domingo, 9 de março de 2014

Quem paga a campanha do candidato privatiza o recurso público

Dowbor: Quem paga a campanha do candidato privatiza o recurso público

publicada terça-feira, 25/02/2014 às 23:42 e atualizada terça-feira, 25/02/2014 às 23:05

Por Ladislau Dowbor*, na Carta Maior
Podemos começar com um exemplo prático. A Friboi é da JBS, o maior grupo mundial na área de carne. O pesquisador Alceu Castilho constata: “Existe uma bancada da Friboi no Congresso, com 41 deputados federais eleitos e 7 senadores. Desses 41 deputados financiados pela empresa, apenas um, o gaúcho Vieira da Cunha, votou contra as modificações no Código Florestal. O próprio relator do código, Paulo Piau, recebeu R$ 1,25 milhão de empresas agropecuárias, sendo que o total de doações para a sua campanha foi de R$ 2,3 milhões. Então temos algumas questões. Por que a Friboi patrocinou essas campanhas? Para que eles votassem contra os interesses da empresa? É evidente que a Friboi é a favor das mudanças no Código Florestal. A plantação de soja empurra os rebanhos de gado para o Norte, para a Amazônia, e a Friboi tem muito interesse nisso. Será que é mera coincidência que somente um entre 41 deputados financiados pela empresa votou contra o novo código?”(1)
No Brasil este sistema foi legalizado através da lei de 1997 que libera o financiamento das campanhas por interesses privados. (2) Podem contribuir com até 2% do patrimônio, o que representa muito dinheiro. Os professores Wagner Pralon Mancuso e Bruno Speck, respectivamente da USP e da Unicamp, estudaram os impactos. “Os recursos empresariais ocupam o primeiro lugar entre as fontes de financiamento de campanhas eleitorais brasileiras. Em 2010, por exemplo, corresponderam a 74,4%, mais de R$ 2 bilhões, de todo o dinheiro aplicado nas eleições (dados do Tribunal Superior Eleitoral)”(3).
A empresa que financia um candidato – um assento de deputado federal tipicamente custa 2,5 milhões de reais – tem interesses. Estes interesses se manifestam do lado das políticas que serão aprovadas, por exemplo contratos de construção de viadutos e de pistas para mais carros, ainda que se saiba que as cidades estão ficando paralisadas.
Ou maior facilidade para o desmatamento, como no exemplo acima. Do lado do candidato, apenas assentado, já lhe aparece a preocupação com a dívida de campanha que ficou pendurada, e a necessidade de pensar na reeleição. Quatro anos passam rápido. Entre representar interesses legítimos do povo – por exemplo, mais transporte de massa e mais saúde preventiva – e assegurar a próxima eleição, o político fica preso na armadilha. É o próprio processo de decisão sobre o uso dos recursos públicos que é de certa maneira privatizado. Neste sentido o resgate da dimensão pública do Estado torna-se essencial.
O Brasil não está sozinho neste processo de deformação da política. O próprio custo das campanhas, quando estas viram uma indústria de marketing político, é cada vez mais descontrolado. Segundo o Economist, no caso dos EUA, os gastos com a eleição de 2004 foram de 2,5 bilhões de dólares, em 2010 foram de 4,5 bilhões, e em 2012 ultrapassaram 5 bilhões. Isto está “baseado na decisão da Corte Suprema em 2010 que permite que empresas e sindicatos gastem somas ilimitadas em marketing eleitoral”. Quanto mais cara a campanha, mais o processo é dominado por grandes contribuintes, e mais a política se vê colonizada. E resultam custos muito mais elevados para todos, já que são repassados para o público através dos preços.


E a deformação é sistêmica: além de amarrar os futuros eleitos, quando uma empresa “contribui” e por tanto prepara o seu acesso privilegiado aos contratos públicos, outras empresas se vêem obrigadas a seguir o mesmo caminho, para não se verem alijadas. E o candidato que não tiver acesso aos recursos, simplesmente não será eleito. E como este dinheiro gira em grande parte na mídia, que veicula as campanhas, não se denuncia o processo. Todos ficam amarrados. Começa a girar a grande roda do dinheiro, partindo do sistema eleitoral. Ficam deformados tanto os sistemas de captação, como de alocação final dos recursos.


O resultado básico, é que no Brasil os impostos indiretos (que todos pagam no mesmo montante, ao comprar um produto) predominam sobre o imposto de renda, que pode ser mais progressivo; que não existe imposto sobre as grandes fortunas; que o imposto territorial rural é simbólico; que os grandes intermediários financeiros pagam pouquíssimo imposto, enquanto o único imposto série a que eram submetidos, a CPMF, foi abolido, em nome, naturalmente, de proteger “os pequenos”. Acrescente-se a isto a evasão fiscal e terminamos tendo um sistema onde os pobres pagam proporcionalmente mais que os ricos, invertendo-se o papel de redistribuição que o Estado deveria ter. No Brasil, o problema não é de impostos elevados, e sim da estrutura profundamente injusta da carga tributária.


Mas custos econômicos maiores ainda resultam do impacto indireto, pela deformação do processo decisório na máquina pública, apropriada por corporações. O resultado, no caso de São Paulo, por exemplo, de eleições municipais apropriadas por empreiteiras e montadoras, são duas horas e quarenta minutos que o cidadão médio perde no trânsito por dia. Só o tempo perdido, multiplicando as horas pelo PIB do cidadão paulistano e pelos 6,5 milhões que vão trabalhar diariamente, são 50 milhões de reais perdidos por dia. Se reduzirmos em uma hora o tempo perdido pelo trabalhador a cada dia, instalando por exemplo corredores de ônibus e mais linhas de metrô. serão 20 milhões economizados por dia, 6 bilhões por ano se contarmos os dias úteis. Sem falar da gasolina, do seguro do carro, das multas, das doenças respiratórias e cardíacas e assim por diante. E estamos falando de São Paulo, mas temos Porto Alegre, Rio de Janeiro e tantos outros centros. É muito dinheiro. Significa perda de produtividade sistêmica, aumento do custo-Brasil, má alocação de recursos públicos.
Uma dimensão importante deste círculo vicioso, e que resulta diretamente do processo, é o sobre-faturamento. Quanto mais se eleva o custo financeiro das campanhas, conforme vimos acima com os exemplos americano e brasileiro, mais a pressão empresarial sobre os políticos se concentra em grandes empresas. Quando são poucas, e poderosas, e com muitos laços políticos, a tendência é a distribuição organizada dos contratos, o que por sua vez reduz a concorrência pública a um simulacro, e permite elevar radicalmente o custo dos grandes contratos. Os lucros assim adquiridos permitirão financiar a campanha seguinte, além de engordarem contas em paraísos fiscais.


Se juntarmos o crescimento do custo das campanhas, os custos do sobre-faturamento das obras, e em particular o custo da deformação do uso dos recursos públicos, estamos falando no vazamento de imensos recursos para onde não deveriam ir. Estes “gatos” que sugam os recursos públicos são muito mais poderosos do que os que encontramos nos postes de iluminação das nossas cidades. Pior: o processo corrói a gestão pública e deforma a democracia ao gerar uma perda de confiança popular nas dinâmicas públicas em geral.


Não que não devam ser veiculados os interesses de diversos agentes econômicos na área pública. Mas para a isto existem as associações de classe e diversas formas de articulação. A FIESP, por exemplo, articula os interesses da classe industrial do Estado de São Paulo, e é poderosa. É a forma correta de exercer a sua função, de canalizar interesses privados. O voto deve representar cidadãos. Quando se deforma o processo eleitoral através de grandes somas de dinheiro, é o processo decisório sobre o uso dos recursos que é deformado.


O absurdo não é inevitável. Na França, a totalidade dos gastos pelo conjunto dos 10 candidatos à presidência em 2012 foi de 74,2 milhões de euros, dez vezes menos do que a eleição municipal no Brasil. (4) Na Polônia, é vedado o financiamento corporativo das campanhas, e a contribuição da pessoa física é limitada a cerca de 4 mil dólares. No Canadá há um teto para quanto se pode gastar com cada nível de candidatura. A proposta de Lessig para os Estados Unidos, é de que apenas a pessoa física possa contribuir, e com um montante muito limitado, por exemplo de algumas centenas de dólares. A contribuição pública seria proporcional ao que o candidato conseguiu junto aos cidadãos. O candidato receberia apoio de recursos públicos proporcionalmente à sua capacidade de convencer cidadãos comuns. A representatividade voltaria a dominar.
As soluções existem. O dilema está no fato que a deformação financeira gera a sua própria legalidade. Já escrevia Rousseau, no seu Contrato Social, em 1762, texto que em 2012 cumpriu 250 anos: “O mais forte nunca é suficientemente forte para ser sempre senhor, se não transformar a sua força em direito e a obediência em dever”. Em 1997, transformou-se o poder financeiro em direito político. O direito de influenciar as leis, às quais seremos todos submetidos. Em resumo, é preciso reformular o sistema, e acompanhar os países que evoluíram para regras do jogo mais inteligentes, e limitaram drasticamente o financiamento corporativo das campanhas. Trata-se aqui de tampar uma das principais frestas de onde se origina o vazamento dos nossos recursos.
* Este artigo foi editado a partir do capítulo 4 do livro “Os Estranhos Caminhos do Nosso Dinheiro”, de autoria do professor. Você pode conferir o livro completo  aqui.
Notas:
1. Alceu Castilho, Partido da Terra
2. O financiamento está baseado na Lei 9504, de 1997 “As doações podem ser provenientes de recursos próprios (do candidato); de pessoas físicas, com limite de 10% do valor que declarou de patrimônio no ano anterior no Imposto de Renda; e de pessoas jurídicas, com limite de 2%, correspondente [à declaração] ao ano anterior”, explicou o juiz Marco Antônio Martin Vargas.
3. “Pouquíssimos candidatos conseguem se eleger com pouco ou nenhum dinheiro”, comenta Mancuso, que coordena o projeto de pesquisa Poder econômico na política: a influência de financiadores eleitorais sobre a atuação parlamentar. Ver em Bruna Romão, Agência USP
4. Le Monde Diplomatique, Manière de Voir, Où va l’Amérique, Octobre-Novembre 2012, p.11

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