segunda-feira, 6 de maio de 2019

“Pacote anticrimes de Moro aumenta a repressão contra o cidadão e não traz mais segurança”

“Pacote anticrimes de Moro aumenta a repressão contra o cidadão e não traz mais segurança”

Presidente da Associação Paulista de Defensores Públicos, Augusto Barbosa, diz que diversas medidas propostas por Sergio Moro são inconstitucionais

O presidente da Associação Paulista dos Defensores Públicos, o defensor Augusto Guilherme Barbosa, é um dos críticos ao pacote anticrimes proposto pelo Governo Jair Bolsonaro (PSL). Ao EL PAÍS, o defensor público avalia que as mudanças nas legislações sobre legítima defesa e sobre o cumprimento de pena após condenação em segunda instância, um dos pilares defendidos pela força-tarefa da Lava Jato, podem resultar em questionamentos judiciais. Pesquisa Datafolha divulgada em meados de abril revelou que a maioria da população é contra alguns dos pontos-chaves do projeto proposto pelo ministro Sergio Moro, entre eles o que autoriza o policial a atirar contra suspeitos sob "violenta emoção" (82% é contra). Apresentado em fevereiro, o projeto está parado na Câmara. O defensor público também reflete sobre o risco de aumento da violência do Estado contra a população negra, tema que será discutido inclusive na CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos) da OEA (Organização dos Estados Americanos), que em 9 de maio recebe 14 ativistas e militantes dos movimentos negros brasileiros para falar sobre tema.
O defensor Augusto Barbosa, presidente da Associação Paulista de Defensores Públicos.
O defensor Augusto Barbosa, presidente da Associação Paulista de Defensores Públicos. DIVULGAÇÃO
Pergunta. Quais problemas você identificou nesse pacote anticrime do ministro Sergio Moro?
Resposta. É sempre importante ressaltar que qualquer atitude de busca para resolver problemas de corrupção, de crime organizado é relevante e salutar. Só que acho que a forma que o Brasil faz, há muito tempo, traz a carga do punitivismo penal, sem uma discussão mais aprofundada, mas sem resolver definitivamente os problemas. A gente viu ao longo dos últimos 30 anos o recrudescimento no aumento de penas, a criação de novos tipos penais que resultaram numa maior insegurança, não notamos a redução nos índices da criminalidade nem a melhoria na qualidade de vida da população. Por outro lado, temos o crime organizado expandindo e um encarceramento em massa. Temos a terceira maior população carcerária do mundo, muito por causa da lei antidrogas. Essa é a uma ausência nesse projeto.
P. E o que há no projeto que seria inconstitucional ou teria alguma dificuldade em passar pelo crivo da Justiça?
R. Um deles é o aumento da cultura do conflito, quando trata de excludentes de ilicitude. Essa mudança na legítima defesa é uma medida desnecessária. O Código Penal já prevê que qualquer cidadão pode se defender, sendo agente de segurança ou não. Ao meu ver, aparenta mais uma medida de caráter político que vai aumentar essa cultura de conflito. Entendo que o Ministério da Justiça deveria debater esse assunto com quem atua, principalmente, no âmbito da defesa do cidadão, de quem estuda letalidade policial e com quem estuda a segurança pública. O diálogo seria salutar e poderíamos buscar novas soluções, que não medidas legais que vão aumentar esse conflito e que podem ser questionadas no ponto de vista constitucional.
P. Essa mudança na pena para resistência é um dos erros do projeto?
R. É um dos pontos que não foram mencionados pela imprensa, quando a resistência envolve morte ou risco de morte. Toda discussão da letalidade policial ela volta para os autos de resistência. Boa parte dos estudiosos alegam que alguns policiais, que se envolviam em casos com mortes de um suspeito, construíam uma situação de provas para justificar que teria havido um auto de resistência. O projeto prevê um aumento da pena de 6 para 30 anos. No Brasil o latrocínio (roubo seguido de morte) é o que tem maior pena. Ou seja, é uma pena desproporcional. Esse pacote anticrime aumenta o arbítrio estatal e a repressão contra o cidadão. Aumenta a força do Estado policial e repressor. Quando olhamos os dados estatísticos, em regra, os indivíduos envolvidos com o sistema penal são, geralmente, homens, negros, de 18 a 30 anos, de baixa escolaridade, desempregados ou em emprego informal. Há uma seletividade que atinge essas pessoas. Esse projeto, ao meu ver, endurece as medidas contra esses cidadãos. E essa população mais carente não está participando da discussão das mudanças da lei, seja através de defensorias públicas, de ONGs ou da academia.
P. Você acha que tem espaço no Governo para essa discussão? O ministro Moro fala sempre que está aberto para discutir com parlamentares.
R. Nesse Governo não acredito que haja espaço para o debate. Desde a campanha eleitoral do presidente Bolsonaro até o posicionamento do ministro da Justiça mostram que não há esse espaço. Não me parece que eles tenham interesse em abrir um diálogo neste momento.
P. Levando em conta que boa parte do Congresso é conservador, vários representantes da bancada da bala, como é possível entrar nesse debate?
“Nesse Governo não acredito que haja espaço para o debate”
R. Uma das frentes, é pela imprensa. Outras é ocupar os espaços por meio de defensorias públicas, por entidades de juízes. O espaço acadêmico também é importante. E o debate no Congresso deveremos ocupar as comissões temáticas, especialmente a Comissão de Constituição e Justiça. Temos de debater, trazendo outros lados, e, principalmente trazendo a estrutura da Constituição. A nossa Constituição está sendo bastante atacada. Se esse projeto se tornar lei, temos a possibilidade de apresentar ações diretas de inconstitucionalidade.
P. O Governo erra ao obrigar que haja a prisão após condenação na segunda instância?
R. Eu acho que sim. A Constituição é muito clara, ela diz que a pessoa só pode ser considerada culpada e cumprir pena de prisão após o trânsito em julgado, não só a questão de fato, mas a de direito também. Entendo que a execução provisória é inconstitucional. Em 2009 o Supremo Tribunal Federal deu uma decisão nesse sentido. Perdurou até 2016, quando houve esse movimento político no Brasil e ele deu decisão no sentido contrário. Mas o tema não está completamente definido, tanto é que há um novo julgamento previsto [o plenário do STF julgaria a prisão em segunda instância em 10 de abril, mas o presidente da Corte, o ministro Dias Toffoli tirou o tema da pauta por tempo indeterminado]. Mais uma vez a medida trabalha contra o cidadão. Ela cria mecanismos de restrição ao exercício da defesa.
“O projeto não traz uma perspectiva sistemática de combate e melhoria na segurança pública. Talvez ele [o ministro Moro] não tenha esta expertise”
P. A presunção de inocência não é uma cláusula pétrea? Ou seja, ela não poderia ser alterada nem por meio de uma emenda constitucional?
R. Sim. Ela é uma cláusula pétrea por ser um direito fundamental. Essa foi uma opção do constituinte de 1988. Temos de respeitar a Constituição. Temos de pensar na presunção de inocência também em nosso dia a dia. Boa parte dos nossos recursos judicias são reformados no Superior Tribunal de Justiça e no STF. Então, temos de ter muito cuidado. A defensoria pública de São Paulo consegue reformar no STJquase 62% das decisões tomadas no Tribunal de Justiça de São Paulo. Com essa medida, o projeto pretende não desencarcerar, não buscar a adoção de penas alternativas, mas aumentar o uso da pena de prisão, que em tese deveria ser excepcional. Ela vai demandar do Estado um gasto cada vez maior. Até do ponto de vista capitalista, de eficiência, acho que não é interessante.
P. A experiência que o Moro teve na Justiça federal é muito distante do dia a dia da pasta que ele trabalha agora. De que maneira isso pode impactar no trabalho dele no ministério?
“A população mais carente não está participando da discussão das mudanças da lei”
R. O sistema de Justiça penal brasileiro é eminentemente estadual, que é uma área que ele nunca trabalhou. Ele foi questionado recentemente sobre violência doméstica contra mulher e não respondeu de maneira seguras e claras. Por talvez não ser um tema que ele tenha se debruçado profissionalmente ou academicamente. Acho que temos de ter mais pessoas, da área criminal jurídica e da segurança pública para debater. E também pessoas de outras áreas, da sociologia, da história. Quando analisamos o projeto de maneira global, ele não traz uma perspectiva sistemática de combate e melhoria na segurança pública. Ele apenas traz pontos de aumento de pena, de maior rigor, de maior arbítrio do Estado, de redução do espaço da defesa e do indivíduo. Talvez ele não tenha toda essa expertise.
P. Qual a chance desse projeto passar de maneira célere no Congresso?
“Se esse projeto se tornar lei, podemos apresentar ações diretas de inconstitucionalidade”
R. Acho que é prematuro dizer se ele vai ser aprovado rapidamente. Mas há a tendência de que ele seja aprovado porque a maioria o vê com bons olhos. Acho que essa parte da sociedade que entende que o projeto é inconstitucional e inadequado vai trabalhar fortemente.
P. Você costuma fala muito sobre a cultura do conflito. Em março, tivemos o massacre em uma escola de Suzano. Ele representa esta cultura a que você se refere? Como evitá-la?
R. A cultura do conflito se funda na litigiosidade entre as pessoas e seu aprofundamento na sociedade tende a gerar tolerância e até mesmo incentivo ao uso da violência física como forma de resolução de problemas. A tragédia ocorrida na Escola Estadual Raul Brasil, em Suzano, traz consigo o culto ao uso de armas de fogo e houve emprego intenso e brutal de violência física. O evento, assim, é, em certa medida, consequência e propagação dessa cultura. Penso que devemos buscar a cultura de respeito ao próximo, inclusiva, mediadora e fundada na empatia. E essa postura deve ser efetivada nas escolas, famílias e locais de convivência comum, mas também nos meios de comunicação e, sobretudo, no discurso e postura das autoridades, e suas propostas legislativas. Ampliação da posse e do porte de armas e propostas de recrudescimento penal, portanto, entendo que fortalecem a cultura do conflito, e historicamente não resultam em melhorias em termos de segurança pública.

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