Professor
da UERJ e ex-interlocutor do juiz, Afrânio Jardim, diz que procuradores estão
deslumbrados
AFONSO BENITES
De consultor informal da Lava-Jato a
atroz crítico da operação. A conduta adotada por um dos principais juristas da
área processual do Brasil, Afrânio Silva Jardim, de 66 anos, demonstra o
tamanho da decepção de parte do meio acadêmico (além do político, que tem seus
interesses próprios) com os últimos passos da principal ação anticorrupção da
história do país. Há pouco mais de dois anos, Afrânio Jardim começou a trocar
impressões com o juiz Sergio Moro, o responsável pela operação na primeira
instância. Apoiava seus atos. Elogiava a importância das apurações. Mas as
últimas ações da força-tarefa fizeram com que ele rompesse com o magistrado e
se tornasse um dos principais críticos dos trabalhos que estão sendo conduzidos
em Curitiba.
Não porque Afrânio Jardim seja contrário
ao combate à corrupção, mas por entender que boa parte do que tem sido feito
não respeita as normas. Cita, por exemplo, a condução coercitiva de
investigados, a prisão domiciliar de grandes empresários, a divulgação da
gravação envolvendo os ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma
Rousseff, assim como a última denúncia apresentada contra o líder petista nesta
semana. “Não é justo o que estão fazendo”, sintetizou o especialista em
conversa com o EL PAÍS por telefone.
Autor de quatro livros, promotor de
Justiça aposentado, livre-docente, professor de direito processual penal na
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), jurista citado em mais de uma
centena de acórdãos no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de
Justiça, Afrânio Jardim diz que os procuradores da Lava-Jato parecem viver um
deslumbramento. “O que vejo é que os colegas mais novos da Lava-Jato estão meio
deslumbrados. Agem messianicamente, acham que são os salvadores da pátria. É
uma visão ingênua. Aí, os fins justificam os meios”, avalia.
O rompimento com Sergio Moro e o descontentamento
com os rumos da Lava-Jato deram-se exatamente quando interceptações telefônicas
de Lula e Dilma foram divulgadas extemporaneamente em meados de março. Na
ocasião, Afrânio Jardim disse ao juiz que ali, ele havia perdido a
imparcialidade que os magistrados precisam ter. “Eu disse para ele que estava
agastado, que ele estava me decepcionando. Ele respondeu que lamentava muito,
que ficava triste. Não nos falamos mais, não trocamos mais e-mails”.
O curioso é que Sergio Moro, ao lado de
outros 50 operadores de Direito, é autor de um dos artigos que compõem a obra “Tributo
a Afrânio Silva Jardim”, escritos e estudos, livro que terá sua terceira edição
publicada até outubro. “Agora, ele deve estar constrangido. E eu também estou”,
diz o homenageado.
Ainda com relação à atuação do juiz, Afrânio
Jardim afirma que estranhou a série de prisões domiciliares autorizadas por
ele. A maioria dos empreiteiros que está detida responde a crimes cujas penas
são superiores a dez anos de prisão. A legislação, contudo, prevê que esse tipo
de benefício domiciliar só pode ser concedido caso a punição seja inferior a
quatro anos de reclusão ou se o processo já tiver sido julgado em todas as
instâncias e a lei assim o autorizar, o que ainda não ocorreu em nenhum caso da
Lava-Jato. “Às vezes, Sergio Moro passa uma imagem de severíssimo, mas os
empresários estão presos em suas casas, suas mansões. Brinco dizendo que talvez
estejam com tornozeleiras eletrônicas douradas, cravejadas de diamantes”.
Estupor
político e contraofensiva
Não foram só representantes do mundo
acadêmico que se espantaram com o tom usado pelos procuradores da Lava-Jato,
que atribuíram a Lula a designação de chefe da “propinocracia” (o Governo das
propinas), “comandante máximo” ou “maestro de uma grande orquestra concatenada
para saquear os cofres públicos”.
De petistas – como era de se esperar – a
tucanos, diversos políticos brasileiros demonstraram desconforto com os termos
usados pelos procuradores da força-tarefa. Caciques do PSDB, como o senador
Aécio Neves e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, foram cautelosos a
comentarem a acusação contra Lula. “É preciso ver o que o Judiciário diz. Uma
coisa são as acusações, depois é que vem o processo de provas, verificar o que
é certo e o que é errado... Eu fico só como espectador”, disse FHC no Rio de
Janeiro na última quinta-feira.
Um dos principais articuladores do
impeachment de Dilma Rousseff, o deputado Paulo Pereira da Silva, o Paulinho da
Força (SD-SP), disse que o Ministério Público precisaria baixar o tom das
denúncias. Internamente, no Governo de Michel Temer (PMDB), o ex-aliado que
hoje é adversário de Lula e do PT, a avaliação é que os procuradores da Lava-Jato
estão “exagerando há tempos” nas acusações.
As reclamações, no caso da classe
política, embutem autodefesa também. Mais de 50 políticos brasileiros são
investigados no esquema de corrupção que desviou bilhões de reais da Petrobras.
Entre eles, estão membros do PMDB, de Temer, do PR e do PP. Nesses dois anos e
meio, a Lava-Jato apresentou denúncias contra 239 pessoas – sendo 100 do braço
empresarial e 36 do político. Atualmente, 21 delas estão presas e 70 assinaram
termos de colaboração com a Justiça, as delações premiadas. Há dois palcos
principais, com características e velocidades de atuação diferentes: em
Curitiba, com os procuradores e Sergio Moro, e o segundo em Brasília, com o
procurador Rodrigo Janot e o STF. Não há prazo para que os trabalhos de investigação
sejam concluídos, muito menos para que os casos dos políticos com foro
privilegiado cheguem ao plenário do Supremo.
Enquanto isso, seguem na capital federal
os movimentos para modificar a legislação e abrandar possíveis penas futuras.
Na noite desta segunda-feira, um grupo de deputados tentou, sem sucesso,
incluir na pauta de votação da Câmara projeto que tipificava o crime de caixa
dois. A medida poderia anistiar toda a prática cometida antes, se o texto
virasse lei, pelo veto a retroatividade, e poderia potencialmente diminuir o
alcance e a punição efetiva de inquéritos da Lava-Jato em curso. Vários
deputados, entre eles Alessandro Molon (Rede-RJ), protestaram contra o que
consideraram uma manobra e o projeto acabou sendo retirado da lista de votação.
Seja como for, os últimos movimentos do
núcleo no Paraná, contudo, forçam os procuradores a calcularem melhor seus
passos. “Acho que é a hora de colocar o pé no freio, deixar as coisas mais
calmas, mais claras, mais corretas. Esse é nosso desejo. Hoje ninguém quer que
acabe a Lava-Jato. Todos queremos que ela continue, mesmo! Mas dentro da lei,
dentro do Estado de Direito”, concluiu o professor Afrânio Jardim.
www.brasilelpais.com 21/09/2016
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