também com um conhecimento muito científico. A gente respeita as garrafadas que eles fazem, mas o nosso trabalho é dentro da ciência”, esclarece a médica.
Tradição
Pai Joãozinho da Vila Nova acolheu o “Minha Folha. Minha Cura” e reconhece que atualmente muitas casas deixam de cultivar plantas pelo conhecimento ter se perdido ou por falta de espaço dentro das casas para o seu plantio.
“Esse trabalho que está sendo feito agora vai ser muito importante para as casas. Resgatar essa nossa origem, esse nosso conhecimento que está perdido no tempo e ensinar os mais novos que precisam ter esse conhecimento, então alguns filhos de santo não têm o conhecimento destas ervas”, considera o pai de santo.
Canteiros de ervas já cultivadas no Terreiro Mamãe Oxum e Pai Oxalá
Entre as ervas cultivadas pelo projeto estão algumas bem conhecidas, como o manjericão, mastruz, agrião, romã, cravo da índia, vick, erva cidreira e outras menos populares como a xanana, que aumenta a imunidade e é energética.
No Terreiro de Oxalá, o pai de santo Nemézio, de 35 anos, fala sobre as plantas que estão a sua volta e suas qualidades.
“Aqui eu tenho o alho brabo que é uma planta até difícil de se encontrar, mas que também é uma planta milagrosa, de curas milenares de questões de inflamações de útero, ovário e outros tipos e combate ao câncer. É uma erva muito boa para limpeza de mulher para depois do parto, é muito usada. Nós temos o ipê amarelo que serve para inflamação, muito poderosa com seus poderes mágicos. Aqui também estou cultivando a erva São João, para quem não conhece, uma erva que combate muitos tipos de doenças, de rins, cálculos e outras doenças do sangue, é depurativo”, disse.
Pai Nemézio aprendeu os segredos da natureza ainda menino com seu avô, conhecido como Manoel Curador, do Terreiro do Egito, o mais antigo terreiro de São Luís.
“Eu sou muito popular até por este tipo de garrafada que eu faço, essa mistura de ervas. É um aprendizado de raiz. Desde a infância eu aprendi aqui, tive experiência com meu avô lidando no dia a dia e hoje eu tento passar para os meus filhos este mesmo conhecimento. Eu vejo como uma esperança de tratar muitas doenças que podem ser evitadas. As ervas ajudam a combater vários tipos de doenças graves que a gente vê e que são a maioria das mortes, doenças como câncer, infarto, problemas renais, que hoje podem ser combatidas com o uso das plantas”, explica o pai de santo.
Integração
Toda essa sabedoria popular atraiu também o interesse da Academia. Nordman André Oliveira, estudante do curso de ciências sociais da Universidade Federal do Maranhão, vem acompanhando o projeto e identifica a riqueza da relação que está sendo estabelecida.
“Estou pesquisando este movimento nos terreiros de matriz africana em relação às plantas medicinais. Minha perspectiva é a de integração dos terreiros e esse conhecimento, que é trocado do terreiro com a comunidade, dando possibilidade de voz ao terreiro”, observa Nordman.
Visita técnica das Secretarias de Agricultura Familiar (Saf) e da Igualdade Racial (Seir) aos terreiros para levantamento dos materiais necessários para a construção dos canteiros de ervas.
Todos os participantes do projeto irão coletivamente preparar os canteiros e plantar as mudas. Os canteiros já existentes nos terreiros serão melhorados e outros serão construídos com materiais reutilizados, como pneus, garrafas de vidro e pet. Alguns canteiros terão formato de mandalas com os símbolos dos orixás. As mudas das plantas dos oito terreiros polos serão distribuídas para todos os terreiros participantes, que a partir daí irão desenvolver seus próprios canteiros. O projeto terá também a parceria da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e prevê ainda o lançamento de um catálogo.
“Uma fase importante do projeto é a parceria da Embrapa na questão das folhas, do mato cheiroso para produzir os banhos. Depois de todas as etapas concluídas nós vamos fazer um catálogo com as plantas utilizadas no projeto e divulgar a utilidade de cada uma“, conclui Sebastião.
“O povo vai ter um pouco mais de conhecimento e usar da medicina popular, como o povo diz, que é a medicina que Deus nos deu, que foi o começo de tudo”, diz com satisfação Pai Nemézio.
São as plantas sendo cultivadas, cuidadas, para que possam cuidar de nós. Formando um ciclo virtuoso de vida.
Edição: Daniela Stefano
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