Histórias do Futuro
Histórias do Futuro
Religião, violência e loucura
O que mais chama a atenção nessa gigantesca demonstração de poder global é que, desde a posse dos 'homens da Bíblia', o uso agressivo de ameaças e intervenções em todas as latitudes do mundo não venha acompanhado de nenhum tipo de discurso ético ou de algum tipo de projeto comum para a humanidade. O único que se vê e se ouve são ordens, ameaças e exigências de submissão e obediência incondicional aos desígnios norte-americanos
15/05/2019 12:05
Créditos da foto: The Stoning of Saint Stephen - Rembrandt (Wikimedia Commons)
15/05/2019 12:05
Créditos da foto: The Stoning of Saint Stephen - Rembrandt (Wikimedia Commons)
A INFORMAÇÃO NÃO
É MERCADORIA,
É UM BEM PÚBLICO.
O meu anjo irá adiante de ti e te levará aos amoreus, aos heteus, aos ferezeus, aos cananeus, aos heveus e aos jebuseus, e eu os exterminarei. Não adorarás os seus deuses, nem os servirás; não farás o que eles fazem, mas destruirás os seus deuses e quebrarás as suas colunas.
Êxodo, 23, Bíblia de Jerusalém, Edições Paulinas, São Paulo, p.140.
Na segunda década do século XVI, o humanista cristão Erasmo de Roterdã sustentou um famoso debate teológico com Martinho Lutero, sobre a “regra da fé”, ou seja, sobre critério de verdade no conhecimento religioso. Essa batalha não teve um vencedor, mas ajudou a clarificar a posição revolucionária de Lutero, que rejeitou a autoridade do Papa e dos Concílios, e defendeu a tese de que todo cristão deveria julgar por si mesmo, o que fosse certo e o fosse errado no campo da fé. Para Lutero, como para Calvino, a evidência última da verdade religiosa era a “persuasão” de cada um dos leitores das Escrituras, e esta “persuasão” era concedida aos homens pela “revelação” do Espírito Santo. Contra este argumento de Lutero, Erasmo levantou uma aporia fundamental: se aceitássemos o argumento de Lutero, como poderíamos decidir entre duas leituras e interpretações diferentes de algumas passagens mais obscuras dos textos sagrados? Ou seja, como se poderia escapar da circularidade do raciocínio de Lutero, que considerava que o critério da verdade religiosa era a “persuasão interior” do cristão e ao mesmo tempo dizia que esta mesma “persuasão” só poderia ser garantida pela “revelação divina”. Uma “revelação” pessoal e intransferível, que não tem como ser confrontada com outra “revelação” igual e contrária, que não seja através do uso do poder e da força capaz de definir e impor o que seja certo e o que seja errado, o que seja a ortodoxia, e o que seja a heresia.
O primeiro cristão queimado na fogueira, acusado de heresia, foi um espanhol chamado Prisciliano, condenado e morto no ano de 385, poucos anos antes que Santo Agostinho revisasse a doutrina pacifista dos primeiros cristãos e defendesse o direito ao uso da violência e à “guerra santa”, sempre que fosse contra os infiéis. Uma tese que foi radicalizada por São Bernardo de Claraval, doutor da Igreja Católica que cunhou o neologismo “malecídio” – no ano de 1128 – para designar e justificar o assassinato cristão de hereges, pagãos e infiéis de todo tipo – doutrina aceita e praticada durante toda a Idade Média. Do lado protestante, o primeiro herege colocado na fogueira foi o cientista Miguel Servet, condenado e queimado pelos calvinistas do Conselho de Genebra no ano de 1553. Antes disso, entretanto, em 1525, Lutero já havia apoiado pessoalmente o massacre de 100 mil camponeses alemães que haviam se revoltado contra a nobreza e o clero católico, inspirados pelas próprias ideias de Lutero. A partir daí, a violência e a crueldade entre as seitas cristãs foi cada vez maior, e a divergência entre Erasmo e Lutero se transformou na força propulsora de uma guerra entre católicos e protestantes que durou mais de cem anos – de 1524 a 1648 –, a despeito de católicos e protestantes participarem igualmente do genocídio religioso dos povos indígenas da América. Só depois da Paz de Westphalia, assinada em 1648, é que essa ira santa contra os hereges foi domesticada, e a luta entre as religiões perdeu sua centralidade política dentro da Europa.
Durante os 350 anos seguintes, as religiões foram afastadas do comando dos Estados europeus e de suas decisões de guerra e paz. Nas últimas décadas, entretanto, em particular depois do fim da Guerra Fria,vem-se assistindo por todos os lados o renascimento de um fanatismo religioso associado a forças políticas de extrema-direita. Tudo indica que essa onda começou nos EUA, na década de 1980, sob a liderança de seitas evangélicas e pentecostais, mas contando também com o apoio de setores cada mais extensos da Igreja Católica. Muitos sociólogos atribuem esta ressurgência à crise ou à morte das grandes utopias europeias dos séculos XIX e XX, e ao crescimento do medo e da insegurança de sociedades ameaçadas por um futuro incerto e imprevisível. Mas seja qual for a causa, a verdade é que este fenômeno adquiriu uma nova dimensão com a eleição de Donald Trump, em 2016, apoiado por uma grande coalizão de forças religiosas e de extrema-direita que acabaram se impondo dentro Partido Republicano e vencendo as eleições. E houve um novo salto nesse processo, no momento em que essas forças religiosas assumiram o comando da política externa dos EUA, no início de 2018, com a nomeação de Mike Pompeo e John Bolton, como secretário de Estado e como conselheiro de Segurança da Presidência da República, respectivamente, colocando-se ao lado de Mike Pence, o vice-presidente, e de James Mattis, o secretário de Defesa, para formar um dos grupos mais conservadores e belicistas que já comandou a política externa dos EUA, desde a II Guerra Mundial. Todos discípulos de Dick Cheney, e todos firmemente convencidos de que os EUA foram o “povo escolhido” por Deus para salvar a civilização judaico-cristã de seu declínio no século XXI.
Logo depois da posse de M. Pompeo e J. Bolton, no início de 2018, os EUA anunciaram o início de sua “guerra comercial” com a China, e sua saída do Acordo Nuclear com o Irã, que havia sido assinado em 2015, o ICPOA. Anunciaram também, logo em seguida, uma série de sanções com o objetivo de estrangular progressivamente a economia iraniana. Hoje, os EUA bombardeiam quase diariamente a população de quatro países, pelo menos: Afeganistão, Somália, Síria e Iêmen, e sustentam, ao mesmo tempo, uma escalada global de sanções comerciais e financeiras, de ameaças e cercos militares, e de agressões retóricas contra Rússia, China, Coreia do Norte, Turquia, Venezuela, Cuba, Nicarágua, e contra a própria União Europeia – Alemanha, em particular. E agora de novo, em janeiro de 2019, os EUA anunciaram seu abandono do “Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário”, assinado com a URSS, em 2008, e depois aceleraram e multiplicaram suas intervenções ao redor do mundo.
O que mais chama a atenção nessa gigantesca demonstração de poder global é que, desde a posse dos “homens da Bíblia”, o uso agressivo de ameaças e intervenções em todas as latitudes do mundo não venha acompanhado de nenhum tipo de discurso ético ou de algum tipo de projeto comum para a humanidade. O único que se vê e se ouve são ordens, ameaças e exigências de submissão e obediência incondicional aos desígnios norte-americanos.[1] Um quadro aparente de loucura ou irracionalidade que pareceria incompatível com o que muitos analistas vêm chamando de acelerado processo de “cristianização da politica externa norte-americana”.[2] Como conciliar estas duas tendências tão contraditórias? Aparentemente, através da visão milenarista compartilhada pelos novos estrategos bíblicos da politica externa dos EUA que estão convencidos de que Donald Trump é o homem que foi enviado para comandar as forças do Bem contra o Mal, na batalha apocalíptica do Armagedon, que segundo a profecia bíblica, deverá ser vencida pelas forças do bem e portanto, pelos Estados Unidos da América.
Essa visão evangélica e pentecostal é compartilhada por setores católicos de extrema-direita, que hoje são liderados pelo cardeal norte-americano Raymond Burke, associado e financiado por Steve Bannon, o antigo assessor de Trump que hoje está envolvido na luta contra o pacifismo e o ecumenismo religioso de Jorge Bergoglio, o Papa Francisco.[3] Do ponto de vista desse crescente fanatismo e belicismo religioso, fica cada vez menos absurda a convicção de muitos analistas internacionais sérios, que hoje estão plenamente convencidos de que os atentados de 11 de setembro de 2001 teriam sido de fato um “autoatentado terceirizado” e construído com o objetivo de mobilizar as energias nacionais americanas para uma guerra religiosa secular, contra o Islã e contra todas as heresias que se anunciam no horizonte.
Sem entrar nessa discussão, a verdade é que é que, do ponto de vista funcional, os atentados de 2001permitiram a Dick Cheney arrancar do Congresso as duas medidas que ele já vinha patrocinando desde o tempo em que comandou a Guerra do Golfo, como secretário de Defesa dos EUA: o direito de o Executivo Americano declarar guerra sem autorização do Congresso Nacional, em caso de “ameaça terrorista”; e o direito do Banco Central e do governo americano de acessarem e controlarem todas as operações financeiras mundiais que passem pelo sistema bancário americano, pelo Banco da Inglaterra e pelo próprio sistema bancário da União Europeia. Tudo isto pode ser apenas uma especulação teológica ou conspiratória, mas não há dúvida de que essas teses e interpretações religiosas conseguem dar algum sentido a esse conjunto de ataques enfurecidos dos EUA contra tudo e contra todos que ameacem sua lealdade judaica e estejam no caminho de seu projeto de poder global.
Mas existe outro lado deste assunto que não é devidamente analisado: o fato de que outros povos e culturas possam não compartilhar desses mesmos valores, nem considerar que estes mesmos textos bíblicos sejam sagrados ou que suas profecias tenham algum fundamento real – o que nos remete de volta ao debate entre Erasmo e Lutero. A diferença, neste caso, é que o “outro lado” não é um indivíduo nem é um cristão necessariamente, e pode até considerar que todas essas previsões do Apocalipse são uma rematada loucura. Além disso, no campo internacional, este “outro” é sempre um Estado nacional, e pode ser um Estado que tenha as mesmas pretensões globais dos EUA, e que luta por suas crenças e valores com a mesma intensidade que os norte-americanos. Por isso mesmo, até agora, depois de um ano e meio de “gritos e ameaças”, os “homens da Bíblia”, que estão no comando da política externa norte-americana, não tenham obtido nenhuma vitória significativa, nem mesmo alguma rendição da parte de seus concorrentes e adversários mais importantes, que vêm sendo assediados na Ásia, no Oriente Médio e na América Latina.
Desse ponto de vista, com toda certeza, uma das poucas intervenções diretas bem sucedidas ( pelo menos no curto prazo), desse grupo de herdeiros de Dick Cheney tenha sido mesmo a “operação Bolsonaro”, que ajudou a instalar no governo brasileiro uma coalizão política montada às pressas e liderada por um grupo de pessoas muito toscas e, ao mesmo tempo, extremamente violentas e religiosas. Uma espécie de simulacro de baixo nível de qualidade, da própria coalizão que elegeu Trump e, mais especificamente, do grupo que assumiu o comando de sua política externa e emplacou um de seus discípulos (ou seminaristas?), no Ministério das Relações Exteriores do Brasil, com a função explícita e imediata de apoiar e participar da invasão militar da Venezuela já no início de 2019. Basta lembrar o papel patético e solitário do chanceler brasileiro, na fronteira com a Venezuela, ali postado como se fosse o comandante de um exército que não existia, e de uma invasão que não aconteceu. Faltou Mike Pompeo explicar ao seu pupilo que “povos escolhidos” só existem dois: Israel, que não teria maior importância se não fosse o Estado judeu por excelência, e portanto, na prática, um Estado religioso que foi transformado numa máquina militar de ocupação, com poder atômico;[4] e os Estados Unidos, que já foram “fundados“ pelos puritanos, uma seita de origem calvinista radical, e que se tornou uma grande potência, extremamente religiosa, que expandiu e projetou seu poder de forma contínua desde o século XIX, sempre orientada por seus interesses estratégicos nacionais. Além disso, Pompeo deveria ter-lhe explicado que no caso de Israel e dos Estados Unidos, o discurso religioso da “salvação judaico-cristã” coincide com e instrumentaliza suas próprias estratégias de defesa e a projeção mundial de seus interesses militares, políticos e econômicos. Já no caso do Brasil, a luta pela civilização judaico-cristã não nos agrega nada, nem coincide ou ajuda a promover os interesses econômicos e estratégicos de um país que é multicultural, multirracial e extremamente heterogêneo do ponto de vista religioso, e desigual, do ponto de vista social. Por isso, essa nova submissão da política externa brasileira aos versículos da Bíblia admirados pelo presidente e seus filhos, e pelo próprio ministro, limitam inevitavelmente o escopo das alianças internacionais do país a um número muito pequeno e inexpressivo de países sem grande projeção, como é o caso, por exemplo, de Chile, Paraguai, Hungria, Polônia, ou mesmo Israel, fora do Oriente Médio.
A artificialidade do projeto americano transposto para o Brasil fica ainda mais nítida quando se analisa o papel da violência e da agressividade dos novos governantes brasileiros, que tentam imitar o modelo praticado sobretudo por Donald Trump e John Bolton. Esta violência primitiva do núcleo governante brasileiro transforma toda e qualquer divergência política e democrática numa heresia, e tenta eliminar e destruir como herege todos os seus opositores. Uma prática que já trouxe para o Brasil um tipo de divisão e enfrentamento religioso que não será fácil de superar ou esquecer por muitos e muitos anos, talvez décadas. No caso do governo Trump, a agressão internacional, generalizada e destrutiva, encontra do outro lado da fronteira sociedades, culturas e civilizações sólidas e muitas vezes indiferentes com relação às fantasias apocalípticas dos norte-americanos. Mas no caso da agressividade bolsonarista e de sua obsessão doentia pelas armas, o que existe é uma sociedade que se sente atacada e ameaçada por seus próprios governantes, que não são capazes de propor para os brasileiros nenhum tipo de horizonte futuro mais pacífico, igualitário e justo. Pelo contrário, o que este núcleo religioso e fundamentalistapropõe é uma espécie de distopia da violência, o prazer da violência pela violência e o desejo psicopático doentio de destruir a tudo e a todos, sem propor nada em troca.
Hoje, a palavra “bolsonarismo” é usada em todo mundo, como sinônimo de violência irracional e destruição psicopática, feita em nome de versículos bíblicos, mas sem nenhum sentido ético e humanitário. Já e utilizada também como um sinal vermelho de advertência sobre o limite a que pode chegar a humanidade quando perde o sentido ético da política e da história, e se joga contra tudo e contra todos, movida pelo ódio, medo e paranoia, transformando a religião num instrumento de vingançae destruição da possibilidade de convivência entre os homens.
Neste sentido, e de alguma forma, o “bolsonarismo” está fazendo com que as pessoas reflitam, no Brasil e em todo mundo, sobre as consequências dramáticas do paradoxo de Erasmo e Lutero: perguntando-se como é que seitas e religiões que pregam a paz e o amor entre os homens podem ao mesmo tempo promover o ódio a violência e a guerra sem fim contra “hereges” e “heresias” que elas mesmas vão inventando, separando amigos e inimigos, fiéis e infiéis, com base em “revelações” e “persuasões individuais” que não se sustentam em nenhum tipo de evidência ou argumentação racional, mas que acabam reforçando a unidade e a identidade destas seitas através do próprio exercício da violência.
Notas:
[1] Fiori, J.L. “Babel syndorme and the new security doctrine of the United States”, Journal of Humanitaruan Affairs, 1(1), April 2019, pp 42-45.
[2] Joyce, K. “The Chistianization of the U.S, Foreign Policy:”, The New Republic, March 25, 2019
[3] Martel, F., “No Armário do Vaticano: Poder, Hipocresia e Homosexualidade”, < Porto Editora, Porto, 2019, P:57
[4] Fiori, J.L, “A visão sagrada de Israel”, Jornal Valor Econô mico, 28 de maio de 2009
José Luís Fiori é professor titular de Economia Política Internacional, Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro; coordenador do GP do CNPq “Poder Global e Geopolítica do capitalismo” e do Laboratório “Ética e poder global”, do Nubea/UFRJ e pesquisador do Instituto e Estudos Estratégicos do Petróleo, Gás e Biocombustíveis (INEEP).
O meu anjo irá adiante de ti e te levará aos amoreus, aos heteus, aos ferezeus, aos cananeus, aos heveus e aos jebuseus, e eu os exterminarei. Não adorarás os seus deuses, nem os servirás; não farás o que eles fazem, mas destruirás os seus deuses e quebrarás as suas colunas.
Êxodo, 23, Bíblia de Jerusalém, Edições Paulinas, São Paulo, p.140.
Na segunda década do século XVI, o humanista cristão Erasmo de Roterdã sustentou um famoso debate teológico com Martinho Lutero, sobre a “regra da fé”, ou seja, sobre critério de verdade no conhecimento religioso. Essa batalha não teve um vencedor, mas ajudou a clarificar a posição revolucionária de Lutero, que rejeitou a autoridade do Papa e dos Concílios, e defendeu a tese de que todo cristão deveria julgar por si mesmo, o que fosse certo e o fosse errado no campo da fé. Para Lutero, como para Calvino, a evidência última da verdade religiosa era a “persuasão” de cada um dos leitores das Escrituras, e esta “persuasão” era concedida aos homens pela “revelação” do Espírito Santo. Contra este argumento de Lutero, Erasmo levantou uma aporia fundamental: se aceitássemos o argumento de Lutero, como poderíamos decidir entre duas leituras e interpretações diferentes de algumas passagens mais obscuras dos textos sagrados? Ou seja, como se poderia escapar da circularidade do raciocínio de Lutero, que considerava que o critério da verdade religiosa era a “persuasão interior” do cristão e ao mesmo tempo dizia que esta mesma “persuasão” só poderia ser garantida pela “revelação divina”. Uma “revelação” pessoal e intransferível, que não tem como ser confrontada com outra “revelação” igual e contrária, que não seja através do uso do poder e da força capaz de definir e impor o que seja certo e o que seja errado, o que seja a ortodoxia, e o que seja a heresia.
O primeiro cristão queimado na fogueira, acusado de heresia, foi um espanhol chamado Prisciliano, condenado e morto no ano de 385, poucos anos antes que Santo Agostinho revisasse a doutrina pacifista dos primeiros cristãos e defendesse o direito ao uso da violência e à “guerra santa”, sempre que fosse contra os infiéis. Uma tese que foi radicalizada por São Bernardo de Claraval, doutor da Igreja Católica que cunhou o neologismo “malecídio” – no ano de 1128 – para designar e justificar o assassinato cristão de hereges, pagãos e infiéis de todo tipo – doutrina aceita e praticada durante toda a Idade Média. Do lado protestante, o primeiro herege colocado na fogueira foi o cientista Miguel Servet, condenado e queimado pelos calvinistas do Conselho de Genebra no ano de 1553. Antes disso, entretanto, em 1525, Lutero já havia apoiado pessoalmente o massacre de 100 mil camponeses alemães que haviam se revoltado contra a nobreza e o clero católico, inspirados pelas próprias ideias de Lutero. A partir daí, a violência e a crueldade entre as seitas cristãs foi cada vez maior, e a divergência entre Erasmo e Lutero se transformou na força propulsora de uma guerra entre católicos e protestantes que durou mais de cem anos – de 1524 a 1648 –, a despeito de católicos e protestantes participarem igualmente do genocídio religioso dos povos indígenas da América. Só depois da Paz de Westphalia, assinada em 1648, é que essa ira santa contra os hereges foi domesticada, e a luta entre as religiões perdeu sua centralidade política dentro da Europa.
Durante os 350 anos seguintes, as religiões foram afastadas do comando dos Estados europeus e de suas decisões de guerra e paz. Nas últimas décadas, entretanto, em particular depois do fim da Guerra Fria,vem-se assistindo por todos os lados o renascimento de um fanatismo religioso associado a forças políticas de extrema-direita. Tudo indica que essa onda começou nos EUA, na década de 1980, sob a liderança de seitas evangélicas e pentecostais, mas contando também com o apoio de setores cada mais extensos da Igreja Católica. Muitos sociólogos atribuem esta ressurgência à crise ou à morte das grandes utopias europeias dos séculos XIX e XX, e ao crescimento do medo e da insegurança de sociedades ameaçadas por um futuro incerto e imprevisível. Mas seja qual for a causa, a verdade é que este fenômeno adquiriu uma nova dimensão com a eleição de Donald Trump, em 2016, apoiado por uma grande coalizão de forças religiosas e de extrema-direita que acabaram se impondo dentro Partido Republicano e vencendo as eleições. E houve um novo salto nesse processo, no momento em que essas forças religiosas assumiram o comando da política externa dos EUA, no início de 2018, com a nomeação de Mike Pompeo e John Bolton, como secretário de Estado e como conselheiro de Segurança da Presidência da República, respectivamente, colocando-se ao lado de Mike Pence, o vice-presidente, e de James Mattis, o secretário de Defesa, para formar um dos grupos mais conservadores e belicistas que já comandou a política externa dos EUA, desde a II Guerra Mundial. Todos discípulos de Dick Cheney, e todos firmemente convencidos de que os EUA foram o “povo escolhido” por Deus para salvar a civilização judaico-cristã de seu declínio no século XXI.
Logo depois da posse de M. Pompeo e J. Bolton, no início de 2018, os EUA anunciaram o início de sua “guerra comercial” com a China, e sua saída do Acordo Nuclear com o Irã, que havia sido assinado em 2015, o ICPOA. Anunciaram também, logo em seguida, uma série de sanções com o objetivo de estrangular progressivamente a economia iraniana. Hoje, os EUA bombardeiam quase diariamente a população de quatro países, pelo menos: Afeganistão, Somália, Síria e Iêmen, e sustentam, ao mesmo tempo, uma escalada global de sanções comerciais e financeiras, de ameaças e cercos militares, e de agressões retóricas contra Rússia, China, Coreia do Norte, Turquia, Venezuela, Cuba, Nicarágua, e contra a própria União Europeia – Alemanha, em particular. E agora de novo, em janeiro de 2019, os EUA anunciaram seu abandono do “Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário”, assinado com a URSS, em 2008, e depois aceleraram e multiplicaram suas intervenções ao redor do mundo.
O que mais chama a atenção nessa gigantesca demonstração de poder global é que, desde a posse dos “homens da Bíblia”, o uso agressivo de ameaças e intervenções em todas as latitudes do mundo não venha acompanhado de nenhum tipo de discurso ético ou de algum tipo de projeto comum para a humanidade. O único que se vê e se ouve são ordens, ameaças e exigências de submissão e obediência incondicional aos desígnios norte-americanos.[1] Um quadro aparente de loucura ou irracionalidade que pareceria incompatível com o que muitos analistas vêm chamando de acelerado processo de “cristianização da politica externa norte-americana”.[2] Como conciliar estas duas tendências tão contraditórias? Aparentemente, através da visão milenarista compartilhada pelos novos estrategos bíblicos da politica externa dos EUA que estão convencidos de que Donald Trump é o homem que foi enviado para comandar as forças do Bem contra o Mal, na batalha apocalíptica do Armagedon, que segundo a profecia bíblica, deverá ser vencida pelas forças do bem e portanto, pelos Estados Unidos da América.
Essa visão evangélica e pentecostal é compartilhada por setores católicos de extrema-direita, que hoje são liderados pelo cardeal norte-americano Raymond Burke, associado e financiado por Steve Bannon, o antigo assessor de Trump que hoje está envolvido na luta contra o pacifismo e o ecumenismo religioso de Jorge Bergoglio, o Papa Francisco.[3] Do ponto de vista desse crescente fanatismo e belicismo religioso, fica cada vez menos absurda a convicção de muitos analistas internacionais sérios, que hoje estão plenamente convencidos de que os atentados de 11 de setembro de 2001 teriam sido de fato um “autoatentado terceirizado” e construído com o objetivo de mobilizar as energias nacionais americanas para uma guerra religiosa secular, contra o Islã e contra todas as heresias que se anunciam no horizonte.
Sem entrar nessa discussão, a verdade é que é que, do ponto de vista funcional, os atentados de 2001permitiram a Dick Cheney arrancar do Congresso as duas medidas que ele já vinha patrocinando desde o tempo em que comandou a Guerra do Golfo, como secretário de Defesa dos EUA: o direito de o Executivo Americano declarar guerra sem autorização do Congresso Nacional, em caso de “ameaça terrorista”; e o direito do Banco Central e do governo americano de acessarem e controlarem todas as operações financeiras mundiais que passem pelo sistema bancário americano, pelo Banco da Inglaterra e pelo próprio sistema bancário da União Europeia. Tudo isto pode ser apenas uma especulação teológica ou conspiratória, mas não há dúvida de que essas teses e interpretações religiosas conseguem dar algum sentido a esse conjunto de ataques enfurecidos dos EUA contra tudo e contra todos que ameacem sua lealdade judaica e estejam no caminho de seu projeto de poder global.
Mas existe outro lado deste assunto que não é devidamente analisado: o fato de que outros povos e culturas possam não compartilhar desses mesmos valores, nem considerar que estes mesmos textos bíblicos sejam sagrados ou que suas profecias tenham algum fundamento real – o que nos remete de volta ao debate entre Erasmo e Lutero. A diferença, neste caso, é que o “outro lado” não é um indivíduo nem é um cristão necessariamente, e pode até considerar que todas essas previsões do Apocalipse são uma rematada loucura. Além disso, no campo internacional, este “outro” é sempre um Estado nacional, e pode ser um Estado que tenha as mesmas pretensões globais dos EUA, e que luta por suas crenças e valores com a mesma intensidade que os norte-americanos. Por isso mesmo, até agora, depois de um ano e meio de “gritos e ameaças”, os “homens da Bíblia”, que estão no comando da política externa norte-americana, não tenham obtido nenhuma vitória significativa, nem mesmo alguma rendição da parte de seus concorrentes e adversários mais importantes, que vêm sendo assediados na Ásia, no Oriente Médio e na América Latina.
Desse ponto de vista, com toda certeza, uma das poucas intervenções diretas bem sucedidas ( pelo menos no curto prazo), desse grupo de herdeiros de Dick Cheney tenha sido mesmo a “operação Bolsonaro”, que ajudou a instalar no governo brasileiro uma coalizão política montada às pressas e liderada por um grupo de pessoas muito toscas e, ao mesmo tempo, extremamente violentas e religiosas. Uma espécie de simulacro de baixo nível de qualidade, da própria coalizão que elegeu Trump e, mais especificamente, do grupo que assumiu o comando de sua política externa e emplacou um de seus discípulos (ou seminaristas?), no Ministério das Relações Exteriores do Brasil, com a função explícita e imediata de apoiar e participar da invasão militar da Venezuela já no início de 2019. Basta lembrar o papel patético e solitário do chanceler brasileiro, na fronteira com a Venezuela, ali postado como se fosse o comandante de um exército que não existia, e de uma invasão que não aconteceu. Faltou Mike Pompeo explicar ao seu pupilo que “povos escolhidos” só existem dois: Israel, que não teria maior importância se não fosse o Estado judeu por excelência, e portanto, na prática, um Estado religioso que foi transformado numa máquina militar de ocupação, com poder atômico;[4] e os Estados Unidos, que já foram “fundados“ pelos puritanos, uma seita de origem calvinista radical, e que se tornou uma grande potência, extremamente religiosa, que expandiu e projetou seu poder de forma contínua desde o século XIX, sempre orientada por seus interesses estratégicos nacionais. Além disso, Pompeo deveria ter-lhe explicado que no caso de Israel e dos Estados Unidos, o discurso religioso da “salvação judaico-cristã” coincide com e instrumentaliza suas próprias estratégias de defesa e a projeção mundial de seus interesses militares, políticos e econômicos. Já no caso do Brasil, a luta pela civilização judaico-cristã não nos agrega nada, nem coincide ou ajuda a promover os interesses econômicos e estratégicos de um país que é multicultural, multirracial e extremamente heterogêneo do ponto de vista religioso, e desigual, do ponto de vista social. Por isso, essa nova submissão da política externa brasileira aos versículos da Bíblia admirados pelo presidente e seus filhos, e pelo próprio ministro, limitam inevitavelmente o escopo das alianças internacionais do país a um número muito pequeno e inexpressivo de países sem grande projeção, como é o caso, por exemplo, de Chile, Paraguai, Hungria, Polônia, ou mesmo Israel, fora do Oriente Médio.
A artificialidade do projeto americano transposto para o Brasil fica ainda mais nítida quando se analisa o papel da violência e da agressividade dos novos governantes brasileiros, que tentam imitar o modelo praticado sobretudo por Donald Trump e John Bolton. Esta violência primitiva do núcleo governante brasileiro transforma toda e qualquer divergência política e democrática numa heresia, e tenta eliminar e destruir como herege todos os seus opositores. Uma prática que já trouxe para o Brasil um tipo de divisão e enfrentamento religioso que não será fácil de superar ou esquecer por muitos e muitos anos, talvez décadas. No caso do governo Trump, a agressão internacional, generalizada e destrutiva, encontra do outro lado da fronteira sociedades, culturas e civilizações sólidas e muitas vezes indiferentes com relação às fantasias apocalípticas dos norte-americanos. Mas no caso da agressividade bolsonarista e de sua obsessão doentia pelas armas, o que existe é uma sociedade que se sente atacada e ameaçada por seus próprios governantes, que não são capazes de propor para os brasileiros nenhum tipo de horizonte futuro mais pacífico, igualitário e justo. Pelo contrário, o que este núcleo religioso e fundamentalistapropõe é uma espécie de distopia da violência, o prazer da violência pela violência e o desejo psicopático doentio de destruir a tudo e a todos, sem propor nada em troca.
Hoje, a palavra “bolsonarismo” é usada em todo mundo, como sinônimo de violência irracional e destruição psicopática, feita em nome de versículos bíblicos, mas sem nenhum sentido ético e humanitário. Já e utilizada também como um sinal vermelho de advertência sobre o limite a que pode chegar a humanidade quando perde o sentido ético da política e da história, e se joga contra tudo e contra todos, movida pelo ódio, medo e paranoia, transformando a religião num instrumento de vingançae destruição da possibilidade de convivência entre os homens.
Neste sentido, e de alguma forma, o “bolsonarismo” está fazendo com que as pessoas reflitam, no Brasil e em todo mundo, sobre as consequências dramáticas do paradoxo de Erasmo e Lutero: perguntando-se como é que seitas e religiões que pregam a paz e o amor entre os homens podem ao mesmo tempo promover o ódio a violência e a guerra sem fim contra “hereges” e “heresias” que elas mesmas vão inventando, separando amigos e inimigos, fiéis e infiéis, com base em “revelações” e “persuasões individuais” que não se sustentam em nenhum tipo de evidência ou argumentação racional, mas que acabam reforçando a unidade e a identidade destas seitas através do próprio exercício da violência.
Notas:
[1] Fiori, J.L. “Babel syndorme and the new security doctrine of the United States”, Journal of Humanitaruan Affairs, 1(1), April 2019, pp 42-45.
[2] Joyce, K. “The Chistianization of the U.S, Foreign Policy:”, The New Republic, March 25, 2019
[3] Martel, F., “No Armário do Vaticano: Poder, Hipocresia e Homosexualidade”, < Porto Editora, Porto, 2019, P:57
[4] Fiori, J.L, “A visão sagrada de Israel”, Jornal Valor Econô mico, 28 de maio de 2009
José Luís Fiori é professor titular de Economia Política Internacional, Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro; coordenador do GP do CNPq “Poder Global e Geopolítica do capitalismo” e do Laboratório “Ética e poder global”, do Nubea/UFRJ e pesquisador do Instituto e Estudos Estratégicos do Petróleo, Gás e Biocombustíveis (INEEP).
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