Rússia
Às portas do bunker de Stalin, um diálogo na Rússia contemporânea
por Flávio Ricardo Vassoler — publicado 21/07/2018 00h15, última modificação 20/07/2018 16h50
Uma conversa sobre história, geopolítica e darwinismo
Manan Vatsyayana/AFP
Em frente ao abrigo subterrâneo construído para o líder soviético turistas tiraram fotos com uniformes militares
O diálogo travado a seguir aconteceu em frente ao bunker de Stalin, há pouco mais de uma semana, na cidade de Samara, a aproximadamente mil quilômetros da capital russa. Esperava para entrar no abrigo subterrâneo construído para o líder bolchevique durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Samara teria se transformado em capital da União Soviética, caso Moscou tivesse sucumbido aos invasores nazistas.
Enquanto aguardava na fila, conversei com o ex-soldado do Exército Vermelho Valeri Borissovitch Korietski, de 70 anos, que lá estava para oferecer aos turistas a possibilidade de tirar fotos com uniformes militares soviéticos ao lado de um antigo retrato do ditador Josef Stalin (1878-1953).
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Flávio Ricardo Vassoler: O que você acha da Rússia atual sob a batuta de Vladimir Putin e como o senhor vê os recentes conflitos em que o país se envolveu?
Valeri Borissovitch Korietski: Imagino que, como boa parte da comunidade internacional, você deve estar bastante insatisfeito com a Rússia por causa da Crimeia. É curioso... Os EUA invadem o Afeganistão e o Iraque, e ninguém fala nada. Agora, quando outra potência nuclear vem à tona reclamar seu quinhão no xadrez imperial e geopolítico, aí as críticas não poderiam ser maiores. Que coisa, não?
Vassoler: O fato de eu ser contrário à anexação da Crimeia pela Rússia não significa, de forma alguma, que eu concorde com as invasões do Afeganistão e do Iraque pelos Estados Unidos. Não me reduza a essa lógica estanque da Guerra Fria.
Korietski: Vamos aos fatos. Em 1954, o líder soviético Nikita Kruchev deu a Crimeia de presente para a Ucrânia, que, à época, era uma das repúblicas socialistas soviéticas. A Crimeia, vale frisar, pertencia anteriormente à Rússia. Agora veja: desde o colapso da URSS, os Estados Unidos vêm utilizando os países vassalos da Otan para apontar mísseis em nossa direção. As fronteiras europeias estão todas cercadas.
Considerando-se, então, que (1) a Crimeia era nosso território, (2) a Ucrânia só adquiriu existência independente após o colapso da URSS e (3) os EUA vêm nos cercando, a decisão da população da Crimeia de se juntar à Federação Russa – população que, em sua maioria, é composta de russos étnicos –, por meio do referendo realizado no início de 2014, parece-me bastante acertada.
Vassoler: O senhor sustenta essa posição mesmo sabendo que o processo para o referendo deu-se à revelia da temporalidade determinada pelos tratados internacionais?
Korietski: Ora, meu caro, mas o que você queria? Que nós esperássemos a mídia internacional, orquestrada pelos interesses dos EUA, fabricar um consenso contra o nosso direito territorial? Do ponto de vista estratégico, a decisão de Putin foi perfeita.
Vassoler: E do ponto de vista ético?
Korietski: Como Vladimir Putin chegou a mais de 85% de aprovação popular quando a Crimeia voltou a integrar o território da Federação Russa, creio que nós, russos, demos o nosso recado.
Vassoler: Quer dizer então que, segundo a sua lógica de avaliação da história, vale apenas a afirmação do próprio interesse, é isso?
Korietski: Minha lógica, meu caro? Desde quando essa lógica se resume apenas ao meu próprio argumento? Essa lógica vem presidindo a história desde que os hominídeos se aventuraram para além das cavernas.
Vassoler: Sendo assim, os nazistas estavam certos quando invadiram a União Soviética, não é mesmo? Eles tinham uma lógica própria para fazê-lo, não tinham?
Korietski: Tinham, sim, e como tinham! Antes da Batalha de Stalingrado, eles detiveram a razão. Depois de Stalingrado e com a ajuda da produção militar aqui de Samara, a guerra passou a marchar a nosso favor.
A razão, então, perfilou-se ao nosso lado. É por isso que eu digo: se a anã Ucrânia quiser reivindicar a Crimeia, ela terá de se ver com o nosso poderio nuclear. E, hoje em dia, os russos só devem ficar atentos em relação a dois países: Estados Unidos e China. Todos os demais, por ora, são cartas fora do baralho – a não ser que a Rússia, os Estados Unidos e a China queiram tais cartas sob as próprias mangas.
E, a bem dizer, eu corroboro uma colocação recente de Putin: “O Ocidente, suas instituições e sua mídia só vão respeitar a Rússia e seus interesses, integralmente, no dia em que os russos lhes entregarem, em uma bandeja de ouro, todas e cada uma de nossas reservas petrolíferas, todas e cada uma de nossas reservas minerais, todos e cada um de nossos gasodutos e todas e cada uma de nossas ogivas nucleares.
Nesse dia, e tão somente nesse dia, os russos serão aceitos no time seleto de nações pelas quais o Ocidente, civilizado como ele só, tem o mais encarecido respeito”.
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