28/11/2016 10:35 - Copyleft
Mario Santucho *Fidel, o teimoso
Fidel é inesgotável. Impossível de explicar ou definir. Por isso, me contento em lembrar de sua obstinação.
Minha prima ainda vive em Cuba. Ela nunca voltou do exílio. Visita a Argentina com cada vez maior frequência, mas sempre regressa à ilha. Na sexta-feira, ela tomou um voo que saiu de Havana às 18h e aterrizou em Buenos Aires às 9h do sábado. Mal ligou seu telefone e se deparou com a minha mensagem: “que tristeza, o que faltava para coroar este ano de merda”, acompanhado de um link com a notícia da morte de “el Fifo”, como o chamávamos desde a nossa infância. María respondeu: “recém aterrizada, tragarei meu café com esta notícia horrível. Mas, está confirmado? Lembra que já o mataram muitas vezes antes”.
Sabíamos que o momento estava próximo, e ainda assim não nos acostumávamos com a ideia. Com Fidel, algo estranho acontecia. Algo que não queríamos que terminasse, embora fosse evidente que era algo que fazia parte do passado. Confesso que depositei algo de imortal em sua figura, mesmo sendo algo restrito aos nossos sonhos. Enquanto o símbolo mais intenso da Revolução Cubana permanecesse vivo, manteria vigente um pedaço daquele Século XX socialista, como um último suspiro. Até que, enfim, chegou a hora.
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Fidel Castro teve a satisfação de morrer aos 90 anos, após alguns anos distanciado do exercício diário do poder. Em 2008, ele teve que deixar ao seu irmão a responsabilidade de conduzir o governo de Cuba, devido a uma doença que exigia um longo tratamento, que o debilitou bastante. O corpo impôs um limite que sua consciência não admitia. Porém, diferente do ocorrido com Hugo Chávez e Néstor Kirchner – dois presidentes da alvorada do novo século que chegaram a entusiasmá-lo, e claro, mais o primeiro que o segundo – Fidel conseguiu entregar o comando, sair deixar o poder para observar o tabuleiro de fora. Para o que resta da Revolução Cubana essa forma de partir, sábia e prolixa, é uma bênção enorme. Seu povo se despedirá dele hoje como quem homenageia um pai, aquele avô por quem havia um carinho especial. O mais importante: sem o trauma de estar diante de uma crise política iminente. Por mais que agora, em Miami, seus detratores estejam babando mais que nunca.
Não obstante, a pergunta que me intriga é sobre o que ele viu durante estes últimos anos em que permaneceu como observador de luxo da História. Mais precisamente nestes últimos meses. Teria ele acompanhado e analisado a vitória de Trump? Tenho a impressão de que o balanço não deve ter sido favorável. Intuo que sua fé moderna na primazia da razão e no progresso da espécie se estremeceu, e talvez tenha se despedaçado diante de tantas evidências adversas. De certa forma, a morte de Fidel não poderia ter sido mais oportuna. É preciso começar de novo. Uma temporada da longa marcha anticapitalista chegou ao seu fim. A imortalidade não existe e os revolucionários nunca tiveram Papa. É hora de imaginar o novo argumento da emancipação.
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Fidel é inesgotável. Impossível de explicar ou definir. Por isso, me contento em lembrar de sua obstinação.
Fui criado em Cuba. Vivi no país durante longos e felizes 18 anos. Me emocionavam os discursos do “Barba”. Nunca vi uma retórica e uma paixão política semelhantes. Ao escutá-lo, não se podia simplesmente concordar ou discordas. Ou ele te envolvia por completo, ou você o rechaçava de uma vez. Agora percebo que ele é o grande responsável pelo fato de que Hugo Chávez ou Cristina Kirchner me parecessem oradores medíocres, mesmo superando a performance de qualquer político contemporâneo. Creio que a essência dessa potência discursiva era sua obstinação.
O obstinado é um sujeito tenaz, teimoso porém consequente, que sabe viver nos limites da loucura. Fidel sempre se moveu nessa fronteira. Por isso foi o artífice de uma das criações políticas mais fascinantes e valentes que o mundo conheceu. Também por isso, seus últimos anos de governo são recordados pela resistência a todo tipo de transição, adaptação ou qualquer coisa que significasse “um retrocesso” no caminho do socialismo. Ao seu lado, o inflexível Raúl terminou sendo um reformista e um melhor intérprete do sentido comum popular. Ainda paira no imaginário político um dos últimos escritos de Fidel, a respeito da visita de Obama, no qual ele se referia a uma essencial desconfiança para com as elites estadunidenses. Uma mensagem apimentada em meio ao descongelamento das relações.
O que a teimosia de Fidel nos diz aqui e agora? Será que o receio do velho e astuto estadista antecipou a visível direitização do mundo ocidental? Será que seu encarniçado questionamento sobre a exaltação hipócrita das democracias capitalistas recupera toda a sua vigência, ainda que ele mesmo, o mais brilhante dos comandantes guerrilheiros, tenha decretado – com respeito ao processo vivido pela Colômbia – a inviabilidade da luta armada nos tempos de hoje?
Fidel se foi num instante muito difícil para aqueles que o admiram. Há momentos em que a obstinação é a única forma de não render-se.
* Mario Santucho é jornalista e diretor da revista Crisis. Seu pai, o guerrilheiro Mario Roberto Santucho, líder do ERP (Exército Revolucionário do Povo), foi assassinado pelo Exército argentino em 1976 – pouco antes do crime, quando o pai já estava preso, ele viajou com a mãe, irmãos e tios à Cuba, onde viveram no exílio durante anos.
Tradução: Victor Farinelli
Sabíamos que o momento estava próximo, e ainda assim não nos acostumávamos com a ideia. Com Fidel, algo estranho acontecia. Algo que não queríamos que terminasse, embora fosse evidente que era algo que fazia parte do passado. Confesso que depositei algo de imortal em sua figura, mesmo sendo algo restrito aos nossos sonhos. Enquanto o símbolo mais intenso da Revolução Cubana permanecesse vivo, manteria vigente um pedaço daquele Século XX socialista, como um último suspiro. Até que, enfim, chegou a hora.
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Fidel Castro teve a satisfação de morrer aos 90 anos, após alguns anos distanciado do exercício diário do poder. Em 2008, ele teve que deixar ao seu irmão a responsabilidade de conduzir o governo de Cuba, devido a uma doença que exigia um longo tratamento, que o debilitou bastante. O corpo impôs um limite que sua consciência não admitia. Porém, diferente do ocorrido com Hugo Chávez e Néstor Kirchner – dois presidentes da alvorada do novo século que chegaram a entusiasmá-lo, e claro, mais o primeiro que o segundo – Fidel conseguiu entregar o comando, sair deixar o poder para observar o tabuleiro de fora. Para o que resta da Revolução Cubana essa forma de partir, sábia e prolixa, é uma bênção enorme. Seu povo se despedirá dele hoje como quem homenageia um pai, aquele avô por quem havia um carinho especial. O mais importante: sem o trauma de estar diante de uma crise política iminente. Por mais que agora, em Miami, seus detratores estejam babando mais que nunca.
Não obstante, a pergunta que me intriga é sobre o que ele viu durante estes últimos anos em que permaneceu como observador de luxo da História. Mais precisamente nestes últimos meses. Teria ele acompanhado e analisado a vitória de Trump? Tenho a impressão de que o balanço não deve ter sido favorável. Intuo que sua fé moderna na primazia da razão e no progresso da espécie se estremeceu, e talvez tenha se despedaçado diante de tantas evidências adversas. De certa forma, a morte de Fidel não poderia ter sido mais oportuna. É preciso começar de novo. Uma temporada da longa marcha anticapitalista chegou ao seu fim. A imortalidade não existe e os revolucionários nunca tiveram Papa. É hora de imaginar o novo argumento da emancipação.
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Fidel é inesgotável. Impossível de explicar ou definir. Por isso, me contento em lembrar de sua obstinação.
Fui criado em Cuba. Vivi no país durante longos e felizes 18 anos. Me emocionavam os discursos do “Barba”. Nunca vi uma retórica e uma paixão política semelhantes. Ao escutá-lo, não se podia simplesmente concordar ou discordas. Ou ele te envolvia por completo, ou você o rechaçava de uma vez. Agora percebo que ele é o grande responsável pelo fato de que Hugo Chávez ou Cristina Kirchner me parecessem oradores medíocres, mesmo superando a performance de qualquer político contemporâneo. Creio que a essência dessa potência discursiva era sua obstinação.
O obstinado é um sujeito tenaz, teimoso porém consequente, que sabe viver nos limites da loucura. Fidel sempre se moveu nessa fronteira. Por isso foi o artífice de uma das criações políticas mais fascinantes e valentes que o mundo conheceu. Também por isso, seus últimos anos de governo são recordados pela resistência a todo tipo de transição, adaptação ou qualquer coisa que significasse “um retrocesso” no caminho do socialismo. Ao seu lado, o inflexível Raúl terminou sendo um reformista e um melhor intérprete do sentido comum popular. Ainda paira no imaginário político um dos últimos escritos de Fidel, a respeito da visita de Obama, no qual ele se referia a uma essencial desconfiança para com as elites estadunidenses. Uma mensagem apimentada em meio ao descongelamento das relações.
O que a teimosia de Fidel nos diz aqui e agora? Será que o receio do velho e astuto estadista antecipou a visível direitização do mundo ocidental? Será que seu encarniçado questionamento sobre a exaltação hipócrita das democracias capitalistas recupera toda a sua vigência, ainda que ele mesmo, o mais brilhante dos comandantes guerrilheiros, tenha decretado – com respeito ao processo vivido pela Colômbia – a inviabilidade da luta armada nos tempos de hoje?
Fidel se foi num instante muito difícil para aqueles que o admiram. Há momentos em que a obstinação é a única forma de não render-se.
* Mario Santucho é jornalista e diretor da revista Crisis. Seu pai, o guerrilheiro Mario Roberto Santucho, líder do ERP (Exército Revolucionário do Povo), foi assassinado pelo Exército argentino em 1976 – pouco antes do crime, quando o pai já estava preso, ele viajou com a mãe, irmãos e tios à Cuba, onde viveram no exílio durante anos.
Tradução: Victor Farinelli
Créditos da foto: reprodução
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