Antes de se matar, a ativista responsável pelas denúncias contra João de Deus teve contato diário com a reportagem de CartaCapital
No começo, eu fazia o jogo do jornalista parceiro e agradável, a dizer o que ela talvez desejasse ouvir, interessado que estava em um possível furo de reportagem. Com o passar do tempo, avançamos aos desabafos mútuos, ela a queixar-se da imprensa e das autoridades brasileiras, eu a relatar o desânimo com o hospício em que nos transformamos, entre Ernestos e Damares.
Depois descobrimos amigos em comum, nos tornamos, nós mesmos, amigos, ou algo que precede esse estado canino de fidelidade e compreensão. Na sexta-feira 1o, ela me enviou por WhatsApp a cópia de uma conversa com outro repórter, igualmente interessado em informações exclusivas.
Era um tipo arrogante e ofertava seu peixe ao peso de uma orca: “Sou a maior plataforma online do mundo”. Ela, escolada e desbocada, sugeriu tratar-se de um adolescente na dura missão de provar a longa metragem de suas partes baixas. Rimos dessa besteira como dois idiotas. “Geração Nutella da porra”, escreveu, emendando a gargalhada esfuziante da internet, “HAHAHAHA”. Isso foi na sexta. No sábado, Sabrina matou-se.
Em dezembro passado, CartaCapital publicou um perfil e uma entrevista com Sabrina Bittencourt, de minha autoria. “Meus inimigos vão amar”, ironizou ela, ao saber que o material seria alçado à capa da revista. “Isso vai ajudar muito no meu processo de pedido de asilo político.”
Na ocasião, conversamos por videoconferência através de um celular cujo prefixo era da Espanha, mas Sabrina não quis me dizer exatamente sua localização. Estava ameaçada de morte e era protegida por uma rede internacional de ativistas dedicados à segurança de outros ativistas. Mudava de casa a cada dez ou 12 dias, trocava de país, segundo ela, sem registrar ingresso na fronteira. Uma fuga exasperante que buscava escapar da “quadrilha de João Teixeira”, mas também de inimigos que fizera no México, quando lidou com a questão indígena naquele país.
Depois de “24h de terror”, me escreveu: “Diga aos que ficam que eu só fui uma anarquista Nutella”
Certo dia conversamos a respeito de seu filho Gabriel. Sabrina contou sobre a vida dele e seu trabalho, com a despretensão e o orgulho bobo com que nós, pais e mães, falamos dos filhos. Ao perceber, no entanto, que havia se estendido para além do recomendável, alertou: “Mas é importante que as pessoas não desenterrem que ele é meu filho, porque ele tem vida pública, vive pelo mundo em palestras e cursos”.
Na noite do dia 12 de janeiro, Sabrina enviou-me um vídeo no qual aparecia falando ao telefone com Gabriel. Ele conta para a mãe como tinha sido retirado às pressas de São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, com a ajuda de “um pessoal dos direitos humanos”. Fora levado sob escolta para o aeroporto e, no momento daquela ligação, preparava-se para o embarque. “Foram 24 horas de terror”, disse-me ela, “uma operação para tirar meu filho do Brasil depois de uma ameaça de morte.”
Eu nunca tinha visto Sabrina tão abalada, tinha grandes olheiras e os olhos marejados. No dia seguinte, perguntei se Gabriel tinha chegado bem. “Ainda está no caminho”, respondeu. “Diga aos que ficam que eu só fui uma anarquista Nutella!”
Dias antes desse acontecimento, ela me pedira um espaço na revista em que pudesse escrever “sobre as ameaças que todos nós ativistas, artistas, jornalistas sérios estamos recebendo e uma das formas de lidar com isso para não enlouquecer”.
Quando seu artigo chegou, tratava de tema completamente diferente, uma análise sobre justiça penal e justiça social, publicado na primeira edição deste ano.
A partir do resgate de Gabriel, nossas conversas se concentraram em dois temas principais: as denúncias de que João de Deus teria envolvimento com uma rede internacional de tráfico de crianças, e as ameaças de morte que decorriam de suas descobertas, todas remetidas à polícia e ao Ministério Público no Brasil.
“A sinistra ministra está colocando todos os seus milhões de soldadinhos para me difamarem na internet, porque estamos denunciando a ONG dela que trafica crianças indígenas. Ela sabe que estou por trás disso”, escreveu-me Sabrina no dia 27 de janeiro, em referência à ministra Damares Alves.
“Mas, por outro lado, acabo de encontrar algumas traficantes de bebês de Minas Gerais, estou aqui chorando de alegria, é um dos dias mais fodas e felizes da minha vida, vou desidratar de tanto chorar.” No dia do seu suicídio, no sábado 2, voltou a escrever: “Estou sendo perseguida. Um guia que trabalha na Casa Dom Inácio de Loyola (onde João de Deus operava, em Abadiânia, Goiás) marcou vários dos matadores profissionais do João de Deus, pedindo para me localizarem”.
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A notícia do suicídio de Sabrina foi primeiro divulgada por nota das Vítimas Unidas, ONG com a qual a ativista trabalhava. Segundo o texto, Sabrina teria se matado em Barcelona, na Espanha. No entanto, o local da ocorrência destoava de uma informação da família de que o suicídio teria ocorrido no Líbano. Repórteres de veículos diversos buscaram as representações brasileiras em ambos os países, que até o fechamento desta edição não confirmavam a morte. Entre jornalistas e mesmo pessoas próximas a Sabrina, passou-se a aventar a hipótese de um “suicídio simbólico” que lhe permitisse escapar das ameaças e proteger os filhos. A “teoria conspiratória” foi turbinada pelo anúncio de um enterro alternativo, a se realizar em algum lugar do Líbano, sob uma oliveira.
Desde a segunda-feira 4, o ex-marido e pai dos filhos de Sabrina, o ativista catalão Rafael Bueno, tem mantido contato comigo no WhatsApp através da mesma conta em que eu falava com ela. “Não vamos dar nossos dados a este governo corrupto, que Sabrina havia denunciado. Eles poderiam nos encontrar”, diz. “É um absurdo isso que estamos passando (o questionamento sobre o suicídio). As pessoas não percebem a gravidade da situação?”
Antes de morrer, Sabrina deixou em seu Facebook uma espécie de carta de despedida: “Marielle, me uno a ti. Somos semente. Que muitas flores nasçam dessa merda toda que o patriarcado criou há 5 mil anos. Eu fiz o que pude, até onde pude”. O post foi retirado do ar pelos administradores da rede, em prevenção ao “efeito gatilho” capaz de levar outras pessoas a se matarem.
No dia de sua morte, telefonou “aos prantos” para o youtuber Felipe Neto, de quem era amiga. “Tentei o que pude, mas Sabrina não aguentava mais a luta. Minha dor está imensa”, escreveu ele. “O sentimento de impotência por não ter conseguido salvar a sua vida é indescritível. A única coisa que me consola é que Sabrina não morreu de verdade, porque o que fez em vida perdurará para sempre. Vá em paz, minha amiga.”
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ESCRITO POR FRED MELO PAIVA
Editor da revista CartaCapital
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