07/12/2016 11:56 - Copyleft
Rodrigo LentzA crise institucional entre judiciário e legislativo
A decisão que determinou o afastamento e o revide do Senado em não acatá-la é sintoma de que uma crise acelera o desmoronamento da democracia no Brasil.
Depois que o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio de Melo, afastou por decisão liminar o Presidente-Réu do Senado, Renan Calheiros, impossível não se remeter a sua palestra proferida em agosto do ano passado na Escola Superior de Guerra. Assim como no fundamento da decisão que derrubou Renan, o argumento central foi a “Segurança Jurídica” e foi ministrada para a turma do Curso de Altos Estudos em Política e Estratégica (CAEPE) daquele ano dedicada ao estudo dos “destinos do Brasil”.
Marco Aurélio, que executou a espinhosa tarefa de se opor ao impedimento da presidenta Dilma Rousseff para uma plateia de civis e militares, estava lá mais do que Ministro: foi “estagiário” (termo usado internamente) da ESG em 1983, isto é, “falando aos senhores como ex-integrante – o que muito, mas muito mesmo, me honra – da Escola Superior de Guerra”. E, note-se, como as conjunturas dão voltas. O argumento central sobre a segurança jurídica era justamente para preservar as bases constitucionais da República, as “cláusulas permanentes”, dentre elas a separação e harmonia entre os poderes.
Qualquer pessoa atenta poderia aí pescar uma imediata contradição do Ministro, que simplesmente afastou sozinho o presidente de um outro poder, o Legislativo, segundo na atual linha sucessória de outro poder, o Executivo. Ocorre que na lógica interna do judiciário, especialmente “na última trincheira da cidadania: o Supremo Tribunal Federal”, na analogia militar do Ministro, a contraofensiva do Senado em criminalizar o abuso de autoridade judicial representou uma afronta direta e clara ao princípio da harmonia entre os poderes.
Como ótimo estagiário que foi, Marco Aurélio sabe que os poderes verdadeiros da nação são outros: Militar, Econômico, Psicossocial, Ciência e Tecnologia e Político. Sabe que uma crise entre as elites do poder econômico se alastrou para uma crise entre a elite do poder político e que, agora, se transformou numa crise institucional no poder político. O retruco do Senado Federal em desobedecer sua decisão consolida essa crise institucional. Quase a totalidade da mesa diretora desafiou o ministro e emparedou o plenário do Supremo, que tem maioria inclinada a reagir fora dos parâmetros políticos mais usuais daqueles ministros com esse perfil (Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes).
Portanto, estamos vivendo uma crise institucional dentro do poder político nacional e a decisão de Marco Aurélio é uma resposta de boa parte do poder Judiciário. Tanto a uma grave ofensa a “harmonia entre os poderes”, nas lentes togadas, quanto a uma outra crise, isto é, a crise do poder psicossocial. Marco Aurélio, na sua palestra aos confrades da ESG, sustentou sua defesa da segurança jurídica apontando um grave deslize constitucional: nossa constituição tem mais de 90 emendas, apesar de sequer possuir 30 anos. A do Japão, do alto de seus quase 70 anos, possui nenhum recomendo. Nosso problema, segue o Ministro, são os homens: “Digo aos senhores que vivemos tempos estranhos, em que há abandono a princípios, perda de parâmetros, inversão de valores (...) isso não é bom em termos culturais, não leva a dias melhores. Conduz à insegurança, maior quando verificamos que o sistema não fecha.”. Qualquer semelhança com os discursos dos membros da força tarefa da Lava-Jato, os juízes federais que se reuniram no STF quarta passada, a campanha política dos conglomerados de imprensa, as consignas dos manifestantes que desfilaram no domingo, não são meras coincidência.
É exatamente convicto dessa “crise moral” que o Poder Judiciário e a imprensa, enquanto coordenadora do poder psicossocial, tem assumido a dianteira do poder político, especialmente após a cartada final do Impedimento, com provável respaldo do poder militar. Ninguém violaria o sigilo presidencial de um Comandante em Chefe das Forças Armadas sem respaldo de seus comandantes. Começo a me convencer que está em curso uma movimentação, mais ou menos coordenada e pouco coesa, entre alguns poderes nacionais – especialmente militar, político, econômico e psicossocial. Como disse Marco Aurélio na ESG em agosto de 2015, “o País precisa, na verdade, de um banho de ética, de compenetração, de seriedade de propósitos. O Judiciário é a última trincheira do cidadão. Que o Judiciário não falte à nacionalidade. Por último, que cada qual faça a sua parte”.
As “manifestações de toda a ordem”, que Marco Aurélio usou para justificar o perigo na demora da decisão, não se tratam das vozes de domingo, como quis crer Lenio Streck no seu argumento correto contra o ativismo, mas insuficiente para entender decisões judicias.
Por fim, vale lembrar que o dispositivo constitucional que serviu para derrubar Renan vem com a Constituição de 1988, feita na despedida da guerra fria, como desfecho de uma transição lenta, gradual e segura. Assegura, pois, um poder de veto político ao Judiciário e a Imprensa bastando apenas a transformação em réu e, podendo-se, após a conjuntura mudar (tipo, expirar o mandato?), absolver no mérito. Um freio interno às elites do poder, tramitação segura de circulação do volante do Estado.
Posso estar redondamente errado. A decisão de Marco Aurélio foi motivada por ego, honrando sua tradição contra majoritária no STF, que o pleno a derrubará. A imprensa, apenas fiscaliza o poder de forma neutra e imparcial. As Forças Armadas, não monitoram a política e apenas estão preocupados com a Amazônia. Banqueiros, empresários e especuladores, então, não atrelam seus lucros à configuração da política. E os juízes e promotores apenas reclamam privilégios. Mas talvez, quem sabe, depois de um golpe de estado, seja a hora da esquerda começar a pensar nessa hipótese.
* Advogado e Consultor em Direitos Humanos. Doutorando em Democracia e Sociedade pela Universidade de Brasília no Programa de Ciência Política (IPOL-UNB), membro do Grupo de Pesquisa Democracia e Desigualdades do IPOL-UNB e Grupo de Estudos sobre a internacionalização do Direito e da Justiça de Transição sediado na USP. Correio eletrônico: [email protected]
** A palestra do Ministro Marco Aurélio de Melo foi transcrita na Revista da Escola Superior de Guerra, vol. 30, n.61, jun-dez de 2015.
*** Para maior reflexão, sugiro leitura de texto que publiquei intitulado “A participação de setores da sociedade civil na Ditadura Civil-Militar brasileira” no volume 7 do livro “O direito achado na rua: introdução crítica à justiça de transição na América Latina”.
Marco Aurélio, que executou a espinhosa tarefa de se opor ao impedimento da presidenta Dilma Rousseff para uma plateia de civis e militares, estava lá mais do que Ministro: foi “estagiário” (termo usado internamente) da ESG em 1983, isto é, “falando aos senhores como ex-integrante – o que muito, mas muito mesmo, me honra – da Escola Superior de Guerra”. E, note-se, como as conjunturas dão voltas. O argumento central sobre a segurança jurídica era justamente para preservar as bases constitucionais da República, as “cláusulas permanentes”, dentre elas a separação e harmonia entre os poderes.
Qualquer pessoa atenta poderia aí pescar uma imediata contradição do Ministro, que simplesmente afastou sozinho o presidente de um outro poder, o Legislativo, segundo na atual linha sucessória de outro poder, o Executivo. Ocorre que na lógica interna do judiciário, especialmente “na última trincheira da cidadania: o Supremo Tribunal Federal”, na analogia militar do Ministro, a contraofensiva do Senado em criminalizar o abuso de autoridade judicial representou uma afronta direta e clara ao princípio da harmonia entre os poderes.
Como ótimo estagiário que foi, Marco Aurélio sabe que os poderes verdadeiros da nação são outros: Militar, Econômico, Psicossocial, Ciência e Tecnologia e Político. Sabe que uma crise entre as elites do poder econômico se alastrou para uma crise entre a elite do poder político e que, agora, se transformou numa crise institucional no poder político. O retruco do Senado Federal em desobedecer sua decisão consolida essa crise institucional. Quase a totalidade da mesa diretora desafiou o ministro e emparedou o plenário do Supremo, que tem maioria inclinada a reagir fora dos parâmetros políticos mais usuais daqueles ministros com esse perfil (Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes).
Portanto, estamos vivendo uma crise institucional dentro do poder político nacional e a decisão de Marco Aurélio é uma resposta de boa parte do poder Judiciário. Tanto a uma grave ofensa a “harmonia entre os poderes”, nas lentes togadas, quanto a uma outra crise, isto é, a crise do poder psicossocial. Marco Aurélio, na sua palestra aos confrades da ESG, sustentou sua defesa da segurança jurídica apontando um grave deslize constitucional: nossa constituição tem mais de 90 emendas, apesar de sequer possuir 30 anos. A do Japão, do alto de seus quase 70 anos, possui nenhum recomendo. Nosso problema, segue o Ministro, são os homens: “Digo aos senhores que vivemos tempos estranhos, em que há abandono a princípios, perda de parâmetros, inversão de valores (...) isso não é bom em termos culturais, não leva a dias melhores. Conduz à insegurança, maior quando verificamos que o sistema não fecha.”. Qualquer semelhança com os discursos dos membros da força tarefa da Lava-Jato, os juízes federais que se reuniram no STF quarta passada, a campanha política dos conglomerados de imprensa, as consignas dos manifestantes que desfilaram no domingo, não são meras coincidência.
É exatamente convicto dessa “crise moral” que o Poder Judiciário e a imprensa, enquanto coordenadora do poder psicossocial, tem assumido a dianteira do poder político, especialmente após a cartada final do Impedimento, com provável respaldo do poder militar. Ninguém violaria o sigilo presidencial de um Comandante em Chefe das Forças Armadas sem respaldo de seus comandantes. Começo a me convencer que está em curso uma movimentação, mais ou menos coordenada e pouco coesa, entre alguns poderes nacionais – especialmente militar, político, econômico e psicossocial. Como disse Marco Aurélio na ESG em agosto de 2015, “o País precisa, na verdade, de um banho de ética, de compenetração, de seriedade de propósitos. O Judiciário é a última trincheira do cidadão. Que o Judiciário não falte à nacionalidade. Por último, que cada qual faça a sua parte”.
As “manifestações de toda a ordem”, que Marco Aurélio usou para justificar o perigo na demora da decisão, não se tratam das vozes de domingo, como quis crer Lenio Streck no seu argumento correto contra o ativismo, mas insuficiente para entender decisões judicias.
Por fim, vale lembrar que o dispositivo constitucional que serviu para derrubar Renan vem com a Constituição de 1988, feita na despedida da guerra fria, como desfecho de uma transição lenta, gradual e segura. Assegura, pois, um poder de veto político ao Judiciário e a Imprensa bastando apenas a transformação em réu e, podendo-se, após a conjuntura mudar (tipo, expirar o mandato?), absolver no mérito. Um freio interno às elites do poder, tramitação segura de circulação do volante do Estado.
Posso estar redondamente errado. A decisão de Marco Aurélio foi motivada por ego, honrando sua tradição contra majoritária no STF, que o pleno a derrubará. A imprensa, apenas fiscaliza o poder de forma neutra e imparcial. As Forças Armadas, não monitoram a política e apenas estão preocupados com a Amazônia. Banqueiros, empresários e especuladores, então, não atrelam seus lucros à configuração da política. E os juízes e promotores apenas reclamam privilégios. Mas talvez, quem sabe, depois de um golpe de estado, seja a hora da esquerda começar a pensar nessa hipótese.
* Advogado e Consultor em Direitos Humanos. Doutorando em Democracia e Sociedade pela Universidade de Brasília no Programa de Ciência Política (IPOL-UNB), membro do Grupo de Pesquisa Democracia e Desigualdades do IPOL-UNB e Grupo de Estudos sobre a internacionalização do Direito e da Justiça de Transição sediado na USP. Correio eletrônico: [email protected]
** A palestra do Ministro Marco Aurélio de Melo foi transcrita na Revista da Escola Superior de Guerra, vol. 30, n.61, jun-dez de 2015.
*** Para maior reflexão, sugiro leitura de texto que publiquei intitulado “A participação de setores da sociedade civil na Ditadura Civil-Militar brasileira” no volume 7 do livro “O direito achado na rua: introdução crítica à justiça de transição na América Latina”.
Créditos da foto: Jane de Araújo
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